Thiago França, seu saxofone e só
Mais que o pulmão do Metá Metá, Thiago França está intimamente ligado ao sistema circulatório da música em São Paulo, seja capitaneando sua Espetacular Charanga ou tocando com gente de todas as vertentes musicais, do improviso livre ao choro, da gafieira ao free jazz, da marchinha de carnaval ao rap, do samba rock à música de terreiro. Mestre do sopro, interliga saxes, flauta e pedais para criar climas tensos, atmosferas bucólicas, melodias familiares, ataques frontais, mas pôs-se ao desafio de torear seu próprio instrumento num disco dedicado apenas a ele, gravado todo em takes únicos e sem outros instrumentos ou efeitos de pós-produção.
O resultado é Kd Vcs, um disco que soa ao mesmo tempo ermo e populoso, contemplativo e agressivo, abstrato e pé no chão. Embora o lançamento do disco em abril já estivesse na agenda de Thiago desde o final do ano passado, o disco afina em vários níveis com a estranha sensação que estamos passando nestes dias de isolamento social. E não é apenas o título que remete a esta sensação solitária, pela extensão de menos de meia hora das sete canções, o instrumentista nos conduz a uma paisagem alienígena para que possamos olhar para dentro e nos reconhecer, como se o Doutor Manhattan de Watchmen pudesse levar cada um de nós para Marte e poder ver o que estamos fazendo com nosso planeta – e, portanto, com nós mesmos. Dá para ouvir ecos de samba, jazz e funk na forma que o saxofonista conduz seu timbre, mas ele abandona rótulos e sensações reconhecíveis numa queda livre em que, várias vezes, perdemos a noção da gravidade. Sem noção de onde é o chão, estamos soltos no espaço profundo explorado por Sun Ra, mas sem nenhum planeta nem a nave-mãe de George Clinton no horizonte, e a flutuação torna-se voo com o norte magnético apontado para o free jazz espiritual. Inspirado no livro Cujo, de Nuno Ramos (que também é autor da imagem da capa do disco), Kd Vcs é um mergulho pra cima em uma densidade desconhecida. O disco pode ser baixado no site do Thiago e eu conversei com ele por email sobre este gesto solitário.
Quando você percebeu que tinha de registrar este momento com seu instrumento e que teria que fazer isso sem outros músicos?
A vontade de ter um formato solo sempre me instigou, pelo quão inusual é prum saxofone, mas não queria que fosse algo só por fazer. Por volta de 2016 eu comecei a fazer as primeiras experiências, ainda como “ato de abertura” de algum show meu com banda. No começo era mais improvisação livre e algumas músicas já do meu repertório, e de cara eu senti que o mais interessante seria compor especificamente pra esse formato, um repertório pra existir assim, que fosse só o saxofone e não ficasse faltando nada, achei um bom desafio. Eliminei também os pedais porque saquei que seria um lance óbvio demais porque eu acabaria por emular a função dos outros instrumentos criando harmonias, padrões rítmicos, etc, e fui me envolvendo cada vez mais com a idéia de estar “nu” no palco. do No final de 2018, senti que tinha chegado nas músicas com o propósito que eu queria, fiz mais alguns shows no começo do ano seguinte e em setembro de 2019 (dia 10) gravei o disco. Mas a primeira centelha de fazer um disco mesmo foi quando eu gravei um solo de tenor na trilha do “Gira”, espetáculo do Grupo Corpo que o Metá fez a trilha.
O disco tem alguma inspiração direta, um disco em que também traga apenas um músico e seu instrumento?
Tem um saxofonista fodão chamado Collin Stetson, que toca sax baixo (que é mais grave ainda que o barítono), e com certeza vai rolar essa associação. Mas o lance do Collin é mais “completão”, ele usa mais camadas, ele canta as notas com a garganta enquanto toca, ele microfona o pescoço, as chaves do instrumento, então você ouve vários sons, tem hora que parece que tem percussão junto. Uma das músicas do meu disco, “Tarrasque”, foi bem inspirada nesses sons do Collin, onde eu também uso esse recurso de cantar com a garganta. Mas fora isso, muita coisa me instigou durante a vida toda. Há uns vinte anos atrás eu ia muito nos shows do Nenê (baterista) e achava incrível quando ele fazia os solos, dum jeito super melódico, uns momentos grandes durante o show. O próprio Hermeto tem sempre uns momentos que fica só ele. Ou mesmo que não fosse uma música inteira só uma pessoa, mas um trecho que tá só um cara tocando, fosse o Roscoe Mitchell, Pharoah Sanders, Eric Dolphy ou o Mingus…
Fale da influência do Nuno Ramos no disco, da capa ao livro Cujo.
Bom, foram uns anos até resolver o repertório, e depois que as músicas estavam todas compostas, os shows já tavam rolando no formato que seria o disco, obviamente me bateu uma nóia: legal, é um disco de saxofone solo, mas porra! é um disco de saxofone solo! eu comecei a achar chato, repetitivo, porque é só o saxofone, é só aquele mesmo som. Tudo bem, tem seus momentos distintos, mas no fim das contas, é só saxofone. E eu lembrei duma passagem do livro do Nuno onde ele descreve os materiais, pedra, argila, terra, e ele diz que dentro da pedra só tem pedra, dentro da terra, por mais que ele cave, só tem terra. A princípio me pareceu monótono, mas depois eu comecei a entender de outra forma, das coisas que são rigorosamente o que são, da beleza e do poder de sustentar uma idéia como profissão de fé, o comprometimento ritualístico com a essência das coisas – a pedra é pedra até o último grão. O mar vai ser sempre o mar e vai estar onde sempre esteve, é maravilhosamente acalentadora essa idéia, essa verdade, que o mar é mar até a última gota, é um porto seguro do nosso imaginário, do nosso sagrado. Num momento onde o mundo está a mentira é uma tática de guerra aceitável (fake news), acho muito essa imagem muito forte. O sax tenor é o meu porto seguro, é o meu “voltar pra casa”. E depois desse giro enorme, fui entrando em paz com a idéia materializar o disco. O nome vem de um disco do saxofonista Peter Brotzman, que em português é: “Eu estou aqui, aonde estão vocês?” e eu realmente “estou aqui”, o disco é um apanhado de idéias de quase 30 anos de saxofone, estou nu, meio que contando aqueles pensamentos mais malucos que a gente só abre quando tá meio bêbado pra quem a gente confia muito.
O disco está muito ligado ao conceito de respiração circular, quando você aprendeu essa técnica e como começou a usá-la?
Em 2001 eu tava na faculdade de música da UFMG – que eu larguei no começo – e o professor de saxofone, Dilson Florêncio, é um verdadeiro monstro, seguramente o saxofonista mais técnico que eu conheço no mundo, nunca ouvi ninguém tocando com a perfeição e excelência dele. E um dos folclores que circulavam na época é que ele tocava o Moto Perpétuo, do Paganinni no sax, originalmente um concerto pra violino que não tem pausa, e o Dilson tocava com respiração circular. E tocava mesmo, eu assisti isso ao vivo, umas das coisas mais impressionantes que eu vi na vida. Então tinha esse dado aí. Ele me explicou como fazia e é uma mecânica bem simples, só leva tempo pra limpar e fazer direitinho. O lance mesmo era o que fazer com isso. O saxofone é um instrumento melódico, é como se imitasse a voz. Imagina conversar com alguém que não para de falar nem pra respirar? Fui começando aos poucos, usando em alguns choros que tinham frases muito longas, só como um auxílio. Tentei tocar alguns choros usando a respiração na música inteira, tipo o “Voo da Mosca” do Jacob do Bandolim, mas no fim das contas ficava chato, me sentia mais executando um truque de mágica do que uma música, um virtuosismo barato. Também usei muito nos arranjos do Metá também, porque eu precisava soprar forte pra equiparar o som da guitarra e do baixo e acabava faltando ar, fui usando só pra completar as idéias. Mas foram quase vinte anos até chegar nessas sete músicas do disco e usar essa técnica aonde realmente tinha um propósito, incorporando a respiração como parte das composições.
Você antecipou o lançamento do disco por conta da pandemia? Como fará para trabalhar este disco nesta época nesta época estranha?
Pior que não. Eu tinha na cabeça que lançaria o disco em abril mesmo, quando baixasse a poeira do carnaval – o disco tá pronto desde novembro, com capa e tudo. O que eu não sabia mesmo era como trabalhar, porque é um show de 25 minutos, eu não seguro uma noite sozinho, sempre que eu faço divido a noite com alguém, e esse formato não-ortodoxo significa procurar lugares fora do roteiro convencional de shows. Tudo bem que é um disco super introspectivo, pra ouvir sozinho em casa mesmo, mas não precisa duma quarentena dessa pra isso, né? Daí quando começou o isolamento eu até pensei em não lançar, pra não ficar parecendo oportunismo nem entrar nessa paranóia de “quarentena de alta performance” que todo mundo se cobra de produzir, fazer mil coisas. Mas depois desencanei, porque convenhamos, mercadologicamente falando nunca é um momento propício pra se lançar um disco esquisito de saxofone solo.
“Aguiã, Alufã”
“Ngoloxi”
“Dongô”
“Pescoço Curto”
“Tarrasque”
“Maercúria”
“Dentro da Pedra”