Musicausos guarulhenses

Kiko Dinucci encheu o Centro da Terra mais uma vez, agora como integrante da temporada que o selo Desmonta está fazendo no teatro, sempre trazendo velhos e novos compadres em apresentações feitas para o aniversário de 18 da iniciativa de Luciano Valério. O bardo de Guarulhos veio só com o violão e, ao contrário de seu plano original, em que testaria novas sonoridades com seu próprio repertório, preferiu focar no período em que lançava discos pelo selo anfitrião, reunindo no decorrer da noite músicas do disco que lançou com seu Bando Afromacarrônico, no Duo Moviola que tinha com Douglas Germano (#voltaduomoviola), no seu disco de compositor Na Boca dos Outros (em que convidava vocalistas para cantar suas músicas) e nos dois primeiros do Metá Metá. Entre as canções, soltou seu lado cronista lembrando dessa fase de sua biografia, indo das noites de quarta-feira no Ó do Borogodó aos tempos do Cecap em Guarulhos, enumerando causos que misturava personagens típicos e situações do início de sua carreira profissional, quase sempre confirmando algumas dessas histórias com o próprio Luciano, que conhece desde os tempos do prézinho, como chamávamos a aula de alfabetização (hoje o primeiro ano) nos tempos em que a TV só tinha seis canais e saía do ar de madrugada. No percurso, passeou por “Deja Vu”, “Fio de Prumo”, “Engasga Gato” e “Santa Bamba” (duas em que reclamou dos trava-línguas que compunha quando era mais novo), “Partida em Arujá (Manezinho)”, “Depressão Periférica”, “Anjo Protetor”, “Oranian”, “Cio”, “Samuel”, “Mal de Percussión” e “São Jorge”, sempre alternando o tanger das cordas de seu violão sambista entre o batuque da fundo de quintal e o pogo de shows de hardcore, usando quase sempre o corpo do instrumento como percussão. No bis voltou com duas pérolas pessoais, a ode ao samba paulistano “Roda de Sampa” e a clássica contemporânea “Vias de Fato” que, tocada depois que Kiko ironizou não ter hits, foi acompanhada por todos num coro silencioso, solene e apaixonado. Tudo isso sob a luz atenta de Giorgia Tolani, por vezes intensa e difusa, outras hiperrealista, como os causos musicados de Kiko. Foi lindo.

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Abrindo os trabalhos

Fui na abertura do novo espaço da Casa de Francisca nesta quinta-feira, desbravado naturalmente por dois veteranos do lugar que conheciam tão bem a primeira versão da Casa, ainda nos Jardins, quanto já frequentaram em inúmeras formações os atuais dois palcos do Palacete Tereza, no Centro. Como de praxe, o próprio Rubens Amatto, que idealizou e realizou esse sonho forte, foi quem abriu os trabalhos recepcionando os 44 presentes (mesmo número de lugares do velho endereço) no novíssimo terceiro palco do lugar, orgulhoso não apenas de estar ampliando sua visão como de ter dois camaradas pra começar essa nova fase. E por mais que Juçara Marçal e Kiko Dinucci sejam familiares do lugar e tenham optado por seu tradicional show de vozes e violão baseado no histórico álbum-encontro Padê de 2008, os dois passearam por outras canções de seu repertório comum até incluir novas versões, como o samba-enredo “Paulistano da Glória” de Geraldo Filme e a pesada “Batuque” de Itamar Assumpção. E por mais que o novo espaço seja intimista e acolhedor, os dois não tiveram problema em ultrapassar os decibéis possíveis, seja com a bateria embutida no violão de Kiko ou nos limites inalcançáveis da voz de Juçara. A Sala B é outra experiência da Casa e mesmo com outro show bombando no salão principal, ela manteve-se inabalável em seu intimismo.

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Desmonta: 18 Anos

Satisfação começar o mês de outubro no Centro da Terra com a temporada que celebra a maioridade da produtora e selo Desmonta, comandada pelo herói de Guarulhos Luciano Valério, que lança discos e realiza shows de artistas e estrangeiros que exploram as fronteiras sônicas possíveis e que povoa as segundas deste mês com parte de seu elenco. Nesta primeira segunda, ele reúne o percussionista e baterista dos Deaf Kids, Sarine, em um transe experimental com as luzes de Giorgia Tollani. Na outra segunda, dia 13, o anfitrião é Kiko Dinucci, que explora novas texturas em seu violão – e outros instrumentos que podem vir no percurso – em busca de novas sonoridades para seus próximos trabalhos. Na terceira semana assistiremos ao encontro do próprio autor da temporada em seu projeto MNTH ao lado de Juçara Marçal e Douglas Leal, dos Deaf Kids (que apresenta-se como Yantra) e as luzes de Mau Schramm. O final da temporada vem com a presença massiva do grupo fluminense Crizin da Z.O., mais uma vez testando os limites do ruído. Os espetáculos começam pontualmente às 20h e os ingressos já estão à venda no site do Centro da Terra.

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Mais um espaço de shows na Casa de Francisca

Quem mora em São Paulo sabe do luxo que é ter a Casa de Francisca em nossas vidas, mas vamos precisar de uma senhora distância histórica para medir a importância da antiga menor casa de shows de São Paulo e seu impacto na vida cultural da cidade e do Brasil. Quem acompanha o heróico trabalho de Rubens Amatto sabe o quanto ele se entrega à sua meta de tornar música e cultura cada vez mais parte de nossas vidas e sua recente mas intensa mudança para o atual Palacete Tereza, a um quarteirão da Sé (que inclui a incrível sobrevivência às trevas da pandemia e a nova fase da Casa, que abriu um porão para shows e festas e as portas para a rua para discotecagens ao ar livre), é só mais um capítulo de uma longa jornada que ano que vem completa 20 anos. Atualmente como uma média de 600 shows por ano, inaugura mais um palco, desta vez tão pequeno e intimista quanto a primeira versão da Casa, nos Jardins, exatamente com o mesmo número de lugares, 44. A Sala B começa a funcionar nessa semana, sempre às terças e quartas, e abre com Juçara Marçal e Kiko Dinucci (dias 7 e 8 de outubro), Douglas Germano (tocando um dos melhores discos do ano, o excelente Branco, dias 14 e 15), Arrigo Barnabé (21 e 22) e Alaíde Costa (cantando outro grande disco do ano, seu Uma Estrela para Dalva, dias 4 e 5 de novembro) e mostra que crescer não é sinônimo de quantidade, citando o “que na poesia José Paulo Paes chamou de ‘menorme'”. Os ingressos já estão à venda no site da Casa.

Centro da Terra: Outubro de 2025

Outubro já começou e a programação de música do Centro da Terra neste mês vem pesada! Começamos com a celebração da maioridade de uma das mais ousadas produtoras musicais brasileiras em cena, a Desmonta, que comanda por mais um herói de Guarulhos, o sagaz Luciano Valério, lança discos e realiza shows de artistas brasileiros que desafiam as fronteiras do som, além de trazer grandes nomes da exploração sônica para o Brasil. Durante as segundas de outubro, assistiremos a quatro apresentações intensas pautadas pelo selo, que reforçam a característica coletiva e de resistência cultural que lhe é característica. A primeira segunda-feira (dia 6) reúne o multiinstrumentista Sarine (que toca bateria nos Deaf Kids) à iluminadora Giorgia Tollani para, na segunda seguinte (13) trazer Kiko Dinucci experimentando sozinho novas sonoridades. Na terceira segunda do mês (20), o próprio Valério traz seu projeto MNTH ao lado do vocalista e guitarrista dos Deaf Kids, Douglas Leal, que solo apresenta-se como Yantra, da magnífica Juçara Marçal e das luzes chapantes de Mau Schramm. A temporada Desmonta 18 encerra no dia 27 com uma apresentação pesada do Crizin da Z.O. Nas terças-feiras, as apresentações começam no dia 7, com o compositor e multiinstrumentista mineiro Clóvis Cosmo abrindo a cortina para seu universo fantástico que se localiza num triângulo mineiro devastado pelo agroapocalipse num espetáculo batizado de Do Prognejo ao Vastopasto. Na segunda terça do mês (dia 14) é a vez da banda Repentina, formada a partir do encontro de Rafael Castro com Juliana Calderón, quando os dois fundiram suas carreiras solo num novo trabalho, que volta agora depois de um longo hiato com formação que inclui Ga Setúbal e Gongom numa noite chamada de Música de Amor. Na terça seguinte (21) é a vez de Juçara Marçal e Thais Nicodemo mostrarem seu encontro desafiador – Juçara cantando e soltando efeitos e Thais em seu piano preparado – no espetáculo A Gente Se F* Bem Pra Caramba. A última terça do mês (28) recebe o Duo Zimbado – formado pela vocalista e vibrafonista Marina Kono e pela pianista Amanda Camargo – que traz um repertório autoral entre o jazz brasileiro, a MPB e o samba-canção no espetáculo Zimbadoguê. As apresentações começam pontualmente às 20h e os ingressos já estão à venda no site do Centro da Terra.

Kiko Dinucci na Argentina

Neste fim de semana Kiko Dinucci desce pela primeira vez para a Argentina onde realiza duas apresentações de seu Rastilho em duas fases da sétima edição do Festival Dimensiones: na sexta-feira ele toca no fábrica de cultura En Eso Estamos, na cidade de La Plata, capital da província de Buenos Aires, quando divide a noite com Franco Licantropo e a banda Pasodesombra. No dia seguinte, Kiko repete a dose desta vez na capital do país, quando toca no centro cultural Roseti, dividindo a noite com Julia Arbós e de novo com os Pasodesombra. Essa conexão Brasil/Argentina demora tanto pra acontecer…

Madrugada adentro

O que é que foi esse encontro do Madrugada com o Kiko Dinucci que aconteceu no Porta nesta quinta-feira? O transe do quinteto kraut formado pelos irmãos Dardenne (Otto no baixo e Yann em uma das baterias), Paula Rebellato (vocais, teclados e efeitos), Cacá Amaral (na outra batera) e Raphael Carapia (guitarra) normalmente transcende a fronteira entre o noise, o drone e o ambient em atmosferas ruidosas e apocalípticas, quase sempre calcadas no ritmo motorik característico de parte do prog rock alemão. Mas a entrada de Kiko, que trouxe sua guitarra também como elemento rítmico, abriu novos rumos para o encontro musical, que cavalgou sonoridades punk, pós-punk, no wave e até de rock progressivo dos anos 80, deixando o transe ainda mais tenso e frenético. Foi o show mais longo do grupo (com mais de uma hora) e o único em que eles tocaram bis, numa prova que talvez tenha sido a apresentação mais épica deles até aqui. Tomara que rolem outras!

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Delta Estácio Blues segue intenso

Fui até fazer as contas pra checar, mas apesar deste ter sido o primeiro show do Delta Estácio Blues de Juçara Marçal que vi este ano, foi o décimo que vi desde que ela o lançou pela primeira vez ao vivo há mais de dois anos e meio, no teatro do Sesc Pinheiros. Acompanhei a gestação desse trabalho de perto, mesmo antes de transformar-se em show, quando Juçara e seu produtor e compadre Kiko Dinucci ergueram um contraponto transversal ao seu primeiro disco solo Encarnado ao reunir pedaços de sons como bases instrumentais para canções encomendadas para outros camaradas e cúmplices musicais. Uma vez lançado, o desafio foi transformar aquele conjunto de fonogramas numa apresentação ao vivo, atingido com louvor quando os dois reuniram-se ao velho chapa Marcelo Cabral e a então desconhecida Alana Ananias, erguendo o disco num espetáculo ao vivo. O resultado anda no fio da navalha entre o noise elétrico e o eletrônico industrial, transformando a coleção de sambas tortos compostos ao lado de Tulipa Ruiz, Maria Beraldo, Negro Leo, Jadsa, Rodrigo Ogi e Douglas Germano num atordoo físico e emocional que até hoje considero o melhor show do Brasil. E depois de acompanhar a evolução deste organismo vivo nestes últimos anos, cada vez mais desenfreado e arrebatador, foi uma felicidade reencontrá-lo em mais uma edição desse transe elétrico, desta vez no Sesc Consolação e intensificado pelas luzes de Olívia Munhoz, que começou a trabalhar com Juçara no ano passado, quando ela comemorou os dez anos do Encarnado, e entrou para o time DEB encontrando uma intensidade irmã das luzes que fez no show do ano passado. Sempre foda.

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Delicadeza e sofisticação

Mais uma vez Juçara Marçal mostrou toda sua majestade ao visitar o clássico Elizeth Sobe o Morro em um espetáculo idealizado e dirigido pelo jornalista e pesquisador Lucas Nobile, que pinçou o disco em que Elizeth Cardoso investiga uma cena sambista carioca que incluía nomes consagrados como Nelson Cavaquinho (registrado pela primeira vez em disco neste álbum), Zé Kéti, Cartola e Nelson Sargento, além dos então novatos Paulinho da Viola e Elton Medeiros. Para recriar o álbum, Lucas reuniu um time precioso para acompanhar Juçara por duas noites no Sesc 14 Bis, que recebeu Kiko Dinucci, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral, Fumaça e Xeina Barros com lotação esgotada. Além do repertório do disco, o grupo ainda pinçou canções que se encaixavam no espírito do disco, sejam músicas da época, como “Vazio” de Elton Medeiros, “Século do Progresso” de Noel Rosa, “Mas Quem Disse Que Eu Te Esqueço” de Dona Yvonne Lara e “Mascarada” de Zé Keti, e contemporâneas, como “Pavio de Felicidade” de Rodrigo Campos, “João Carranca” Kiko Dinucci e “Gurufim”, parceria dos dois, que fechou o show deste domingo. Um espetáculo maravilhoso, delicado e sofisticado, banhado pelas luzes hipnotizantes de Olívia Munhoz, que rendeu momentos mágicos, como as versões para “Rosa de Ouro” (de Paulinho e Elton), “Sim” (de Cartola, num dueto entre Juçara e Kiko) e “Minhas Madrugadas” (de Paulinho e Candeia) em que Juçara avisou que tentaria “encarnar” a Divina, o que fez com maestria, num dos shows mais bonitos do ano até aqui.

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A vingança de Kim Gordon

Além de seu evento principal, o Popload desse ano desdobrou-se em dois eventos paralelos realizados no Cine Joia – o primeiro deles com a banda nova-iorquina Lemon Twigs, um dia antes do festival e o outro no dia seguinte, com a mestra Kim Gordon fazendo uma apresentação solo. E diferente do primeiro deles, o segundo contou com uma abertura à altura da atração principal. E não apenas porque a norte-americana Moor Mother – artista,ativista e poeta – transita em uma seara musical tão perigosa e transgressora quanto a atual fase da fundadora do Sonic Youth, mas por ter convidado Juçara Marçal e Kiko Dinucci para a acompanharem na primeira parte de sua apresentação, que pode ser considerada um dos grandes momentos do festival como um todo. Juntos, os três desbravaram um caminho tortuoso entre o canto e a fala, com Moor Mother e Juçara entrelaçando vozes em uma ação contínua entre som e sentido, enquanto Kiko seguia tornando seu violão percussivo, batucando riffs, linhas de baixo e ruídos para as duas soltarem-se livres. Depois que a dupla saiu, Moor Mother seguiu sozinha no palco igualmente virulenta, cuspindo versos em dois microfones, um deles sempre com algum efeito, enquanto disparava bases eletrônicas e pesadas a partir de seu computador. Mas depois do ataque inicial do trio, seu solo perdeu um pouco do atordôo, tornado livre justamente por não ter nenhum elemento sonoro pré-gravado. E era só o começo da noite…

Depois Kim Gordon subiu ao palco do Cine Joia para encerrar as atividades do Popload Festival deste ano como principal artista do segundo show paralelo do evento – e quanta diferença um lugar pode fazer a um show. Porque ela apresentou um show bem parecido – tanto em repertório quanto em duração – com o que fez na versão completa do festival, no dia anterior. Mas colocá-la em uma casa de shows sem luz natural e com o foco totalmente preso nela fez toda a diferença – principalmente porque no sábado ela tocou ao ar livre, sob a luz do sol e com o som e atenção do público dispersos. O domingo foi a vingança de Kim Gordon, que ainda contou com um ótimo som no Cine Joia, que potencializou ainda mais a virulência de sua apresentação. Vestindo uma camisa social e gravata preta no lugar do moletom do dia anterior, ela veio mais a rigor para um show que, como o outro, priorizava seu segundo álbum, The Collective, à frente de uma banda de rock novíssima que não ficava presa às amarras do gênero – muito pelo contrário, buscava explorar com vigor e ruído os espaços abertos por Kim em sua investigação musical em torno da música urbana deste século. O canto falado e quase ausência de contato com o público reforçavam a frieza da sonoridade daquele quarteto, solapando bordoadas sonoras que passavam pela banda anterior de Kim como referência (ela inclusive pegou na guitarra em várias canções), mas não reverência, fazendo todos saírem felizes do encontro ao perceber que ela continua um motor da transgressão, mas não quer olhar para trás. Muito foda.

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Abaixo algumas fotos que a Bárbara Monfrinato fez do show: