Clay Shirky e a política do futuro

Semana passada, entrevistei o Clay Shirky pela segunda vez (a primeira foi em novembro de 2009, em Nova York), e aproveitei a passagem do pai do conceito de crowdsourcing para perguntar-lhe sobre se o que vem ocorrendo nos países árabes e na Espanha tem a ver com o século digital e quais os desdobramentos desses acontecimentos na política do futuro, a curto prazo. No vídeo abaixo, ele repete pro vídeo o que já tinha falado na entrevista e se aprofunda no assunto a seguir.

“Você não pode ser uma economia moderna se as pessoas não tiverem celulares em seus bolsos”
Clay Shirky explica como as revoluções no Oriente Médio e na Espanha nasceram em nova paisagem de mídia, criada por celulares e redes sociais

Quando entrevistei Clay Shirky pela primeira vez, em novembro de 2009, em Nova York, ele estava começando a ser reconhecido como um dos principais pensadores da cultura digital, graças ao seu Here Comes Everybody (2008, ainda não publicado no Brasil) e terminava a pesquisa que se tornaria seu livro do ano passado, Cognitive Surplus (lançado no Brasil com o título de A Cultura da Participação, leia abaixo). Na época, ele festejava a condição do Brasil como um dos primeiros países a abraçar a cultura digital como regra – e como a natureza coletiva e desregrada do País conversava com o tema principal de seu livro, o crowdsourcing, que permite que multidões produzam algo coletivamente sem que necessariamente se conheçam pessoalmente.

Três anos depois, Shirky visita o País mais uma vez num cenário global bem diferente. Ao mesmo tempo em que o Brasil cresce para se tornar um dos principais agentes políticos do mundo – e sua população cada vez mais submerge no mundo digital graças às redes sociais e celulares –, pipocam pelo planeta levantes e revoltas populares que têm a internet como principal ferramenta. E meu novo papo com ele inevitavelmente girou ao redor destes dois temas.

O que une os acontecimentos recentes nos países árabes e na Espanha em termos do impacto das tecnologias digitais na atual paisagem política?
Bem, se você olhar para Tunísia e Egito já dá para traçar um padrão em que três mudanças só ocorreram graças à nova paisagem de mídia. Um: ela permite que as pessoas sincronizem suas visões de mundo rapidamente. No Egito há o movimento kifaya, que significa “basta”. Nele, emboras várias pessoas divergissem sobre muitos assuntos, todos concordavam que já tinham tido o suficiente de Mubarak. Esse movimento começou em 2004, anos antes do levante de 25 de janeiro deste ano. Foi ele que permitiu que pessoas pudessem perceber que achavam ruim a vida sob aquele governo, que outras pessoas também haviam percebido isso, mas, mais importante, que todo mundo sabia que todos achavam que a vida estava ruim. É quando há essa sincronização. E quando a população está sincronizada, é hora de partir para a ação.
A segunda mudança foi a coordenação, e Egito e Espanha ilustram, que é a habilidade das pessoas se organizarem para fazer um ato contra o governo sem usar qualquer tipo de mídia financiada pelo Estado. É uma mudança formidável e fácil ser percebida.
E a terceira mudança é a documentação, o que para mim é a mais surpreendente. Acontece que, até o Kadafi, até o mais maluco de todos os tiranos no atual cenário político, não gosta de assassinar seus próprios cidadãos à luz do dia. Mesmo quando ele estava sob a maior pressão militar possível, ele ainda fazia seus guarda-costas revistarem todas as pessoas que saíam do país em busca de celulares ou câmeras, pois não queria que nenhuma prova vazasse para fora de suas fronteiras.
Na China, quase ninguém conhece a foto icônica do sujeito parando sozinho os três tanques na Praça da Paz Celestial. O governo conseguiu manter, de forma bem sucedida, aquela imagem fora da consciência pública. Hoje, é quase impossível que haja um massacre daquelas proporções em qualquer lugar do mundo e que ele não seja documentado por câmeras de celular e enviado para o mundo imediatamente ou em poucos dias.
São essas três mudanças – sincronização, coordenação e documentação – que estão em ação em qualquer um desses novos movimentos políticos que vemos ao redor do mundo.

E como essas três mudanças vão mudar a forma de fazer política em um futuro próximo?
O que vemos no Oriente Médio é algo que chamo de “o dilema dos ditadores”: você não pode ser uma economia moderna se as pessoas não tiverem celulares em seus bolsos! E se você dá para todos uma câmera que permite transmitir fotos e vídeos, você também não pode impor um blecaute de comunicações em seu país. Ao desconectar todos os telefones, você também está desconectando toda a atividade econômica. No curto prazo, o que vamos ver é que os governos ditatoriais tendem a se tornar ainda mais ditatoriais.

Mas esse movimento de sincronização também ocorre entre países, não?
Sim, o fato de estes movimentos terem se espalhado pelo mundo faz parecer que há algo no ar. Há manifestantes em Wisconsin, no meio-oeste americano, levantando cartazes com referência a Cairo. Os EUA são conhecidos por não prestarem atenção no resto do mundo, por isso quando um evento que acontece fora de suas fronteiras penetra na consciência dos americanos, isso é uma grande coisa. E aí gente em Wisconsin começa a pensar no Cairo, as pessoas na Espanha começam a se ver como parte de um movimento político transmediterrâneo, que os conecta com os árabes… Surge a possibilidade de esse movimento espalhar-se globalmente, da mesma forma sincronizada que aconteceu em 1968. E, mais uma vez, isso aterroriza os governos da China, de Mianmar e da Coreia do Norte. Eu poderia tentar adivinhar que há dois cenários possíveis: em um há um resultado modestamente positivo para uma dúzia de países no Oriente Médio, e em outro temos a sincronização mundial de fervor antiautoritário, mas eu não faço ideia do que iremos ver.

Outro movimento global que vem acontecendo é o que coloca a natureza livre da internet em jogo, no debate sobre a neutralidade de rede.
O mais curioso é que a maior parte dos negócios se beneficiaria disso, pelo mesmo motivo que se beneficia quando as companhias telefônicas não cobram comissão pelas vendas que são feitas pelo telefone. O mundo dos negócios precisa que os meios de comunicação sejam abertos para que ele funcione – foi assim com os correios e com o sistema telefônico. Só dois tipos de negócio querem destruir a neutralidade de rede: empresas de telecomunicação e de conteúdo.
É bem provável que nós, nos Estados Unidos, percamos a neutralidade de rede pois as empresas de conteúdo conseguem pressionar o Congresso. Mas eu não acho que iremos ver a neutralidade de rede cair no resto do mundo.
Não acho que isso irá acontecer, por exemplo, na Coreia do Sul. Acho que eles reconhecem que sua economia precisa manter-se aberta e se eles forem taxar cada menor negócio e transação de consumo isso não será bom para sua economia. Eu espero que os países que já estão discutindo a questão da neutralidade de rede de forma mais incisiva optem pelo modelo aberto, mas não posso subestimar o fato de que ela pode ser sequestrada por interesses de negócios que se sentem ameaçados por uma nova competição.

Você não acha que a indústria de conteúdo norte-americana já está sendo ameaçada pela produção de conteúdo de outros países? Filmes da Índia, desenhos animados do Japão…
Com certeza. Isso já está acontecendo. E esse momento acontece através do vídeo. Minha filha, por exemplo, foi para uma festa de aniversário em que a diversão eram danças de Bollywood! A ideia de Bollywood já é comum o suficiente na cultura norte-americana para fazer parte de festas de aniversário infantis. Os EUA estão muito acostumados a ser um exportador de indústria cultural e não perceber o que acontece no resto do mundo e acho que isso está mudando. E um dos fatores dessa mudança é o YouTube, que não respeita barreira geográficas. Vamos começar a ver a mesma coisa que aconteceu com a música nos anos 90 – que começou a importar a pureza de artistas tão diferentes quanto Sun Ra ou Buena Vista Social Club ao mesmo tempo em que havia o polo oposto, com a cultura do remix. Acho que vamos ver isso acontecer isso em vídeo. Uma mudança que já dá para notar é que geração de hoje é culturalmente menos insular que a geração de seus pais. Isso mudará a cultura americana, nos tornará mais permeáveis como consumidores e produtores.

Nesse sentido, qual é o papel do Brasil enquanto grande exportador de conteúdo?
Eu acho que vai ser cada vez mais difícil acontecer um novo tipo de imperialismo cultural, como o dos EUA no século 20, que tinha a ver com nossa postura de “líderes do mundo livre” em um ambiente bipolar. Isso tornou muito fácil para a cultura norte-americana se espalhar a ponto de podermos falar em imperialismo cultural.
Mas agora estamos num mundo multipolar, em que instituições não-estatais têm um impacto maior na geografia do que governos. Um mundo em que os indivíduos podem participar mais.
Um dos meus ex-alunos fez um trabalho sobre a cena de funk carioca no Rio de Janeiro e sempre me falava da enorme encruzilhada de remixes e tradições que se misturava nessas músicas. Assim, acho que a posição do Brasil como exportador de cultura é mais a de se tornar um ecossistema mais do a que um simples transmissor, como os EUA do século passado.

E qual é a maior contribuição do Brasil para o mundo nessa paisagem digital?
Vocês podem abraçar a cultura aberta e ser uma economia em crescimento ao mesmo tempo. O que os estúdios de Hollywood, os canais de TV e as gravadoras querem fazer as pessoas acreditarem de forma muito desesperada é que se não houver uma indústria cultural que controle rigidamente esse mercado duas coisas acontecerão: não haverá cultura e isso será ruim para o crescimento econômico. E o que eu acho que o Brasil está mostrando para o resto do mundo é que não só dá para ser uma cultura aberta e uma economia em ascensão como as duas coisas podem ajudar-se entre si.

McLuhan 100

2011 é o ano McLuhan – e escrevi a capa do Link sobre este assunto, além de traduzir um texto do David Carr sobre o novo livro do Douglas Coupland sobre o sujeito e entrevistar o filho do homem, Eric McLuhan.

O Século McLuhan

Woody Allen e Diane Keaton estão na fila do cinema, em crise (como sempre), enquanto alguém logo atrás deles exibe seu intelectualismo de araque (como sempre acontece em filas de cinema). O papo do coadjuvante começa a irritar Woody Allen, que inclui sua inquietação na briga com sua mulher.

Até que, em dado momento, o sujeito fala em Marshall McLuhan, sobre a influência da TV na cultura atual – é a gota-d’água para nosso herói, que vira-se para a câmera e lamenta a situação. O falastrão, então, interfere o lamento de Woody e começa a se gabar como acadêmico, que teria autoridade para falar sobre McLuhan. É quando Woody recorre a um absurdo genial – e puxa ninguém menos que o pensador canadense para a cena em que, sem pestanejar, crava: “Você não conhece nada sobre o meu trabalho!”.

E quem conhece? Teórico pop e acadêmico transgressor, Marshall McLuhan é o grande pensador da era digital. Um gênio que anteviu a vida eletrônica pautada pela comunicação total dos tempos da internet quando ela nem existia. A partir dos efeitos do rádio na cultura mundial, passou a analisar o impacto da publicidade e da mídia na vida das pessoas, pregando, nos anos 1960, uma transformação que ainda segue em curso. E em 21 de junho de 2011, ele completaria um século de vida, o que faz que este seja o ano de seu centenário.

Entre as comemorações, surge uma biografia que tem como título justamente a frase que McLuhan em pessoa profere no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa, de 1977, citado no início. You Don’t Know Nothing of My Work! assinado por Douglas Coupland, outro pensador pop que, em 1991, definiu seus contemporâneos como Geração X, e é uma tentativa de apresentar o trabalho de McLuhan à geração digital.

“Achei o livro divertido”, diz Eric McLuhan, o filho do pensador canadense que se propõe a ser seu sucessor intelectual. Michael McLuhan, irmão de Eric que toma conta do espólio do pai, não é tão otimista: “Achei um lixo. Seus insights sobre Marshall são poluídos com devaneios rasos como o que cogita que ele poderia ser autista – uma fantasia completa – e as páginas de blablabla e jogos de palavras que só distraem o leitor.”

O fato é que o autor de termos e expressões como “aldeia global” e “o meio é a mensagem”, por mais que seja popular, ainda está longe de ser compreendido. Como um Marx ou um Freud da era digital, ele antecipou problemas e discussões que só começamos a entender décadas depois de serem cogitados. Morreu em 1980, deixando sua obra em aberto para considerações alheias. O ideal seria, como no filme, puxar McLuhan do nada para o meio da discussão. É como diz Allen no fim da cena: “Quem dera pudesse ser assim na vida real.”

Entrevista: Eric McLuhan
“A aldeia global encolheu”

O sr. acredita que o trabalho do seu pai é compreendido?
É evidente que o trabalho de meu pai tem atraído a atenção de muitos na mídia atual. Há um dilúvio de material sobre ele – entrevistas e vídeos – repentinamente disponível online, mas só uma pequena porcentagem daqueles que estão interessados em seu trabalho tem alguma ideia do que ele estava falando. No geral, ele é tão incompreendido como sempre foi.

Como o sr. vê a obra de McLuhan à luz da web? A aldeia global ficou ainda menor?
A aldeia global foi criada para explicar os efeitos do rádio na primeira metade do século 20. Com os satélites e a web, alcançamos o teatro global, em que todos estão no palco e não há limites entre o elenco e o público. A aldeia global é parte do conteúdo do teatro global e talvez seja por isso que as pessoas a percebam de forma tão clara, pois ela não está mais no centro, e sim faz parte de algo ainda maior.

Woz em pessoa

Meu papo com o Wozniak, em vídeo.

Steve Wozniak e eu

A entrevista que fiz com Steve Wozniak foi para o caderno de economia de hoje:

Conversaremos com os computadores como se fossem pessoas’
Steve Wozniak, cofundador da Apple, acredita que 0 computador se tornará o melhor amigo das pessoas

Ele hipnotizou centenas de participantes da Campus Party ao contar sua trajetória no sábado, numa palestra que teve mais olhares atentos que a do ex-vice-presidente americano Al Gore, na terça-feira. Não era para menos: não bastasse ser um dos maiores nomes da história da computação, a história de Steve Wozniak, cofundador da Apple, é muito parecida com a da maioria dos participantes do evento que terminou ontem. Um nerd por excelência, o ex-parceiro de Steve Jobs falou ao público sobre a importância do bom humor e da paixão quando se quer escolher qualquer tipo de carreira enquanto contava a todos como inventou o computador como o conhecemos hoje. Antes da apresentação, Wozniak falou ao Estado sobre outro assunto: o futuro da computação pessoal.

Em 2010, assistimos à entrada de dois novos aparelhos no mercado que causaram impacto na história da computação: o iPad, da Apple, e o Kinect, da Microsoft. Ambos são computadores pessoais, mas não são como o computador pessoal que o sr. concebeu.
Claro, apesar de que as maiores mudanças nos computadores normalmente acontecem em novas formas de interação entre o ser humano e eles. É a forma como nós usamos nossos corpos, nossa visão… E essas formas de interação estão ficando cada vez mais humanas do que eram anteriormente. Acho que essa tendência vai continuar para sempre. Os computadores do futuro vão permitir diálogos como se eles fossem pessoas de verdade. Eu não acho que o reconhecimento de voz já está nesse ponto, mas tenho tantos aplicativos nos meus telefones que funcionam tão bem só com a voz que eu não quero voltar a seguir determinados procedimentos ou digitar comandos…

…Nem sequer usar o mouse.
Eu não quero usar o mouse, não quero usar o teclado, eu não quero ter de dizer para o computador que ele deve rodar um determinado programa. Eu só quero dizer: “Faça uma reserva para seis pessoas hoje à noite numa determinada churrascaria nesta cidade aqui”. E quando você faz as coisas de forma humana, você não faz a mesma coisa sempre do mesmo jeito, você não diz a mesma frase exatamente do mesmo jeito todas as vezes que fala. Por isso, o reconhecimento de voz deve entender que você fala a mesma coisa de várias formas diferentes. E você não precisa mais se preocupar com erros de digitação se os comandos são pela voz. Então é realmente maravilhoso poder dizer… “Bom Deus” (suspira, como se estivesse aliviado). As partes complicadas dos computadores vão ficar para trás, até chegarmos a um ponto em que ele poderá olhar no meu rosto e dizer se estou cansado.

Então o sr. acha que tanto iPad e Kinect quanto os celulares atuais são estágios intermediários rumo a um outro tipo de computador ainda melhor?
Sim, são ótimos estágios, como o próprio computador pessoal também foi. O PC só foi possível porque um certo tipo de tecnologia tornou-se disponível a um certo preço. E o mesmo aconteceu com outros tipos de tecnologia para que o iPad se tornasse viável: a tecnologia flash NAND para armazenamento de dados, fazendo com que não fossem necessárias peças enormes que consumiriam muita energia; a tecnologia de telas sensíveis ao toque, telas de alta resolução, baterias leves… Muitas dessas tecnologias vêm ao mesmo tempo, a um preço acessível, e permitem que determinados produtos façam sentido.

Há uma frase que diz que a tecnologia funciona de verdade quando as pessoas nem sequer percebem que a estão utilizando. O sr. acha que chegaremos a um ponto em que a tecnologia não será nem vista pelas pessoas?
É difícil negar isso, mas também é difícil pensar em exemplos para hoje em dia. Será que eu vou ter pequenos implantes nos meus olhos que farão que eu veja o mundo da forma como determinada tecnologia quer que eu veja? Se for assim, quem está no controle? Estamos ficando cada vez mais dependentes da nossa tecnologia de forma que nem podemos desligá-la. Se nós pudermos desligá-la, estamos no controle; mas não podemos mais. E se tivermos carros que dirigem sozinhos? Uau, cara… Nós temos de ir, temos de confiar nisso, mas podemos chegar ao ponto em que a tecnologia talvez não precise mais da gente.

E aí, como vimos em filmes de ficção científica, pode ser que a tecnologia queira descartar o fator humano, pois atrapalha…
É o que eu estou sugerindo – e isso já está acontecendo, mais do que podemos admitir. Quando as coisas acontecem devagar, você não as percebe acontecendo, mas quando estamos numa curva exponencial, as coisas podem mudar de uma vez só. Você consegue desligar seu computador? Consegue se desconectar da internet, desligar seu celular? Por quanto tempo? Por um ano? E se conseguir, que tipo de vida terá? E se todos resolverem fazer isso? Seria uma vida bem diferente da que levamos agora.

Mas até chegarmos a esse estágio, a tecnologia terá de evoluir bastante. Que estágios deveremos percorrer nos próximos dez anos?
Num futuro próximo, não muito próximo, mas também não muito distante, se tornará bem difícil saber se você está lidando com um computador ou com uma pessoa de verdade. E será tão bom: falar, entender, combinar palavras e deixar que o computador faça o reconhecimento das palavras e até crie um tipo de relacionamento com as pessoas…

Mas o sr. acha que no futuro teremos amigos digitais?
A ficção científica quase sempre fala em guerra entre homens e máquinas, quem será o vencedor, mas eu acho que criamos a tecnologia para melhorar nossas vidas. Estamos lidando com ela gradualmente, não há nenhuma batalha. Criamos a coisa mais próxima do cérebro humano que é a internet. Antes, perguntávamos para uma pessoa sábia quando precisávamos saber de alguma coisa, agora temos a busca do Google. Isso significa que parte de nosso cérebro já está fora de nossas cabeças, porque a internet cresceu tanto e nós não a criamos para ser um cérebro. Criamos a internet para colocar as pessoas em contato individualmente – e quando havia bilhões de pessoas em contato entre si, de repente, ela criou essa capacidade de funcionar como um cérebro.

E isso não assusta?
Não, porque você não se assusta com isso. Não passamos por uma fase de medo. Nós simplesmente aceitamos que o Google seja mais inteligente do que qualquer pessoa que conheçamos. Todos nós aceitamos.

Não é assustador pensar em um futuro em que as pessoas terão apenas amigos digitais?
Quando cresci eu era muito tímido, era um outsider. Eu ficava de fora de conversas normais, dos ritos sociais. E não tinha com quem falar. Tinha receio. Em todo lugar que eu ia, tentava ser o mais discreto, falar o mínimo possível, fazer o meu trabalho e cair fora. Agora esse mesmo tipo de pessoa passa o dia inteiro em seu quarto com um computador, com as portas fechadas, e tem relações sociais com pessoas de qualquer lugar do mundo, mesmo que sejam com pessoas tão restritas socialmente quanto ele.

Mas não existem pessoas digitais hoje em dia.
Imagine você se apaixonar por alguém que você não sabe se é uma pessoa ou um robô. Oh, cara (ri)… Mas eu não acho que isso vai acontecer. Mas há quem se apaixone por seus computadores, então tudo bem.

E como será o computador do futuro?
A questão é em quanto tempo no futuro… Eu acho que teremos um tipo de computador que, quando um aluno for para a escola, ele quer ficar com aquele computador como se fosse seu melhor amigo, que sabe tudo sobre ele, seus sentimentos, crenças e filosofias, mais do que um professor humano. Não consigo chutar em quantos anos isso acontecerá… Dez, vinte, trinta… Mas eu não estou falando em cem anos…

O que o sr. achou da Campus Party?
Eu fui a algumas outras Campus Party e percebi que esse tipo de evento seria onde eu estaria se eu estivesse crescendo hoje. Sendo eu o tipo de pessoa que sou, que acredita no que eu acredito, nos meus computadores, na interação com outras pessoas parecidas. Eu estaria aqui, eu seria um campuseiro. Eis a grande atração: jovens cheios de ideias que querem explorar o que eles querem estar fazendo neste mundo dos computadores, o que isso vai significar para eles, o quanto isso é importante para eles, que mudanças e diferenças eles podem fazer…

As pessoas aqui falam em “orgulho nerd”.
Fico tão feliz em ouvir isso! Foi a melhor coisa que eu ouvi durante todo o dia de hoje! Há um tipo de evento que acontece tanto nos EUA quanto em alguns outros países chamado First Robotics. São times de segundo grau que constroem robôs, que são meio caros, do tamanho de pessoas, e eu vou julgar esses concursos sempre que posso. É um dia em que eles são tão importantes quanto os astros do cinema, os jogadores de futebol ou qualquer tipo de celebridade. É quando os geeks têm seu dia!

Derek Holzer, do Next Five Minutes


Foto: Atti Ahonen (2010)

Derek Holzer é o cara que deu origem ao Next Five Minutes, o encontro de novas mídias e resistência eletrônica que proporcionou a criação do Mídia Tática Brasil, que aconteceu entre os dias 13 e 16, nas mediações da Paulista, aqui em São Paulo. Derek foi o principal destaque do primeiro dia e fala, às 20 horas, na palestra “Desvendando a Mídia Tática”. Conversei com ele pouco antes de pisar em solo brasileiro.

O que você espera em relação ao Mídia Tática Brasil e à cena brasileira?
Honestamente, espero mais aprender do que ensinar. Você deve achar que esta cultura de “resisitência eletrônica” que falamos seja global – talvez universal – mas é fato neste assunto que qualquer tipo de movimento político cultural está profundamente enraizado com a cultura local de onde ele nasce. Muito da net.art inicial saiu do desejo de europeus ocidentais e orientais em encontrar uma rede eficaz e sem mediação para comunicar as descobertas de ambos mundos. Mais recentemente, contudo, ela se tornou um meio de exploração muito formal na Europa e um fetiche sobre o design criado por uma cultura corporativa na América do Norte. Em cada caso, com notáveis exceções, eu diria que os agentes foram de alguma forma seduzidos rumo a uma estetização das ferramentas de seu próprio negócio, e para longe do uso destas ferramentas no compromisso com preocupações sociais mais profundas. Além disso, meu interesse em visitar o Brasil é muito próximo àquele que me levou à Europa Oriental há alguns anos: ver uma comunidade eletrônica que ainda está se desenvolvendo e aprender quais, se algum, outros modelos estão sendo importados e nível de pensamento crítico que acompanha a adaptação destes modelos.

Como você vê o evento dentro desta nova resistência eletrônica mundial?
Estou muito impressionado com a coerência da programação e certamente mal posso esperar para ouvir o que os palestrantes locais têm a oferecer. Mesmo nesta cultura de ciberativismo e ciberteoria, o culto ao “rockstar” existe. Numa tentativa de se legitimizar melhor, muitos eventos em países com cenas de novas mídia chamadas de “em desenvolvimento” se entopem com os mesmos nomes que estão apresentando os mesmos trabalhos há oito anos. As vozes locais são simplesmente sufocadas. É bom ver, neste evento, as vozes locais estão realmente no primeiro plano. Acho que os brasileiros têm muito a ensinar uns aos outros, como têm a aprender com artistas da Europa e dos Estados Unidos.

Quais são as relações entre esta cultura eletrônica, o movimento antiglobalização e as recentes passeatas antiguerra?
Uma coisa que eu acho que separa os novos desenvolvimentos na resistência eletrônica, seja em relação à globalização das corporações ou mobilizações massivas antiguerra, é que há uma vontade de encontrar os oponentes de frente, usando suas mesmas ferramentas e táticas contra eles. Um excelente exemplo disso é o site do Gatt – um site falso para a Organização Mundial do Trabalho que recentemente anunciou o fim da OMC e sua reformulação como uma organização dedicada à Declaração Universal dos Direitos Humanos. Este anúncio foi levado a sério em muitos lugares, incluindo no Parlamento Canadense, onde gerou uma discussão sobre como isto afetaria as leis de comércio de madeira. Este tipo de tática não era apenas impossível para uma geração ou duas antes da nossa, mas também sequer seria considerada, uma vez que o foco naquela época era muito maior na criação de comunidades utópicas contraculturais que foram rapidamente assimiladas, cooptadas, desarmadas ou tornaram-se guetos graças à influência da mídia mundial homogeinizadora. David Garcia e outros criaram um marco para a cultura de resistência e suas relações com a mídia nos grupos ativistas de conscientização contra a Aids, como o ACT-UP no meio dos anos 80. Com seu apelo militante “fora do gueto e dentro da mídia de todo o jeito possível”, eles definiram uma estratégia que ainda é a base da maior parte do ativismo de mídia atual.

Fale de sua experiência com rádio online.
Como meu primeiro envolvimento com esta nova cultura de mídia aconteceu através da net.radio, eu me sinto muito próximo a este movimento. Um dos primeiros players-chave em net.radio foi o Re-Lab em Riga, na Latvia. Para eles, net.radio era uma forma de estabelecer conexões com outros artistas através do mundo à medida que se tornava caro realizar estes encontros pessoalmente: requerimentos de visto, passagens de avião e por aí vai (muitos brasileiros são familiarizados a esta situação, tenho certeza). Para os pioneiros da net.radio na Latvia, a comunicação não era necessariamente um modelo de transmissão de rádio um-para-muitos. Em vez disso, era uma rede ponto-a-ponto que compartilhava experimentos de áudio entre um grupo fechado entre a Europa oriental e ocidental. O foco estava na participação, mais do que na audição e o resultado final quase nunca era tão importante quanto o processo de comunicação pelo caminho.
Isto, claro, pavimentou o caminho para o que aconteceu depois, especialmente a explosão do Centro de Mídia Independente depois das passeatas de Seattle em 1999. Net.radio então passou para o modelo um-para-muitos (ou talvez muitos-para-muitos) de novo, quase sempre usando combinações híbridas de internet, rádios piratas, livres, comunitárias e universitárias para espalhar a mensagem o mais distante possível.
Em minha própria experiência, vi meu projeto na República Tcheca, Radio Jeleni, ir de uma média de três a 3 mil ouvintes por dia durantes os protestos contra o Banco Mundial e o FMI durante o outono do ano 2000. No fim das passeatas, quando a atenção global voltou-se para o “next big thing”, a audiência voltou aos três, refletindo o momentário, mas impermanente, mudança do modelo P2P ao modelo de radiodifusão tradicional. Para mais informações sobre este modelo ponto-a-ponto de comunicação, sugiro o ensaio de Eric Kluitenberg, Mídia Sem Público (Media Without an Audience), que é altamente baseado nas experiências dos primeiros inovadores de net.radio, há seis ou sete anos.

Como eventos deste tipo podem atingir um público maior?
Eu tenho alguns comentários sobre isso, talvez não um plano, mas alguns conselhos.
Primeiro: considere seu público. Muita discussão acontece – e ainda assim é muito necessária – no tópico de tática mídia em um nível “expert”. Isto é, num nível em que os envolvidos são praticantes de mídia. Estas discussões devem ser as mais transparente possíveis para atrair o público, refletindo a idéia de uma mídia transparente sobre a mídia fechada do sistema, mas nunca devemos confundi-las com eventos para o público em geral. Discutir táticas de comunicação com o grande público não é o mesmo que comunicar idéias com este mesmo público. O “produto final” de um evento como o Mídia Tática, na minha opinião, deveria ser tão eficaz em dar informação como qualquer outra mídia, mas deve convidar dez vezes mais à participação. Nada é menos convidativo à participação do que a metadiscussão de insiders, o que faz com que a maioria das pessoas tenha este sentimento que esta coisa de cultura eletrônica é só para experts, geeks e freaks.
Segundo: mantenha a nível local. E isso em várias maneiras. Convidados estrangeiros podem trazer novas idéias, mas olhe o que eles fizeram com a política na América Central, os sistemas de saúde de vários países africanos ou as transições econômicas na Europa Oriental ou na região do Báltico! Use-os com muito cuidado e alto teor crítico. Há uma impressão em vários lugares que visitei e apresentei projetos que as pessoas irão escutar idéias estrangeiras de forma mais receptiva do que as locais. Enquanto isso é parcialmente verdade, idéias que vêm da Holanda pro Brasil, por exemplo, podem ser facilmente menosprezadas como pertencendo “à outra cultura” ou sendo “imperialista” ou coisas do tipo. Por isso, tenho um conhecimento muito limitado do Brasil e de sua cultura. Como posso fazer algo em termos de mídia para seu povo? Muito melhor seria prover a melhor informação e inspiração que eu posso e deixar os brasileiros fazendo eles mesmos suas mídias. Desta forma, a infraestrutura da Holanda e do Brasil podem ser tão diferentes como a temperatura. O que funciona em Amsterdã – rádio pirata, internet de banda larga e TV a cabo não-comercial e independente – pode não ser a solução ideal num país com restrições fortes sobre o rádio, uma infraestutura de internet mais fraca e bem menos dinheiro para emissoras alternativas. Encontrar suas forças na distribuição pública, mais do que se basear inteiramente em modelos integralmente importados, te deixa muitos passos à frente do gueto de mídia que prega apenas para os convertidos.
Terceiro: fique tranqüilo. Permitir-se ser estereotipado é o equivalente a ser cooptado ou marginalizado pela mídia mainstream, que come aquilo que pode usar e caga aquilo que não pode. O arquétipo de mídia do “hacker”, por exemplo, é útil pois cria paranóia. A paranóia é útil porque vende coisas – tudo, de programas antivírus a programas de defesa nacional. Da mesma forma, tempo gasto desconstruindo mitos sobre o trabalho de alguém é tempo desperdiçado. Entrar em uma discussões como se ele é mais um phreak de computador em busca da glória do que um ativista de verdade, ou pior ainda, tentar separar em público um do outro, é usar a terminologia alheia e reforçar os arquétipos da mídia. Fique mais calmo, mude suas táticas antes que elas tornem-se estagnadas, negue ou subverta rótulos criados para você e você descobrirá que a reação do público ao inesperado é muito maior do que ao esperado. Recentes ações do Critical Art Ensemble e outros no campo da biotecnologia merecem ser citadas. Quem poderia prever, ainda mais encontrar um arquétipo de mídia que possa ser usado para, um grupo de ativistas que reverteriam a engenharia de plantas modificadas geneticamente, tornando-as vulneráveis aos herbicidas que supostamente elas seriam imunes? “Genoterroristas”? “Agrohackers”? Quando algum rótulo grudar, os efeitos da ação já terão sido sentidos.

Como o Brasil é visto pela comunidade eletrônica global?
Eu não tive tempo de perguntar ainda. Volto em algumas semanas com a resposta! Falando sério, eu acho que há muita atenção se voltando para a América do Sul à medida em que os experimentos laboratoriais econômicos feitos pelo Fundo Monetário Internacional e outras entidades financeiras que governam o mundo começam a falhar, um após o outro. O Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, também mostrou apoio popular numa escalada pela resistência determinante às regras econômicas globais em detrimento aos direitos humanos sobre privilégios de negócios. Minha esperança pessoal é que os brasileiros provem estar prontos para criar suas próprias idéias no front eletrônico, mais do que se tornar um grupo de markting para esquemas de design coloridos vindos do exterior, pois estão no front social. Saberia exatamente sobre isso a partir desta semana.

Na mesa com o Goulart de Andrade

E ainda nessas de revirar o baú virtual, me encontrei com o Tas entrevistando o Goulart de Andrade, no Resfest de 2007. Foi melhor do que você pode imaginar.

Economia na prática

Mais uma matéria desenterrada: este foi o primeiro frila que fiz pro falecido caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, uma entrevista com a Diane Coyle, publicada no dia 18 de julho de 2004. que lançava seu Sexo, Drogas e Economia no Brasil, na época. E escolheram essa foto aí embaixo pra ilustrar o bate-papo.

Economia das trocas simbólicas
Para a teórica e apresentadora da BBC Diane Coyle, empresas pontocom não perceberam a tempo as diferenças entre mercados real e virtual

No primeiro capítulo, depois de incluir modelos seminuas das páginas três dos tablóides ingleses e o porta-voz do primeiro-ministro britânico (por ter escrito contos para uma revista erótica) como integrantes ativos da indústria do sexo, Diane Coyle afirma que “a internet mudou o mercado de sexo”, que “a pornografia é, tecnicamente, um artigo de luxo” e que “o sexo ainda é um mercado em crescimento”, além de teorizar sobre o porquê de mais mulheres não trabalharem como prostitutas, devido à rentabilidade do negócio.

Traçando paralelos improváveis e analisando o jogo econômico dentro de universos cognitivos que fazem sentido ao cidadão comum, Diane Coyle explica conceitos básicos de sua área para tirar o ar de “ciência funesta” que a economia assumiu desde seus primeiros anos. Colunista do jornal “The Independent” (onde chefiou, entre 1993 e 2001, a equipe de economia) e apresentadora do programa da BBC “Analysis”, a inglesa é autora de “Sexo, Drogas e Economia” (ed. Futura, 320 págs., R$ 39,00), em que apresenta a economia sem os vícios do meio ao tratar temas corriqueiros como reflexos específicos de diferentes situações econômicas.

“Tenho tentado explicar o assunto a não-especialistas de formas diferentes por toda minha vida profissional -como professora em Harvard, para políticos, quando trabalhei no tesouro do Reino Unido, e para leitores, quando trabalhava em jornal diário. Então, em certo sentido, é o trabalho de uma vida!”, explica Coyle em entrevista por e-mail. “Eu espero que ele ajude as pessoas a superarem quaisquer tipos de medos que possam ter em relação à economia -que é tão divertida quanto importante”, diz.

O livro continua esmiuçando panoramas não muito caros à rotina da mídia econômica, mas deliciosamente ricos em possibilidades reais e inter-relações cotidianas. No capítulo sobre drogas, ela prova que a legalização destas pode ser rentável em diversos aspectos -do econômico ao humano-, enquanto explica o conceito de análise de custo-benefício. Didaticamente, Coyle analisa o consumo entre adolescentes para falar de mercado de riscos, compara a indústria fonográfica aos barões ladrões que construíram as ferrovias norte-americanas no século 19 e, no capítulo sobre tributos, não faz rodeios para dizer que “apenas as pessoas pagam impostos”.

Na paleta de Coyle, temas como ecologia, biotecnologia, governo, imigrações, inflação e macroeconomia são vistos por prismas pouco ortodoxos, como moda, cinema, computação, mercado de arte, telefonia, esportes, o que torna “Sexo, Drogas e Economia” convidativo principalmente para aqueles que vêem a economia com maus olhos. A autora falou ao Mais! sobre alguns desses assuntos na entrevista a seguir.

Por que a cultura popular parece ser um termômetro tão eficaz para as leis da economia, como a sra. mostra em seu estudo?
A economia é apenas uma forma de estudar a sociedade humana -sociólogos e antropólogos lidam com o mesmo assunto, mas com diferentes abordagens. Qualquer questão que envolva muitas pessoas -incluindo qualquer aspecto da cultura popular ou de política pública ou dos mercados de finanças- pode ser analisada do ponto de vista da economia. Para o livro, tentei escolher assuntos que poderiam interessar aos leitores, para não fazê-los desviar do caminho, como a maior parte dos livros de economia faz.

Por que mesmo os mercados como o do narcotráfico, obedecem de forma rígida às regras da economia, mesmo quando agem fora da lei?
As regras da economia são controladas pela mais rígida de todas as leis -a da natureza humana. Na verdade, uma das frentes mais empolgantes nesse assunto atualmente vincula a economia às biologias psicológica e evolucionária. A natureza humana opera em mercados ilegais -talvez até mesmo de forma mais forte do que em mercados legais- porque a questão do lucro é muito mais importante no negócio do crime.

Há algum evento recente que a sra. gostaria de ter incluído em seu livro?
Sim, eu gostaria de ter incluído algo sobre a Enron, a Parmalat e outros escândalos. Esse capítulo poderia falar sobre a importância da informação no funcionamento dos mercados, o papel dos incentivos nos pagamentos aos executivos e os sinais de perigo para que se fique atento à contabilidade das empresas.

Sobre a internet: por que algumas estratégias deram origem à bolha das empresas pontocom ao mesmo tempo em que comunidades auto-organizadas -como as de trocas de arquivos on-line de ponto a ponto (P2P), grupos e fóruns de discussão, grupos criados ao redor de programas de mensagem instantâneas (como ICQ e MSN Messenger)- são tão bem-sucedidas?
Os fracassos das empresas pontocom são decorrentes de três tipos de erro. Um foi pensar que os mercados na internet eram como os mercados fora dela, por isso as mesmas estratégias funcionariam. A indústria da música cometeu esse erro e não se adaptou ao modelo de negócio.
O segundo foi pensar que a internet era um veículo de transmissão como a TV ou o rádio -quando na verdade o conteúdo é menos importante para os usuários do que a habilidade de se comunicarem uns com os outros. As pessoas gostam de se comunicar, por isso o e-mail, as redes de P2P etc. são os vencedores -como os sistemas de mensagens eletrônicas SMS nos telefones celulares.
O terceiro erro foi recorrer a muito financiamento logo de início, quando a difusão via internet segue uma espécie de curva em “S”- devagar no início, se espalhando aos poucos pelo boca-a-boca e então explodindo algum tempo depois. Os custos têm de seguir esse mesmo padrão!

Gostaria que a sra. traçasse a relação entre os milhões de downloads de músicas feitos em programas como Napster ou Kazaa (de troca de arquivos via internet) e a falência do modelo “astro pop”.
Não sei se a era do astro pop terminou -alguns hoje têm o potencial de alcançar mercados verdadeiramente globais. Mas a tecnologia permite que tenhamos estrelas de “nicho”, pois os custos são mais baixos e é possível atingir um segmento específico dentro de um mercado muito maior.
Assistiremos a uma variedade muito maior dos tipos de música que são comercialmente viáveis.

Por que a música parece ser a área em que as novas tecnologias se saem melhor?
Não apenas música, mas também pornografia, jogos, remédios. Tudo aquilo que entope sua caixa postal de e-mails! Sexo, entretenimento e estratégias de enriquecimento rápido: voltamos à natureza humana.

E qual é o papel da genética em termos econômicos?
A tecnologia genética está se tornando largamente importante -será um mercado vasto. É baseada em ciência da computação -pois não é possível seqüenciar genes sem computadores baratos e poderosos-, mas irá envolver questões que dizem respeito às nossas vidas. Eu estou muito preocupada com o conceito de propriedade intelectual, por meio do qual as empresas de biotecnologia estão garantindo seus lucros. O benefício social de algumas descobertas será muito maior que o benefício privado -os remédios contra a Aids são um exemplo-, e precisamos descobrir um modelo melhor que o sistema de patentes vigente para tornar a tecnologia amplamente disponível, encorajando, ao mesmo tempo, a inovação.

Como o “economês” e recentes desastres financeiros ajudaram a derrubar a reputação da economia como ciência?
A economia acadêmica é por vezes é muito específica. Há muito jargão e muitos economistas ruins falando bobagens na TV. Eu queria que os entrevistadores desafiassem o jargão vez ou outra e pedissem para que o economista renomado explicasse o que ele quer dizer. Meu livro mostra que é possível explicar economia em termos diretos.
Existe um outro fator, no entanto. A reputação da economia também sofreu devido ao fato de outros tipos de intelectuais não acreditarem ser possível aplicar métodos da ciência à sociedade. Eles preferem uma abordagem mais literária ou cultural.

O mercado realmente age como um ser vivo ou isso é apenas uma boa metáfora?
Pode ser elucidativo pensar no mercado como uma estrutura social, como um formigueiro. Na verdade, isso nos afasta de conversas a respeito do “mercado” na forma abstrata. Mercado é o sistema de relações entre as pessoas, e as regras sociais dos mercados são muito importantes para que ele funcione.

Já que a sra. se refere à economia como sendo uma filosofia, acreditaria que possibilidades utópicas ou distópicas, como sociedades sem classes ou o colapso financeiro mundial, são apenas ideais e intangíveis?
O século 20 foi uma demonstração dos perigos da tentativa de aproximar a sociedade de um ideal abstrato, de qualquer forma. Meu tipo de economia é uma filosofia bem pragmática, que não almeja um mundo ideal, e sim fazer melhorias neste em que vivemos a partir das evidências disponíveis.
John Maynard Keynes é famoso por ter dito que, quando as evidências mudassem, ele mudaria de idéia -e por isso era um economista formidável.

Rogério Duprat

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Mais textos redivivos, desta vez a entrevista que eu e o Senhor F fizemos com o maestro tropicalista Rogério Duprat, para a primeira capa de revista que os Mutantes tiveram no Brasil (trinta anos depois, dá pra crer?), na gestão Emerson Gasperin da falecida Bizz, na virada do milênio. O próprio Tomate participou do encontro, mas interferiu menos que e Fernando no papo com o maestro e preferiu ficar apenas como testemunha.

Duprat, o maestro da revolução
* Por Fernando Rosa/Alexandre Matias

O maestro Rogério Duprat tem uma importância na história do tropicalismo e do rock nacional por vezes menosprezada. Em edição anterior de Senhor F, o maestro foi manchete da revista, com texto sobre a sua obra e, especialmente, sobre o seu disco mais raro – A Banda Tropicalista do Duprat, que gravou com participação dos Mutantes, em 1968. Nesta edição, trazemos entrevista com Duprat, que continua jovem, irreverente, antenado e, principalmente, consciente do papel que ele e seus parceiros de aventura tropicalista significam para a música brasileira.

Como é que um maestro com formação erudita, com com contato com músicos de vanguarda, concretistas, acaba no rock, no pop?
Eu sou um músico multimídia. Eu já nasci assim. Acho que não é de estranhar. O que eu acho que é uma coisa da minha geração, essa coisa de atacar em várias frentes, um troço que foi comum. E temos casos parecidos como o meu. Amigos meus como Júlio Medaglia, Damiano Cozzela; houve outros casos. Eu tive oportunidades melhores do que os outros. Quer dizer, meus primeiros instrumentos foram gaita de boca, violão cavaquinho; foi antes de eu saber ler música; eu era um olherudo, não lia música, fui aprender a ler música depois. E aí, claro, trabalhando na área erudita, com a Orquestra de Câmara de São Paulo. Em seguida, fazer concurso, o violoncelo… fazer concurso e entrar na Sinfônica de São Paulo, estava me formando na profissão de músico. Aí, sim, dentro da profissão, começaram a aparecer as ramificações, até por necessidade fisiológica, para sobreviver a família. Eu me casei muito cedo; aos 21 anos já tinha uma filha. Isso tudo tinha que comer. E nesse tempo tocar só no Teatro Municipal não bastava, não era um salário. Então, fazia várias coisas. Aí, comecei a gravar muito; com isso, conheci muitos músicos populares, tocando em gravação de filmes, por exemplo, trilhas de filmes, enfim, muita música popular e, aí, acabei ficando muito amigo de Agostinho dos Santos, por exemplo. Toquei no que viria a ser, mais tarde, a Rede Globo, em São Paulo, era a Vítor Costa, era rede de televisão, não sei, não lembro o nome. Mas ali era toda a turma da Rádio Nacional, do Rio, que circulava para cá, porque aqui também chamam Rádio Nacional. Era Rádio Nacional e Televisão. Ali, a gente também conheceu muito músico popular. Eram os pré-roqueiros, os primeiros roqueiros eram ligados à vertente de Elvis Presley mesmo.

Você foi arranjador da Gravadora Vilela Santos? É desse período?
Vilela Santos… !

Você produziu o “Vigésimo Andar”, do Albert Pavão?
Pois é (risos)! Eu queria lembrar isso e não estava lembrando…

Quem mais produziu, nessa época, além do Albert Pavão? Baby Santiago, The Rebels… ?
Esse pessoal eu acabei conhecendo. Aí, sim, eu já era músico profissional, tocando em orquestra basicamente, e comecei a escrever para o Ataliba, como é o nome dele… ?

Era VS, o selo, o nome do selo era VS. De Paulo Vilela e Ataliba Santos.
E, aí, então, comecei a fazer vários arranjos e, na verdade, antes de fazer arranjo, eu estudei composição. Inclusive fui “mamar” nas vacas sagradas: Boulez, Stockhausen, aquele pessoal da música de vanguarda européia. Nós éramos afilhados deles. Um dia, Kollreuter – não sei se já ouviram falar – foi esse cara que trouxe essa coisa toda pra cá. Embora eu tivesse estudado principalmente com gente ligada à música nacionalista, “camarguista”, Olivier Toni e Claudio Santoro, com quem trabalhei em composição, orquestração, essas coisas. Fiz também um conservatório aqui, chamado Villa-Lobos. O Conservatório Villa-Lobos foi a minha formação em violoncelo, com as matérias complementares. Mas, aí, eu já tocava muita música popular, já estava familiarizado com essa coisa, e foi quando comecei a fazer esses arranjos aí, para a VS e a Penta. Tinha dois selos.

Alberto Pavão diz em seu livro que você assinou Rudá, no arranjo de Vigésimo Andar, para não ser cúmplice de um rock… Como é que é essa história?
Rudá é o nome do meu filho. Eu tinha um pouquinho assim de prurido erudito, de aparecer como compositor, porque eu era compositor de música de vanguarda, junto com – não sei se você sabe – as ligações que nós tivemos foi com os poetas concretos, Décio Pignatari, Augusto e Haroldo de Campos e outros. Fizemos festivais de música erudita, música de vanguarda e tal. Eles tinham uma revista importante – não lembro o nome -, uma revista a que a gente também comparecia, escrevendo artigos. Fizemos um grande manifesto, etc. Mas aí foi na volta, exatamente, na volta desse trabalho em que fui lá, “mamar” nas tetas culturais, é que a gente viu lá os “cagistas”, aqueles caras ligados ao John Cage (músico concrestista americano). E descobrimos, então, toda uma fatia de produção ligada ao acaso, ao happening, essa coisa, e começamos a fazer isso aqui. Eu, o Júlio Medaglia, o Damiano Cozzela, o pessoal que assinou aquele tal manifesto. Esse manifesto dizia exatamente isto: “chega desse negócio de coisinha da música erudita enfiada só dentro do teatro, pra meia dúzia de milionários e tal. A gente tem é que sair para a rua, fazer música na rua com os meios que houver; se forem bons ou maus, isso é outra coisa. Mas fazer o que for possível”. E aí que me aproximei deliberadamente da música popular. E é claro, nós somos do tempo em que a gente dançava os roquinhos, eu tinha 14 anos, eu já conhecia a minha mulher, nós dançávamos bem pra burro; íamos a todos os bailecos e dançávamos tudo – bolero, rock, samba, o que pintasse, e Gonzagão, que o Gil faz agora um show… Eu tocava todas as músicas do Caymmi, especificamente do Caymmi e do Gonzagão, acompanhado de violão.

Mas a aproximação em relação ao rock foi por motivo financeiro?
É… não só; também, é claro, eu já disse aqui… mas também porque a gente quis eliminar as fronteiras. Não deixando que se falasse que isto aqui é música erudita, isso aqui é música popular. Acabar com isso; a gente cantava e dançava tango, qualquer coisa. Então, todas as coisas estão aí, que são para a gente fazer mesmo. Nesse caso, nessa primeira fase aí, de arranjador, tinha um cara interessante que se chamava Edmar Aires Abreu – não sei se vocês ouviram falar. Ele era uma espécie de diretor de artístico nesses selos. Uma coisa grandiloqüente… quase sinfônica, mas com temas… Foi assim que começou. E ali, depois disso, eu não parei mais. Aí, vêm os prêmios, um prêmio aqui, outro ali, um faz uma badalação, outro faz outra. O povo brasileiro é o rei de jogar para o alto as coisas: é o maior do mundo, é o melhor do mundo, aquelas coisas; adoram dizer que em tudo são o melhor do mundo. Não é nada. Era uma bosta igual às outras. Nada disso. Todo esse trabalho ainda era uma coisa incipiente; a gente ainda não tinha descoberto o grande filão do pós-rock. Isso aqui é 1960.

Como foi que vocês descobriram esse filão?
Isso aí foi mais ou menos na era dos festivais, um pouquinho antes nós começamos a ouvir Beatles. Depois, fui para Brasília e aí a gente já estava ouvindo muitos os Beatles; começaram a aparecer os discos em fins de 64, 65. E lá fizemos alguns concertos muito interessantes. Uma das razões de os milicos terem invadido, era que eles achavam que aquilo era subversão, era música feita com aparelhos eletrodomésticos, leitura do jornal do dia… O coro era assim: todo mundo tinha o jornal do dia e, aí, a gente indicava entre nós um que era o maestro e, então, ele dava a dica. E o cara lia o que tinha na frente. Quando ele chamava uma dica, todo mundo lia, “tuque”, o que tinha na frente. Era uma balbúrdia total. E outra coisa: ninguém sabia quem era professor, quem era aluno, o que fazia parte também da nossa jogada e não era tão subversivo assim. A gente estava voltado para o mundo e os caras eram uns “caretas”. Não é só porque eles eram fascistas – eram caretas, filhos da puta mesmo. Aí começar a interferir cada dia mais, e nós todos, 200 professores, pedimos demissão e fomos embora.

Você, então, estava entre os 200…
O Cozzela também, o Cláudio Santoro…

Os Beatles são os elementos de ligação com essa mudança, dessa sua aproximação com o rock, é isso?
É, não só os Beatles, mas a também outros grupos. Em 62/63, eu vi os filmes dos Beatles na Europa.

Você travou contato mais próximo com os Mutantes na preparação do arranjo de “Domingo no Parque”. Mas, antes disso, já tinha trabalhado com O’Seis?
Vou contar uma historinha, como foi a coisa: quando nós voltamos a Brasília, nós começamos a pesquisar esses caras, esses grupinhos que já eram Jovem Guarda. Tinha, então, o Solano Ribeiro, que é produtor até hoje, está produzindo agora esse novo festival da Globo. Solano Ribeiro, com o jornalista Chico de Assis também, e outro cara que virou cronista esportivo, Alberto Helena Júnior…

Foi ele – Alberto Jr. – que deu o nome de “Mutantes”, que batizou os Mutantes?
Não sei.

Na biografia dos Mutantes…
Não sei. Acho que não é verdadeira essa informação… Pra nós foi ele quem achou Os Mutantes. Ele que andava querendo achar os Mutantes.

Ele que achou os Mutantes? O’Seis?
Ele que achou, porque ele começou… A gente insistiu: vamos ficar atrás desses grupinhos que fazem a Jovem Guarda, porque é o que tem de rock aqui, goste ou não goste, é isso o que tem. Então, muitos eram fraquinhos, mas tinha um cara aqui também… Albert…

Albert Pavão?
É, Albert, que era…

Irmão da Meire Pavão… .
É .. Pavão (entusiasmado)!! A Meire!! A Meire era a irmã dele, o pai deles… era…?

Theotônio Pavão.
Ah, isso mesmo… Exatamente… Eu fiz nesse selo aí o “Vigésimo Andar”… E tinha outros roqueirinhos também… O Helena nos levava. Olhe, tem um grupo na Bela Vista; a gente ia ver, é bonzinhos, quem sabe, e tal. Mas sei que quando chegamos lá, tinham Os Mutantes lá; quer dizer, quebrou a nossa cara, porque eles estavam fazendo os Beatles igualzinho os Beatles. Faziam Beatles perfeito. E já tinham já suas músicas, faziam suas músicas. E aconteceu que, então, nesse ano de 67, o Júlio Medaglia, que estava lá no júri de seleção da Record, aí por acaso, ele, conversando com o Gil, ele viu que o Gil estava meio malcontente, não estava satisfeito de fazer só com orquestra; como todo mundo fazia aquele negócio de festival; ele queria botar pra quebrar também. Ele e Caetano já estava pensando que tinha que chegar à música pop. Era a última palavra, aquela coisa que estava misturando, comportamento diferente, não mais só musiquinha. Então, o Gil, conversando com o Júlio, perguntou quem ele achava que podia ajudar no arranjo de “Domingo do Parque”. E ele me apresentou ao Gil. Aí, Gil disse: “veja, o que você quer fazer?” “Eu acho que o negócio é partir para o pau mesmo, botar rock, misturar com essa coisa baiana de vocês, e mandar o pau”. E ele: “Está bom, você conhece alguém?”. E eu disse: “eu vou trazer as únicas pessoas que servem pra você… Dá um tempo, um dia ou dois…”. Então, peguei Os Mutantes, porque eu já estava “mamado” neles, porque eles eram um grupo de uma pureza sensacional, aquela coisa das primeiras músicas deles. Nenhum deles, nenhum desses grupos tinham aquela ingenuidade gostosa, agradável, aquela encenações que a Rita já fazia, e eles também, os meninos…

Tinha um elemento nos Mutantes que era um elemento de subversão também…
Ah, sim! Não tinha nada disso… Ao contrário, eram antinacionalistas.

Engraçado você falar dessa aproximação que teve com o Gil, porque eu acho assim, que, pela observação histórica, sem os Mutantes e sem a sua presença, o tropicalismo não teria esse grau de…
Talvez não tivesse essa cara que teve…

Há um elemento de subversão, essa coisa de romper mesmo…
O grupo, que fez “Alegria, Alegria” com o Caetano, também era bom. Mas era frio, não era quente, era frio… Era argentino… Então, eles tinham assim, eles faziam, tocavam bem, mas não tinha essa coisa inexplicável que Os Mutantes tinham. Essa grandiosidade… ingênua, espontânea, tudo isso.

E quando vocês começaram a tratar a tropicália como movimento, tanto a tua influência, quando a dos Mutantes foi definitiva para dar esse caráter mais de subversão artística?
A influência foi total, dos Mutantes, porque eles (Gil e Caetano) passaram a fazer espetáculos com os Mutantes. Daí para a frente, depois, os festivais para a frente, todos eles são mais…

E a sua influência deu uma espécie de respaldo erudito; se um maestro não estivesse no meio…
Não, todo mundo conhecia; no fim de 67, todos conheciam aquele disco Sgt. Pepper’s e é claro que, quando viram os meus arranjos, disseram “é esse cara aí”. Porque eu não era melhor nem pior do que os outros!

Por ser um maestro erudito, exterior, essa coisa toda, não dava um certo aval? Uma credibilidade, uma sustentação ao movimento?
Não sei, mas foi a união da fome com a vontade de comer. Estávamos todos a fim disso aí. Não é que eu fiquei dando aula para eles; ao contrário, eu que aprendi pra burro com os Mutantes, com o Gil, com o Caetano, com todo mundo, como fazer uma coisa, que pode ser ao mesmo tempo com uma certa correção, com uma correção que a gente já conhecia, de músicos, e fazer isso, de uma coisa popular e avançada, uma coisa na frente dos Beatles.

Tem uma história de que, antes disso, você teria trabalhado com O’Seis, o pré-Mutantes; um projeto de música, com Solano Ribeiro, pra fundir música sertaneja com rock?
Aí, sim, mas isso era o Chico de Assis que forçava mais a barra. Eu também achava que podia, porque estava crescendo essa faixa sertaneja. Só veio a explodir bem mais recentemente, só há poucos anos que explodiu, pra valer, esse pé no saco que agora você não consegue ouvir outra coisa…

O rock rural depois, que contou com os seus arranjos, por exemplo, em Terço, Bendegó, não seria um desdobramento dessa idéia original?
É, a mistura veio. Com Alceu Valença, (Geraldo) Azevedo. Fiz um disco inteiro com Alceu Valença e Azevedo. Era uma dupla, você sabe. Fiz um LP inteiro. Mas também fiz com João Bosco. Enfim… Não é que eu só queria ver rock daí para a frente, não é. Tanto que chegou uma hora em que eu não agüentava mais ver rock, isso sim… Quando passou mais dois ou três anos e o pessoal todo repetindo a mesma coisa, me encheu o saco e comecei a puxar o carro. Fui fazer mais tarde alguma coisa com o Terço, com Sá, Rodrix & Guarabyra.

Com o Bendegó…
Enfim, ao que me dediquei e com mais força foi nesses dois anos – 67 e 68 – de aproveitar aquela… Era um material humano reunido… E que os milicos fuderam, prendendo os caras, no fim de 68. Eu viajei com os Mutantes para fazer uma música só deles, naquele festival da França… lá de Cannes; era D. Quixote. Eles foram defender lá e eu fui com eles e orquestra. Quando nós voltamos, o Caetano estava preso, estava todo mundo apavorado, e nós, na rua, porque o pessoal da Philips… , enfim, passava aqui, nós fedíamos, tínhamos fedor subversivo. Então, não valia a pena ficarem muito ligados a nós, aquela sujeira… Então, todo mundo aí começou a fugir. No fim de 68 para 69, aí foi terrível – acabaram, proibiram, não podíamos mais fazer teatro.

Foi o AI-5.
Já estava armado um esquema muito bom com o Guilherme Araújo. Esse cara era um puta cara, um cara com uma belíssima cabeça…

Como é que era a coisa do estúdio? Por que vocês produziram verdadeiras loucuras que só os Beatles eram capazes disso. Você fala com entusiasmo muito grande dos Mutantes. Eu queria que você falasse como começou o teu namoro com os Mutantes que, para mim, é um dos períodos mais férteis da música brasileira? A partir daí como é que você descobriu que aquele grupinho que imitava os Beatles direitinho podia…
Pensava-se que esse grupo tivesse algumas ligações com a TV e tal. Houve um festival, onde apareceu o Milton Nascimento, na atual TV Canal 9, antes de aparecer esse festival da Record, que é onde apareceu Caetano, Gil. Esse outro festival foi bem badalado, era TV Excelsior (Canal 9). Ela tinha tentado ser uma TV de alto repertório, só dedicada às coisas culturais. Eu também atuei nesse tempo, um ano antes, ou dois anos antes. Mas aí, de repente, descobriram que o negócio era festival de música popular. O Milton Nascimento foi uma pessoa que apareceu em São Paulo, nesse festival. A idéia que se tinha era fazer uma espécie de programa dos melhores roqueiros. Havia outros grupos, eu não me lembro agora, mas sei… Depois de conhecer os Beatles, os Mutantes, era difícil ficar trabalhando com outros mais primitivos, porque eles eram avançados em certas áreas, eles tinham a mãe pianista, pianista erudita, fazia concertos, cheguei a tocar com ela…

E um dos irmãos fazia os instrumentos, o Cláudio César…
O irmão, era um espetáculo esse cara… Isso ajudava muito, porque não precisava ficar esperando vir a guitarra dos Estados Unidos; ele fazia, quando tinham alguma idéia, ele faziam imediatamente lá, um trocinho deste tamanho (mostrando o gravador), que…

Mas quando começou essa descoberta de que os Mutantes eram mais do que um simples grupo de rock prefeito, que podia ser maior do que os Beatles?
Era um time pesquisador. Eles estavam permanentemente… Depois, eram muito atentos a todas as coisas. Aquelas brincadeiras da Rita eram coisas que os americanos andavam fazendo, aquela coisa de simular certa ingenuidade, fingir que é bobo, aquelas coisas, e só eles sabendo que aquilo era gozação. Então, isso aí foi se desenvolvendo, eles acabavam fazendo disso um retrato, a cara do grupo era isso. Tinha um negócio de tocar instrumento raro, uma harpinha. Enfim, eu só podia cair de amores por eles, não tem outro, era o maior grupo que o país tinha dado até ali.

Como era essa coisa de estúdio, vocês produziam coisas fantásticas que nem os Beatles faziam…
Nós tínhamos essa história, que você já sabe, de misturar todas essas músicas, todos os tipos de música, e eu em especial tinha uma predileção por gozar a música, fazer gozação, algumas pornográficas, por exemplo, na música – não é uma música, é uma peça do Caetano… esqueci a palavra – como é o nome?

“Épico”?
Foi aquele que diz que foi na Bahia, quando eles estavam confinados lá…

“Acrilírico”.
“Acrílírico”! Ele acabou me dando a parceria. E o Gil também tocou na parceria; de um Gil com dois Rogérios, o Rogério Duarte. No “Acrílirico” tem vários sons feitos num estúdio. Um deles, um desses sons é um peido meu (risos). Fiz questão absoluta de entrar no estúdio – e o Fritz era um operador, também entrou na gozação, um ótimo operador. Aí eu dizia, “dá um tempo”, fique atento aí. Um dia eu vou contar para todo mundo qual é o lugar em que tá esse peido, eu tenho que localizar de novo, mas tá lá. Isso fazia parte do nível de gozação que a gente estava disposto a assumir.

E a história do LP A Banda Tropicalista do Duprat…
É, eu não gosto muito daquilo. Na verdade, eles forçaram muito. Para começar, aquela foto… O pai do Edu Lobo era produtor – já falecido, Deus o tenha em bom lugar – mas eles não entendiam as coisas. Dentro da gravadora, eles não entendiam bem as coisas. Então, forçaram a barra, me fizeram subir em cima da mesa para bater fotografia… Coisa tão boba, ingênua, cretina, mas enfim, acabei fazendo porque queria fazer o disco, tem umas coisas que eu gosto. Mas ele sofreu um pouco do efeito desse negócio do repertório, de me forçarem um pouco algum repertório da música internacional, que era um pouquinho mais comercializada. Mas agora, sei lá, eu teria…

Quem é o autor da capa do LP A Banda Tropicalista do Duprat?
Não sei.

Porque essa capa é a primeira a satirizar o Sgt. Pepper’s dos Beatles…
Eu não sei quem fez esse trabalho. Eu lembro que eu não interferi na escolha. Eu disse: não é meu problema, manda fazer. Quem acha que sabe fazer… Não sei. Uma hora vou perguntar pro Manuel Barenbein… Outro cara espetacular, o Mané Barenbein. Foi sorte nós termos esse cara. Já era da Polygram, Phillips… Ele é um cara que deu a maior cobertura. Defendia a todos nós perante a direção da gravadora, porque não era fácil, com o francesão que tinha lá, que só queria botar besteira, não é?

Em As Amorosas, têm duas músicas com os Mutantes, que também participam do filme? Isso foi lançado na época, um lp da trilha? Existe master disso?
Não! Foi feito só pro filme.

Só para o filme?
É, eles aparecem no filme.

O Peticov (Antonio) também aparece no filme, no papel de um hippie.
É num boteco… É um pouco forçado aquele boteco…

Quando tu entrou nessas histórias de música pop, tu rompeu com teus colegas eruditos?
Alguns. A maioria não. Eu continuei a fazer, trilhas de filmes, essas coisas… Agora, quando eu voltei para Brasília, já não voltei para a Orquestra Sinfônica mais. Porque eu já havia experimentado uma vida independente daquilo. Eu não quis mais tocar na Sinfônica. Voltei e pedi demissão, eu havia pedido licença antes; voltei e pedi demissão, não quis mais tocar na Sinfônica. Não que eu tenha sofrido alguma restrição profissional por causa disso, acho que não. Ao contrário, os músicos que continuaram a gravar comigo, músicos eruditos.

Mas não era uma coisa meio contraditória, assim, tipo… Com os Mutantes tu fazia gozações com música erudita e, depois, tu gravava música erudita de verdade não era uma coisa meio contraditória?
Eu não tinha… uma das coisas que eu fiz nesse selo ainda é fazer tudo isso em bossa nova. Não sei se você chegou a ver, tocava clássicos em bossa nova… . Soltaram até com dois títulos, acho que eles tinham dois selos para isso, para jogar uma parte aqui outra lá… Penta e o outro VS, era o mesmo disco, a mesma mistura, ela saiu com o nome de “Clássicos em Bossa Nova” num deles e, no outro, com outro nome. Mas eu vinha fazendo isso… e eles gravavam comigo…

Quando viste os Mutantes, te apaixonaste por eles. E eles, se apaixonaram por ti…?
Acho que sim. Pergunta pra eles. Precisava ver a festa que a Rita Lee fez há pouco tempo. Ela me pediu uma faixa, o “Gosto do Azedo” e, aí, na gravação pela MTV lá no Rio, ela insistiu que eu fosse; fez a MTV, obrigou a MTV a pagar, minha mulher foi junto e, puxa!, na hora que ela tocou o troço, a festa que ela fez. Ela é tão minha amiga quanto eu dela. Ela fez uma puta festa, sobre o meu arranjo, lá na gravação. Foi um teatro lá.

Essa admiração era recíproca?
É. O Arnaldo também, mesmo depois. Vocês souberam que ele teve um problema de saúde, seríssimo, ele pirou um pouco, mas foi internado num hospital, que deixaram janela aberta. Onde é que já se viu? Um hospital que tem um departamento dedicado a doenças mentais, deixam uma puta de uma janela aberta, o cara pode se atirar…

Você tem contato com o Arnaldo hoje?
Ultimamente, pouco. Mas ele foi muito à minha casa lá em Itapecerica. Ele mora num sítio. Ele mora em Juiz de Fora, Minas Gerais. A mulher dele também é muito conhecida nossa, conhecida de outras coisas. Mas não é tão fácil a gente se encontrar. Agora, com o Serginho, perdi um pouco de contato porque ele viaja para caralho, virou jazzman também. A vida do Serginho é na ponta dos dedos.

Você consegue fazer um retrato de cada um dos Mutantes, dentro do estúdio, qual era o papel de cada um deles, o Arnaldo fazia isso, a Rita fazia aquilo, o Sérgio entrava com… Eles eram grandes instrumentistas?
O grande músico, inventor mesmo, criador era o Arnaldo, sem dúvida. Agora, charme, essas coisas eram com a Rita, e o Serginho era mais coisas técnicas, ele não sabia música, por exemplo, do ponto de vista de música erudita, mas com guitarra ele tocava qualquer coisa, até fazia brincadeiras. E o Arnaldo era mais universalista, um cara mais John Lennon… por sinal, saiu uma coisa sobre o John Lennon… eu não acredito… você viu?

Que ele fazia sexo com a mãe dele1… Inclusive a matéria que saiu antes, há um mês, é que ele financiava o IRA. Então, acho que é uma campanha…
É foi a primeira coisa que pensei; aí tem treta; coisa editorial… parece que têm coisas inéditas. Há pouco tempo também, a japonesa lá… ela teria material inédito para soltar…

Quando os Beatles acabaram, tu não estavas mais no rock? Tu já tava de saco cheio do rock?
Acho que já estava, sim.

Aquela história que tu disse aqui, aquela coisa que ficaste dois, três anos no rock?
Eu não lembro as datas.

Você falou do fato de o Arnaldo ter pirado no meio dos anos 70. Eu queria pegar esse gancho para falar de outra coisa. Eu queria saber como era a relação dos tropicalistas e, especificamente, dos Mutantes com drogas, e como isso se refletia na música, como era. E no estúdio? E a tua própria experiência também…
Todo mundo consumia um pouco. Mas, eu, por exemplo, nunca fui às drogas pesadas, não cheguei… Acho que também Caetano e Gil, não. O Arnaldo, um pouco; a Rita, uma ou outra experiência, talvez. Mas, maconha rolou pra todo lado. Quase igual ao tabaco… Toda essa área aí… maconha…

Quando você fala drogas pesada, o que é? Ácido? LSD?
Ácido, eu não ataquei, eu não tive coragem. Eu já tinha várias notícias, eu não estava afim de pirar clinicamente.

E como funcionava a relação com as drogas musicalmente? Porque, nos Beatles, o espelho, o parâmetro com os Mutantes, tinha uma lei assim de que nos estúdios não se usa droga porque atrapalha…
Eu nunca usei para facilitar êxtases, essas coisas… na minha presença, frente à música, ao trabalho, procurei estar sempre careta, sempre bem careta, para ver as coisas que estavam acontecendo. Eu recomendava a eles; várias vezes falei “tudo bem, não tenho nenhum preconceito, façam tudo o que quiser, mas esse negócio de chegar ao estúdio, encher a cara de todas as coisas e chegar lá e ficar duro no chão… ”

Mas acontecia essa coisa com os Mutantes?
Não. Eu acho que eles não… Na hora em que eles iam trabalhar, acho que não; talvez em shows. Mas em gravações não; em gravações, eles estavam sempre caretas também, porque não dá certo, não combina…

No começo do rock, tu estavas presente. Na Tropicália, mais ainda; na “pré-invasão nordestina”, que foi o primeiro disco gravado pelo Geraldo Azevedo e o Alceu Valença, em 72, lá estava o Duprat. Como é que tu explicas isso?
Você conhece o Brasil. Até hoje, é assim; aparece um cara que faz uma coisa diferente, todo mundo vai levantar o cara… Com a mesma facilidade, tira a mão dele e vai ver ele cair. Então, era isso, todo mundo achava que tinha uma fórmula secreta qualquer. E não tinha nada disso. Eu sempre achei que podia ajudar todo mundo, com a minha experiência.

Mas você tinha consciência disso, que você estava sendo a moda da vez, que já, já eles iam largar…
É esse negócio da moda, para mim, tem isso; o Brasil tem isso, os Estados Unidos também têm; é esse negócio da obsolecência programada…

Em 63, você e o Cozzela fizeram experiência ou gravaram com um IBM 1620, com cartão de perfurar e tal… Como foi isso naquela época? Como é que tu vê agora essa coisa da música eletrônica?
Era uma coisa primitiva porque o computador com que fomos trabalhar tomava três salas dessas daqui… Era verdade. Fora a impressora, que tomava outra sala.

O computador era de quem? De um banco, de um órgão?
Era da Escola Politécnica, da USP.

Com o pessoal viu na época o uso pouco ortodoxo do computador? Esse uso artístico do computador?
Ah sim, mil gozações. Não tinha alma, cadê a alma? Aquela coisa dos italianos, que gostam de ópera, da grande alma. A resposta foi sempre essa… Ih, esses caras estão loucos…

Hoje, a música eletrônica também tem essas barreiras aí. “Essa música aí é feita com botãozinho, isso não é música”…
Isso aconteceu com a guitarra. Todos os puristas da música brasileira…

Teve até passeata contra a guitarra, com Elis Regina, Edu Lobo, Vandré… A MPB mais tradicional organizou uma passeata contra a guitarra elétrica…
Foi a mesma coisa, o que aconteceu com o pessoal da música erudita em relação à música atonal em geral. Foi a mesma coisa que aconteceu também com os caras da MPB, que jamais nos perdoaram. Eu não tenho nada contra esses caras, mas o fato é que o próprio Chico queria distância, não se comprometia, não queria nada com a gente.

Mas em 72 você fez um arranjo de “Construção” e “Deus lhe pague”?
Eu estava no Rio e ele estava fazendo um show no Canecão. Alguém lá nos pôs em contato com alguém da gravadora, talvez, fosse o próprio Barembein, não tenho certeza. Eu estava no Rio fazendo outra coisa, gravando outro disco, não sei o que era. Aí, veio alguém, eu já tinha ouvido a música “Construção”, não sei se em show. Interessante, é uma brincadeira com proparoxítonas. Então, na hora que me mandaram avisar, eu fui direto lá, dizendo que ele queria, que ele estava me chamando. Eu fui direto lá, fui ouvir, estavam ensaiando no Canecão aí, tudo bem; eu ouvi e pedi, então “me arrumem uma fita, eu vou trabalhar”. Tinham pressa. Tinha o negócio de pressa, já estavam começando a gravação. Aí, eu fui para a casa do meu irmão que morava no Rio e escrevi a coisa, porque eu não podia ficar no Rio, tinha que voltar para São Paulo, e deixei na mão do Barembein, ou de alguém lá.

Mas foi de um dia para outro?
De um dia para outro. A parte dele estava pronta, com MPB4. Mas também foi a única coisa que eu fiz com o Chico. Depois, ele viajou também… Foi pra Itália. Perdi o contato.

Vocês falaram nesse negócio tipo rock estava o Duprat, “Tropicalismo” – estava o Duprat, começou a “Invasão Nordestina” – estava o Duprat. Mas, de repente, Duprat saiu da discussão… Na década de 80… , o Duprat deixou de ser moda?
O problema maior aconteceu com aquela coisa do inferno, em 69, depois do AI-5. Nós todos ficamos na rua, de cueca com as mãos no bolso… Os baianos foram proibidos de voltar, tiveram de ficar confinados.

Você sofreu alguma sanção política?
Direta, não. Só mais tarde, quando tiveram no júri, lá da Globo, com aqueles caras nos pegando pelo cu das calças.

Essa é uma história que foi desenterrada agora, com aquele vídeo, aquele documentário do Walter Franco. Houve uma ingerência militar para o “Cabeça” não ganhar…
A impressão que eu tive, e o Décio, que estava lá, também tinha essa impressão, aliás, até conversamos sobre isso há poucos dias – mas o Solano continua insistindo que não, que foi só política o negócio. Eles cismaram que a Nara Leão não podia ser presidente de júri nenhum neste planeta fascista, que era o Brasil naquele tempo. Talvez existisse as duas coisas, na verdade. Acho uma besteira discutir isso agora, trinta anos depois… Em todo caso, eu continuo achando que foi mais comercial da Globo, porque eles traziam aqueles cantores daqueles países… Têm países, lá, do tamanho deste apartamento, que é um país.

Você trabalhou com Walter Franco. Eu queria que tu falasses um pouco do teu contato com Walter Franco e analisasse a obra dele. Ele tem também esse trabalho de estar voltado mais para a vanguarda do que para a música popular.
É e não, quer dizer, sei lá. O Walter Franco é um um cara multimídia também, um cara que atacou várias áreas, vários tipos de coisas; a gente foi se encontrar, eu produzi o disco dele, o disco dele que tem na cabeça o poderoso Pica-pau. Sabe quem é o Pica-Pau, o Walter Silva (o Pica-Pau); ele tinha programa de rádio, mexeu com a bossa nova… Quem ia produzir o disco do Walter Franco era o Pica-Pau. Quando ele conheceu o repertório e conheceu melhor o Walter Franco, que é uma cabeça formidável, tem uma idéia a cada segundo, é impressionante o Walter Franco… aí, pulou fora. Aí passou para mim, porque ele achou que eu ia ter melhor trânsito, e de fato tive, nós nos entendemos maravilhosamente, o disco foi uma beleza.

É o da mosca – “Ou Não”?
É. É um disco todinho… , não lembro a data, mas… Depois disso, a partir – só para completar esse papo aí – foi uma coisa muito grave; todos ficaram na rua, desmanchou a todos, os Mutantes e os baianos estavam fazendo show juntos, no Canecão, no Rio, e na Boite Sucata, que era do Ricardo Amaral. E ali esquentou a coisa, porque começaram a pegar uns motes mais políticos “seja herói, seja marginal”.

Hélio Oiticica…
Enfim, teve um major que um dia foi lá ver um show, quebrou o pau, foi lá com a Polícia Federal e dedou, entregou. Essa foi a razão. Isso no fim de 68… Isso que gerou a prisão deles.

Talvez seja por isso que os Mutantes tenham partido, depois da saída da Rita, para uma coisa mais progressiva, mais apolítica?
A gente nunca deixou de ser cagista. O Cage era nosso grande modelo. Cage e, enfim, os americanos que tinha por lá. Eu tinha conhecido o Frank Zappa, lá na Alemanha; ele era cagista.

Pergunta – Em que época?
Em 62. Ele não era… Nós nos conhecemos assim. Eu estava com o Gilberto Mendes, o Billy Correa de Oliveira, inclusive eles… ; outros caras, outros brasileiros… Cozzela tinha ido no ano anterior. Os americanos é que estavam fazendo, então, a grande farra na música erudita, fazendo já gozação com os grandes ídolos da música serial. O serialismo era o contrário, era a coisa toda superestruturada, tudo estruturado, tudo amarrado. Eu tenha uma composição que se chama “Organismo”, que vai ser gravada provavelmente nos próximos meses. Era nesse tipo aí, bouleziana, tudo era seriado, estruturação dos sons, a reunião dos sons, a reunião dos grupos, o jeito de cantar, porque também tinha canto. E, aí, o Zappa passou lá e botou, jogou merda no ventilador. O Zappa e outros amigos deles. Ninguém conhecia o Frank Zappa, ele não fazia, não tinha formado os Mothers of Invention, uma coisa caralhal… Não sei se já se já chegaram a ouvir… espetacular. Mas ele estava prestes a fazer isso, mais tarde, às… . Quando nós chegamos, mais tarde, em 69, que eu fui vê-lo em Nova York, já era 69. Enfim, essa geração, aí, que está hoje beirando os 70 anos, como eu, 68 anos, é que fez essa mistura toda. Então, tudo virou uma coisa só. Não tem esse negócio que tem música erudita, tem música popular; não sei o que, é som aí.

Mas também uma quebra de barreiras entre diversos gêneros da própria música popular?
É, esse pessoal, Cozzela, o Júlio Medaglia mesmo, mas fora do Brasil, muita gente fez essa fusão geral de todas as músicas. Não precisa mais da rótulo; tira esses rótulos daí, até jazz e sambão, por que não? Qualquer coisa.

Mutantes vêm depois do Beatles?
Como assim?

Na sua hierarquia, Beatles e, depois, Mutantes?
Ah, é outra coisa; têm coisas que os Beatles não saberiam fazer. “Panis et Circenses”, por exemplo, nós fizemos um happening naquela música. Você pensa que os Beatles fizeram alguma vez? Nenhuma peça dos Beatles era uma coisa assim avançada. Não quero denegrir os Beatles, espetaculares e tal. Mas esses caras estavam na frente.

Já havia essa consciência de ser melhores que os Beatles? Você sabia que os Mutantes eram melhores do que os Beatles?
Eu, pelo menos, sabia (risos). Eu sabia que os Mutantes eram melhores que os Beatles.

O inglês é muito escolar, muito comportado mesmo quando quer ser mais gozado, eles são muito certinhos. Brasileiro já é mais moleque… com um maestro maluco…
É aquela coisa de valer tudo. Você se lembra, tem momento em que a música pára lá, fica só ruído de pratos, “passa a salada aí!”… Isso aí é claro que tinha a ver com o happening que a gente fazia…

E a história de citar Marighella em uma das músicas de Gil, se não me engano?
Eu fiz umas coisas, essa coisa com o Gil e com o Caetano, que era usar emissão de rádio, noticiário do rádio. Mas eu punha em rotações diferentes, que era para ninguém ficar reclamando; os milicos não virem reclamar. Então, teve gente que andou decodificando aquilo lá.

“Ando Meio Desligado”, dos Mutantes, tem uma versão normal do disco; mas existe uma segunda versão ao vivo, e uma outra em que, ao invés de ter sonoridade de órgão meio distorcida e tal, tem barulho de metralhadora, tiros. De quem foi a idéia?
Não me lembro disso…

E “Chão de Estrelas”? Lembra como fizeram no estúdio?
Não, mas eu sei que a gente agia muito coletivamente, é coisa que eu dava a idéia e, depois, eles faziam, e vice-versa.

O Cláudio tinha também grande participação nisso?
Mas na feitura, nos instrumentos…

Você trabalhou com o Lanny Gordin. Como ele era?
Um prazer. É meio jazzista, um cara meio jazzista. Mas um grande músico. No disco da Gal Costa, que eu fiz inteirinho, em todas as faixas o Lanny está, eu nem lembro qual é o disco… O Lanny inventava pacas também. Ele não lia música, mas lia cifras, acordes. Só que ele lia e acrescentava umas 400 notas naquilo que estava escrito. Ele era espetacular.

Olhando uma enciclopédia, que deve ser a mais conhecida, no seu verbete, “en passant”, tem uma referência a tua participação no movimento tropicalista, e o resto é o teu lado erudito. Como é que você vê isso? De não haver o resgate desse teu lado mais intenso, esse lado sobre o qual conversamos aqui…
… Em uma enciclopédia, advinha o que o cara queria botar? Só quer botar coisas enciclopeidais (risos).

Odair José e eu

Mais um da série “textos ressuscitados” – desta vez é a entrevista que fiz com o Odair José para a Bizz da gestão Ricardo Alexandre, em 2006. Na foto abaixo, tirada pelo Cosko, que acompanhou o papo, ainda estou usando a tala na mão direita, que não estava se mexendo depois de um acidente… Que época.

Bizz entrevista Odair José

Unindo folk music com a moral do cais do porto, ele partiu de uma fazenda para a fama “cult” no terceiro milênio. No meio do percurso, foi um herói da música realmente popular brasileira

Música de baixa qualidade. Superstar. Artista de mau gosto. Sexo, drogas e rock’n’roll. Idolatria juvenil. Canções de amor. Sucesso popular. Hormônios em ebulição. Decifrar um artista pop é como lapidar uma pedra preciosa em que cada polimento revela uma nova superfície. Nelas, é possível ver tudo, céu e inferno numa mesma camada, refletindo as ansiedades de quem vê. Como Elvis, Beatles, Roberto Carlos, James Brown, Ramones, RPM, Madonna, Metallica, Mamonas Assassinas e Eminem, Odair José também atraiu amor e ódio em sua longa caminhada – cravando sucessos no imaginário popular que até hoje nos ajudam a refletir sobre a natureza de nossos preconceitos.

Mesmo que longe do dia-a-dia dos milhões de brasileiros que até hoje lembram de suas canções, Odair nunca parou de lançar discos e fazer shows. Seu recém-lançado 31º álbum, Só Pode Ser Amor (Deckdisc), no entanto, sai num momento mais do que propício para sua carreira, quando novas bandas o reverenciam nominalmente – seja nos shows em que os Los Hermanos tocam “Vou Tirar Você Deste Lugar”, na alma das composições dos cearenses Fernando Catatau (do Cidadão Instigado) e Karine Alexandrino ou no disco-tributo lançado no final de 2005.

À sombra de Roberto Carlos como os Rolling Stones acompanhavam os Beatles, Odair sempre optou pelo incerto musical, ao questionar, no imperativo, hábitos e costumes (sexuais, religiosos, conjugais) que eram endossados pelo Rei. Assim, liderou a lenta transformação do pudor brasileiro nos anos 70 (acompanhado pelas pornochanchadas, pelo Pasquim e por Leila Diniz), ao mesmo tempo em que dominava as ondas do rádio e lhe emputavam o título de cantor das empregadas domésticas como se isso fosse um demérito.

Encontrá-lo para uma conversa na varanda de sua casa em Cotia, interior de São Paulo, no entanto, não o encaixa em quaisquer um dos rótulos que forem sugeridos. Sem mágoa nem arrogância, com aquela feição anos 70 que lhe aproxima fisicamente de Zico e Oreste Quércia, e os mesmos olhar distante, sorriso apagado, rosto sofrido e tristeza constante que cantou em “Assim Sou Eu”, eis (mais) um brasileiro médio do interior do fim do mundo que acreditou no próprio sonho e – ao contrário de seus conterrâneos – pode realizá-lo.

Qual é a sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas e chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando eu vi um trio de dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão Natal à minha mãe de. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque pelo meu tamanho, era mais adequado (ri).
Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade, aquelas bandas de coreto, e descia todo dia de bicicleta pra trabalhar na frente da minha casa. E eu ficava esperando ele passar, porque ele me ensinava todo dia um acorde, E assim, eu comecei, até que me pai me deu um violão.
Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Depois mudei pra capital, Goiânia, quando tinha doze anos, quando apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, no colégio. Eu tinha uma bandinha chamada Monft.

Como?
Monft, era as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado pra ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era uma banda famosa, em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Foi quando eu comecei a compor. Depois fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era bem mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada jovem, que era o que os cantores dele não gostavam de cantar. Foi quando eu conheci o Roberto Carlos, num show que ele foi fazer em Goiânia, em 65, com o RC-3. O conjunto do Marquinhos abriu o show. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e o ele falou, “ah, vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nesse “ah vai pro Rio”, eu fui pro Rio.

Com quantos anos?
Nem 18. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. E eu fui na ilusão de encontrar o Roberto. Eu fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…

Fugiu de casa para ser músico?
E com pouco dinheiro. Fiquei num hotel na Praça Tiradentes, e o dinheiro deu pra ficar dez dias, depois eu fui pra rua, dormi na escadaria do Teatro Municipal, em praia, no último toalete do banheiro do Aeroporto Santos Dumont, era espaçoso. Mas eu não acredito na sorte nem em milagre, eu acredito no trabalho – por isso, eu achava que fosse conseguir rápido e consegui, porque o meu primeiro disco eu gravei em 1970, e eu cheguei no Rio em 67, 68.

Como você começou?
Eu ficava no pé dos caras. Ia pras gravadoras e ficava na porta, esperando o cara sair. E igual a mim, tinha umas cem pessoas querendo falar com o mesmo cara ao mesmo tempo. Por isso eu digo que consegui fácil, porqur em dois anos eu gravei um disco, e já fiz sucesso com esse disco.

Antes do sucesso, o que você fazia?
Eu tocava à noite naqueles, com todo respeito, puteirinhos da Praça Mauá, toquei em todos eles. E nesses lugares você tem que tocar de tudo, pra agradar quem tá lá dentro. Tocava Ataulfo Alves, Lupiscínio Rodrigues, o próprio Roberto, alguma coisa de música italiana – era bom porque a dicção era fácil, dava pra enganar melhor. Mas eu nunca me achei um cantor, eu me ajeitava dentro das notas. E de dia eu corria atrás dos caras. E eu fiquei assim um ano no pé do Rossini Pinto, que era um cara que em tudo quanto era disco que saía tinha música dele, do bolero ao rock. Ele fazia versões, compunha coisas próprias, compunha pro Roberto. No que ele prestou atenção nas minhas músicas, ele, que também era produtor de discos, me levou pra gravar, na CBS em 1970, uma música chamada “Minhas Coisas”.

Que fez sucesso.
Ela teve a felicidade de entrar num LP chamado As 14 Mais, que era um LP com um monte de gente famosa, que já saía vendendo horrores, porque tinha Roberto Carlos, Jerry Adriani, Renato Barros, Wanderléia… Aquele pessoal da CBS, que se chamam de Jovem Guarda – eu não gosto deste rótulo porque era um programa do Roberto Carlos – estavam todos naquele disco. E a gravadora de vez em quando incluía um cantor novo – e me meteram lá. E eu já saí com um sucesso, porque o cara comprava um Roberto Carlos e me ganhava de presente.

E sua situação melhorou?
Na medida em que eu comecei a tocar, comecei a conhecer as pessoas. Tinha época que eu tocava em três inferninhos daqueles por noite, e assim fui criando um círculo de amizades. Foi quando eu conheci o senhor Ataulfo Alves, que falou que eu podia morar no apartamento dele – que era um apartamento que ele usava para o lazer. “Só não dorme na minha cama”, ele dizia.

Foi quando você gravou seu primeiro LP.
Isso, que teve uma vendagem boa, 10 mil discos. E lancei um segundo LP, fiz uma outra As 14 Mais e o seu Evandro (Ribeiro), que era o presidente da CBS, não gostou. Porque a CBS era esse segmento do Roberto Carlos, com a guitarra, arranjos do Lafayette, o Renato. Aquilo era uma coisa vitoriosa, tanto que era líder de mercado. Eu gravei uma faixa chamada “Vou Morar Com Ela” e usei um pianista negão, o Dom Salvador, e ficou com um quê de jazz. O Rossini, que era o produtor, deixava, ele não tava nem aí. Era uma música ótima, fez sucesso, mas seu Evandro achou que eu tinha suingado muito e não me botou na terceira 14 Mais.
Meu contrato tinha acabado e eles me deram uma oportunidade de fazer um compacto simples, sem LP, sem As 14 Mais e sem aquele apoio da gravadora.

Um vai-ou-racha.
Um “se vira”. Aí eu gravei “Eu Vou Tirar Você Desse Lugar”, que vendeu 800 mil compactos de cara.

Conta a história da música.
O Rossini era um cara engraçado, porque ele dava esporro em todo mundo, falava palavrão e era extremamente temperamental. “Porra, eu te dou uma chance e você só fez merda, vem gravar aquelas porras. Vou gravar mais um compacto com você, mas se não acontecer nada, você se fudeu, hein!”. Eu não me preocupava porque eu já era um cara conhecido, já fazia shows, se não fosse ali, seria em outro lugar.
Aí eu saí da CBS, que ficava na Visconde do Rio Branco no Rio, e fui pra casa, na Rua do Riachuelo. E nesse trecho, que dá uns quatro quilômetros, andando pela calçada, eu compus essa música. Eu sempre fiz música assim. Não tem aquelas coisas que o pessoal fala que a música “veio”, isso é maluquice. É que como você é compositor, tá sempre compondo. Eu era jovem, tinha 21 anos, e nessa idade você tá sempre querendo fazer alguma coisa. Cheguei em casa e gravei a música e depois mostrei pro Rossini.
E ele: “Nem pensar! Essa música de puta, não! Tou te dando a última oportunidade e você me vem com essa porra de música de prostituta! Você vê o que o Roberto Carlos faz? Beijo no cinema, deixa a garota no portão, eu te darei o céu! Isso é que é o negócio”. E eu falava: “Bicho, eu quero falar de um amor de um cara por uma prostituta”. E ele: “Não existe isso!”. Resultado: ele me deixou gravar a música e a música aconteceu praticamente sozinha, mesmo sem promoção.

Qual sua expectativa sobre a música?
Eu gostava da música, mas a minha viagem era que o que o Roberto Carlos fazia era dele. Ele já havia conquistado isso. Era muito bom, mas era dele. Eu tinha que achar meu próprio caminho. Conversava sobre isso muito com o Raul, o Raulzito, que na época era produtor e ele concordava. “Você não pode ficar na cola de ninguém, senão você não tem uma identidade”. O Raul inclusive, os fãs dele não sabem, tem uma música dele no meu primeiro LP, chamada “Tudo Acabado”, com ele tocando violão e guitarra. Mas voltando, então eucomecei a pensar na música como uma reportagem, me via como um repórter musical. Pegava o que acontece na vida das pessoas e metia na música.
Aí quando o disco saiu, me disseram: “Olha, você se vira, porque você não vai ser trabalhado”. Foi quando apareceu o Paulo César, que vendia shows na época e depois foi empresário do Evaldo Braga e inclusive morreu no mesmo acidente que matou o Evaldo. Ele me disse: “Bicho, já que ninguém trabalha seu disco, vamos fazer uns shows aí. Eu tenho uma Kombi, a gente bota umas cornetas pra divulgar, ninguém tá ganhando dinheiro mesmo…”.
Aí nós saímos pelo estado do Rio, Espírito Santo, sul da Bahia… Isso durou uns três meses e conforme a gente ia andando, percebia que a música ia acontecendo. Você ligava o rádio e fatalmente achava a música tocando. Os shows eram marcados em cima da hora e no começo a gente saía falando: “Hoje, não percam! Evitem filas de última hora!”, tudo cascata, mas depois de um mês a gente foi percebendo que aquela porra tava enchendo mesmo… E a CBS foi me achar em Ilhéus! Me botaram no avião pra ir correndo pro Rio porque o disco já era o mais vendido e o mais tocado no Brasil. E aí eu saí da CBS.

Eles nem fizeram uma proposta?
No dia seguinte que eu voltei, o seu Evandro já tinha um disco montado pra mim: “Olha, tem duas músicas do Reginaldo Rossi, três do Renato Barros, não-sei-quantas do Ed Wilson”, mas eu já tinha um disco montado na cabeça, um disco chamado Assim Sou Eu, que foi o primeiro disco que eu fiz na Polydor. Eu falei: “Olha seu Evandro, eu já tenho um disco pronto na cabeça, tenho a idéia da capa. Eu quero gravar com o Zé Roberto Bertrami, o tecladista da Elis Regina. Eu não quero tocar com o Lafayette nem com a banda do Renato. Não é nada contra eles, eles são ótimos, mas eles já fazem uma coisa que já é deles, eu quero fazer uma coisa que é minha. Eu já tenho as minhas músicas. Eu quero o Waltel Branco fazendo guitarra e arranjos. Queria o Luís Cláudio Ramos, que era irmão daquele cantor Carlos José e depois foi tocar com o Chico Buarque, tocando os violões. Queria tocar com o Mamão na bateria, o Bertrami nos teclados e o Alexandre (Malheiros) no baixo – foi a primeira vez que esses três caras, que depois viraram o Azymuth, tocaram juntos foi num disco meu; eles já se conheciam, mas nunca tinham tocado juntos”. Quem fazia os violões era o Dundum, o Hyldon, da “Casinha de Sapê”, que era muito meu amigo.
Aí o seu Evandro esqueceu que meu contrato tinha acabado e me ameaçou: “Eu vou fazer com você como eu fiz com o Sérgio Murilo, vou botar seu contrato na gaveta e você tá fudido”. Aí eu falei: “meu contrato acabou, seu Evandro (rindo). Eu já estou negociando com o André Midani e o Jairo Pires da Polydor…”.
E fui pra lá. Falei: “Eu venho, mas quero fazer esse disco. A capa assim, preta, com essas músicas e esses músicos”. Quando eu falei dos músicos eu fui até questionado: “Vem cá, esse cara toca com a Elis Regina, o outro com o Chico Buarque, você não acha que não-sei-o-quê?”. Eu falei que eles vão tocar o meu trabalho dormindo, porque o meu trabalho é simplérrimo.

Mas que concepção de artista que você buscava nessa época?
Era um Neil Diamond, Crosby Stills & Nash, Cat Stevens, Neil Young… Queria que as minhas canções tivessem aquela sonoridade. Até mesmo porque eu não tinha aquela formação musical deles. Claro que eu não virei o Cat Stevens, mas pelo menos saiu daquilo de sempre. Porque na CBS, eles usavam muita guitarra, aquela coisa do Renato Barros, de imitar os Beatles. Eu queria violões. Eu vi o Ritchie Havens no Festival da Canção, aquele negão batendo no violão, com o dedo por cima, eu queria aquilo pro meu disco.

E falando das letras, você pensou em colocar sexo no disco de cara?
Não, não foi proposital. O Rossini me falava que o Roberto Carlos era o que era porque ele não ficava falando de puta, era mais poético. “E você vem com esse negócio de cama. Tem que pensar na família”, ele tinha dessas. Eu comentava com o Raul e ele torcia a cara: “Sei não, hein…”.
Mas eu já estava vendo que os namoros não paravam no portão. As pessoas já estavam fazendo sexo mesmo, dentro do carro, atrás do muro, na praia. O sexo estava rolando. Não vou dizer que todos os casais estavam transando antes do casamento, mas 50% estavam. As pessoas tavam indo além dos beijos e do pegar na mão.
E eu comecei a falar disso nas minhas músicas. Esse era o amor que eu via, não sei se por eu ter vivido tocando nas boates, mas a coisa era mais na cama, do tesão, do desejo, do transar. E das separações que deixavam a dor mesmo. Não era aquele negócio de brigar e rasgar a fotografia e depois passar sem olhar na cara, não. Era aquela coisa do cara encher a cara três dias, da dor-de-cotovelo, a namorada ir dormir com outro… O Lupiscínio Rodrigues e o Danilo Moreira já falavam disso, mas para as pessoas, eles falavam de uma forma madura. Eu era um cantor jovem, então aquilo era um absurdo – mas também era novo.

Até que chegou a incomodar a censura.
É, mas não era essa coisa de música de protesto, de resistência, não… O negócio é que eu sempre falei o que penso, não sou estudado. Eu nunca deixei de falar o que eu penso, você pode ser o Papa que eu vou dizer, tou cagando e andando.
Agora, quando a censura começou a vetar o meu trabalho, eu ia fazer um disco e quem decidia meu repertório eram eles. Era como se a censura fosse um co-produtor (ri). Eu tive várias músicas que não foram lançadas.
Em 74, eu tinha uma canção chamada “A Primeira Noite de um Homem”, que era sobre a primeira vez que o cara vai lá comer uma mulher – ele nunca teve aquilo, já imaginou, mas lá mesmo ele nunca foi. Eu conto isso de uma forma poética, esse nervosismo, a emoção, a preocupação em agradar, o encontro dos corpos. A censura brecou a música, que era a faixa 1 do disco. Meus discos eram aguardados pelo mercado, até o próprio André Midani falou que a Philips passou a CBS e se tornou líder de mercado quando eu, o Tim Maia e o Evaldo Braga fomos pra lá, porque na época anterior, com os nossos amigos Chico, Gil, Caetano, eles estavam em décimo lugar. E o diretor pedindo pra eu desistir da música, pra lançar o disco logo, mas eu queria saber o que podia ser mudado. Até que um senhor chamado Aderbal Guimarães, que vivia dentro dos estúdios, me falou: “Se você quiser, eu conheço alguém que pode ajudar a liberar”. Então vamos, não custava nada…
Fomos a Brasília e quando fui chegando, percebi quem era e falei: “Pra onde você tá me levando?”, e o Guimarães falando “cala a boca”. Era o Golbery Couto e Silva. Numa sala grande, meio escura, uma mesa acesa, lâmpadas que só iluminam em cima da mesa e parece que o Aderbal já tinha conversado antes com ele. O cara não me olhava, não. Só que o Guimarães ficava só naquelas “e a dona Regina, como vai?”, aí eu perguntei: “o que eu queria saber, general, era o que pode ser mudado nessa letra porque eu estou com um disco parado”. Já não devia ir com a minha cara por causa da música da pílula e por causa de algumas coisas que eu tinha dito pra censura no Rio. Aí ele falou, sem olhar na minha cara: “Aqui não tem o que ser mudado, porque o que está probido é a idéia”.
O disco saiu sem a música.

O Assim Sou Eu já teve algum problema desta natureza?
Não com a censura, mas o grande sucesso deste disco era “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha”, e achavam um absurdo. A minha sogra mesmo, antes de ser minha sogra, dizia que quando eu tocava no rádio, ela desligava, porque achava que eu era pornográfico, pra você ver.

É o seu disco favorito?
Não, mas é um dos bons. Eu tava num momento muito bom. O disco que eu fiz em seguida, chamado só Odair José, talvez não tenha sido o melhor, mas foi meu disco que mais fez sucesso. Você pega as faixas e parece uma coletânea: tem a “Pílula”, tem a música da empregada, tem “Cadê Você?”, “Que Saudade”. De doze faixas, dez fizeram sucesso. Foi meu disco que mais vendeu, quase um milhão em um ano.

Como foi a sua reação ao sucesso?
Eu sou sempre do mesmo jeito. Se eu vender um milhão de cópias, eu vou estar falando com você desse jeito; se eu não vender nada, vou continuar falando do mesmo jeito. É apenas um trabalho que deu certo e outro que não deu. Não fico frustrado, nem me deslumbro. Mas sempre procuro saber o que deu certo e o que não deu. Isso aqui é só um trabalho…

Isso é fácil falar hoje, depois de vários altos e baixos, mas como foi na época?
Entre 73 e 74, não dava. Eu fiz vários shows que ficava mais gente de fora do que de dentro, porque não cabia. Teve uma época em que fizeram um quadro no Fantástico que perguntava o que valia mais, prestígio ou popularidade? E me colocaram do lado do Milton Nascimento – eu ganhei disparado, porque as pessoas comiam e dormiam Odair José. Foi bom? Foi pra caralho. Incomodava? Não. Nunca mandei fazer filas de segurança, a não ser quando eu raspei a cabeça.
Isso aconteceu quando o Wagner Montes, que era muito meu amigo, me disse que eu andava muito agitado e que era pra eu procurar um tal guru meio zen, que estava no Rio. E eu fui lá e ele me aconselhou que eu raspasse a cabeça por uma questão de limpeza de aura. E na época eu tinha uma cabeleira. Aí eu disse: “Bicho, eu não tenho como raspar a cabeça, não, eu faço show todo dia, o Brasil inteiro me conhece. Tenho um contrato com a televisão, se eu aparecer careca, o Boni manda me matar”. Aí o Wagner, cheio de idéias, me levou num lugar em que eles fizeram umas perucas iguais ao meu cabelo, cinco perucas.
E o Pinga, Zé Carlos Mendonça que era um empresário de shows, tinha me contratado pra fazer vinte shows e eu ia com a peruca. E no primeiro show já tinha um monte de gente, e eu disse: “Pinga, isso não vai dar certo, os caras vão arrancar a peruca”. E ele: “Não, a gente faz um corredor com a polícia”. Mas não adiantou nada, arrancaram a peruca. Foi a única vez que eu usei segurança.

E a parte do deslumbre com o sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Eu ganhei muito dinheiro e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade do meu dinheiro, hoje eu estaria quaquilinário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas eu não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da Praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito.
Sobre mulheres, eu sempre curti minhas namoradas, mas eu sempre fui homem de uma mulher só. “Vamos comer todas” nunca fez o meu gênero. Eu não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde eu vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Porque tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Porque chega uma hora que um cara questiona na Bíblia e Jesus diz: “Não, não é assim”. Então, tá mal.
Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não fazia a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Eu já sou meio marcha lenta, aquilo me deixava mais lento. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. Até tenho tomado cerveja, porque de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.

Você sempre foi rotulado como um artista cafona Como você lidava com a questão do mau gosto?
Eu não tinha essa preocupação. Eu fazia o que eu sabia fazer e e estava dando certo. Em 73, eu era o cara que mais vendia discos no país – e fazendo isto. Eu tinha um contrato com a Globo, em que durou dois anos, que eu tinha que aparecer na televisão quatro vezes por mês. E eu fazia sucesso com aquilo, por isso não existia – como até hoje não existe –, essa preocupação se aquilo é de mau gosto ou não. Eu sempre procuro fazer o melhor, dentro daquilo que eu sei fazer.
Eu compus umas 400 músicas, só as gravadas por mim são umas 350. Dessas, 150 são muito ruins. Mas entre as que sobraram, tem umas muito boas. Até umas que não fizeram sucesso.

Mas essa pecha de cafona te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Mas eu nunca tive, meu irmão, nunca tive mágoa, nem só na minha carreira, nem na minha vida. Eu sempre li todos os comentários ao meu trabalho, nunca me magoei. Eu nunca li por esse lado. O cara pode até meter o pau no meu trabalho, é um direito dele.
Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista compara o tributo que fizeram pra mim com o meu disco novo, dizendo que meu disco novo não teria novidade, que é aquilo que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou, achou que eu fiz mal de mostrar o disco e que ele se colocou contra o disco. Mas o que ele falou é a mais pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam?
Eu tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que ela tem três acordes, que parece o “Parabéns a Você”, de tão simples, ela não tem nada. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de sete milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas? Se fosse fácil, eu fazia mil. Fazer uma música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é muito mais fácil de fazer. Mas faz um “Mamãe Eu Quero” por dia. Não faz…
Outro dia eu tava assistindo TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos rapazes de classe média alta, pessoas bem informadas, nós fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema…

E queria tocar no rádio.
Esse cara é tão idiota e eu não sabia. O Chico Buarque não fala desse jeito, o Caetano Veloso também não pensa dessa maneira. Quer dizer, gente babaca tem em qualquer segmento musical.

Você chegou a ter outras controvérsias, depois do sucesso?
Tem um disco meu, depois do Lembranças, que chama só Odair. Esse disco tem uma música que se chama “Na Minha Opinião”, que fez muito sucesso na época, que fala que pra você estar com uma pessoa você não precisa ser casado no papel. Eu fui até excomungado pela Igreja Católica, o João Gordo que me lembrou no programa dele: “Pô, que legal, esse cara foi excomungado! Que que tu fez? Eu faço um monte de merda e nunca fui”. Esse disco também tem uma música chamada “Viagem” que fala de um baseado.
Foi quando eu fiz o disco O Filho de José e Maria e todo mundo disse que eu tinha ficado doido. Eu escrevi 24 canções que, na ordem, cada uma fala de uma fase da pessoa: a primeira é quando a pessoa nasce e vai até a última que é quando o cara morre, ou se entendeu. Disseram que era uma ópra-rock, mas eu nem sei o que é isso. A igreja não gostou, porque achavam que eu tava falando Jesus Cristo – e tem uma música que o cara fica doidão, outra que ele não sabe se é bicha ou macho. Mas esse disco não ficou nem 50% do que eu queria.
Era um disco pra ser tocado em teatro, não era pra tocar num clube, pro cara ouvir enchendo a cara de cachaça, nem pra tocar numa praça, com uma mulher pendurada no pescoço. Fui trabalhar com o Guilherme Araújo, que era empresário de teatro. E vieram perguntar se eu não gostava do que eu fazia, se eu tinha vergonha de tocar a “Pílula”, que bobagem. Esse disco não foi vitorioso comercialmente, mas é um disco muito bem feito. E eu queria fazer um disco duplo, mas a Polygram não queria lançar, então fui procurar outra gravadora. Fui pra BMG mas quando cheguei lá disseram pra não fazer duplo.

De onde você tirou inspiração pra fazer um disco desses?
Duas coisas. Primeiro, o som: eu achava o máximo o som das guitarras daquela época, do pop do Joe Walsh, aquele disco ao vivo do Peter Frampton, aquela guitarra emborrachada, só ele e três caras de apoio e vendeu vinte milhões de álbuns. Então a idéia inicial era eu ter uma banda como se fosse de garagem. Eu montei essa banda, com uns amigos. Na época, eu tava muito bem de vida, tava solteiro, não tinha compromisso com nada, passava o dia na praia do Pepino sem fazer nada e pensei, “vou fazer uma banda” e fiz. A gente ensaiava lá no Vidigal. Quando eu fui gravar, o Durval Ferreira, aquele da bossa nova, começou a por defeito nos músicos: “Esses caras não tocam porra nenhuma!”. Mas a intenção era aquilo mesmo, tipo nos Rolling Stones, que aquele cara não é o melhor baterista, mas pra aquilo ali era ele mesmo!
Depois, é a idéia do tema. Eu tava no Rio e fiquei chateado com uma situação e esse senhor, o Aderbal, que me levou pra falar com o Golbery, veio me perguntar o que eu tinha. Eu expliquei e perguntei o que eu podia fazer? Eu perguntei e ele saiu da mesa. Pensei: “Qualé a desse velho? Eu pergunto uma coisa pra ele e ele sai? Deve estar ficando esclerosado”. Deu uma meia hora e ele aparece com um livro na mão. “Você me perguntou uma coisa que eu não posso responder, mas esse cara pode”. E me deu O Profeta, do Kalil Gibran. Eu comprei e li tudo dele, achava o Kalil Gibran o máximo. E foi dali que eu resolvi escrever as letras do Filho de José e Maria, eu passava o dia inteiro trancado no quarto sem fazer mais nada, só tomando vinho e lendo aquilo. E aquilo virou uma bola de neve.
E a partir desse disco, as pessoas começaram a fazer questionamentos sobre a minha competência pra vender discos, mas foi até legal, porque você ter a obrigação de todo disco ter de vender é uma bosta. Até porque você não consegue isso a vida inteira. E se você analisar, essa coisa de fazer sucesso, fazendo músicas direto, é um ciclo de sete anos. Pode ver, todo mundo, tem raras exceções, só aguentaram sete anos, pode reparar, Beatles mesmo: sete anos.

E os seus sete anos foram com O Filho de Maria e José?
Sim. Depois eu tive um sucesso ou outro. Eu fiz a música-tema do casal Fábio Júnior e Glória Pires na primeira versão da novela Cabocla, chamada “Até Parece Um Sonho”. Aí começou: faz um que vende, faz outro que não vende tanto… Mas esse negócio de fazer disco todo ano é coisa de mercado brasileiro, mas é um compromisso meio babaca. Pode ser bom pra gravadora, porque se o artista tá vendendo, eles têm o que vender. Mas o músico corre o risco de ir pro estúdio e fazer um disco que não tem nada. Eu tenho 31 discos, desses, dez eu não devia ter lançado. Por que é mal gravado? Não, é porque eles não têm nada, nem são em cima do muro porque nem muro tem. Às vezes, é melhor nem fazer. E depois de 36 anos, eu não posso querer lançar um disco todo ano…
Mas eu nunca parei de fazer shows, mesmo porque eu preciso, primeiro por causa do meu sustento, e depois porque se eu fico um mês sem ir pro palco é como se tivesse faltando um pedaço. É uma necessidade orgânica de trabalhar. Todo mês eu faço show, não consigo ficar sem tocar.

Você se vê mais como um trabalhador do que como um artista.
Eu sou um operário da música, sempre fui. Tem gente que grava dois discos, fica rico e compra posto de gasolina, prédio e sai dessa vida de artista. Tem gente que quer ser reconhecido na rua, comer as mulheres, ser famoso. Não tem nada de errado com isso, mas eu não sou assim. Sempre quis essa vida que eu levo, com erros e acertos. Fiz um disco não tão bom há dois anos, errei. Agora tem um trabalho novo, fizeram um tributo, o disco novo tá bom. Eu sempre fui assim, sempre fui feliz assim e sou feliz por ser assim, um homem simples.

“Assim Sou Eu”
Odair José de Araújo, nascido em 16 de agosto de 1948 em uma fazenda no município de Morrinhos (GO), foi um dos cantores mais populares da música brasileira. Capitão de um time de intérpretes que, devido à dramaticidade na interpretação e o apelo visceral às profundas emoções humanas, fez com que se distanciasse da historiografia oficial da MPB, sagrada nos cadernos de cultura dos jornais – resumindo: eram cafonas e populares. Sem o vozeirão de seus pares Agnaldo Timóteo, Nelson Ned e Waldick Soriano, Odair compensava ao abordar temas inusitados e tidos como impróprios à época, e assim emplacou hits nos anos 70 que estão até hoje no imaginário nacional, como “Uma Vida Só (Pare de Tomar a Pílula)”, “Revista Proibida”, “Eu Chorei (O Parto)”, “Esta Noite Você Vai Ter Que Ser Minha” e “Vou Tirar Você Desse Lugar”.

“Cadê Você?”
Odair José – Odair José (Phonogram/Polydor, 1973)
Como o próprio assinala, “quase uma coletânea”, devido à quantidade de sucessos. De “Deixe Essa Vergonha de Lado” à “Pílula”, passando por “Cadê Você” e “Eu, Você e a Praça”, o disco seguiu a mesma fórmula certeira do anterior, Assim Sou Eu (incluindo o Azymuth como banda de apoio), e Odair José entrou para o seleto time dos brasileiros com mais de um milhão de discos vendidos.

Vou Tirar Você Desse Lugar – Vários (Allegro, 2005)
Mais um tributo que, sem querer, cria um cânone e une gerações a partir de um rótulo suscinto do artista em questão. No caso, “rock romântico”, que une gerações (Paulo Miklos, Picassos Falsos, Zeca Baleiro e Mundo Livre S/A de um lado, Poléxia, Jumbo Elektro, Suíte Super Luxo e Los Pirata do outro), estilos e abordagens. As favoritas de Odair? Pato Fu, Leela (“se fala Líla ou Lilá?”, ele pergunta) e Mombojó.

Eu Não Sou Cachorro, Não – Música Popular Cafona e Ditadura Militar – Paulo César de Araújo (Record, 2002)
Numa obra tão importante para a música brasileira quanto o documentário A Negação do Brasil (de Joel Zito Araújo, sobre racismo) para a TV nacional, Paulo César arma-se de Paulo Sérgio, Benito de Paula e Lindomar Castilho para peitar, um a um, os preconceitos disfarçados de bom gosto da década de 70. Nela, Odair José é um Bob Dylan literalmente dos pobres, que troca a política social pela crônica de costumes pçara fazer sua própria revolução folk.

Marcelo Camelo e o Ventura

Falando em Los Hermanos, desenterrei essa entrevista que fiz, por telefone, com o Camelo, na época do lançamento do Ventura, em 2003, para o site da Somlivre (ah, os anos frila…). Mesmo com o tom sépia de entrevista de época (recente), a entrevista toca em alguns pontos que ainda valem – seja sobre Los Hermanos, mercado fonográfico ou de música pop. No finzinho tem minha resenha do disco.

A terceira vinda dos Hermanos

“Nem se atreva a me dizer de que é feito o samba”, ameaça Marcelo Camelo, vocalista e guitarrista do grupo carioca Los Hermanos logo ao final da música de abertura (“Samba a Dois”), do terceiro disco de sua banda. O tom é imperativo e auto-suficiente, como é o vôo do pássaro (uma andorinha?) estampado na capa do novo álbum. Ao abrirmos o encarte do disco, percebemos que a capa é apenas um detalhe de um quadro em que o pássaro da capa deixa para trás um enorme navio numa noite de inverno (navio que já foi comparado ao Titanic – ou seria a indústria fonográfica per se?). O CD se chamaria Bonança, mas o grupo trocou o nome pouco antes do lançamento, chamando-o de Ventura.

Estariam então os Hermanos entregues à sua própria sorte? O tom sisudo e desconfiado que termina “Samba a Dois” nos faz entrar numa espécie de lado B de O Bloco do Eu Sozinho, o segundo disco da banda. Ventura é mais escuro e fechado que o disco anterior, embora isto não comprometa seu potencial pop (menos explícito, mas sempre presente). Tal tensão prossegue por todo o disco, que mais do que “abraçar o perdedor” – como explica Camelo sobre o enfoque do grupo em suas letras -, parece desafiar o vencedor, dedo em riste, sem medo do desafio e da chacota. Isso explica passagens ríspidas como “Não há ninguém capaz de ser isso que você quer/ Vencer a luta vã e ser o campeão” (“Tá Bom”), “Olha ali quem está pedindo aprovação/ Não sabe nem pra onde ir se alguém não aponta a direção” (“Cara Estranho”), “Olha lá quem acha que perder é ser menor na vida/ Olha lá quem sempre quer vitória e perde a glória de chorar” (“O Vencedor”), “Se não sou eu, quem mais vai decidir o que é melhor pra mim? Dispenso a previsão!” (“O Velho e o Moço”).

O ar agressivo, no entanto, é mínimo se comparado à ostensividade hormonal do pop brasileiro do século 21 – sempre enfático, cheio de si e autoritário, venha de rappers, bad boys, pagodeiros ou cachorras. Os Hermanos sentam-se quase sozinhos do outro lado da gangorra, indiferentes à solidão artística que enfrentam no atual cenário. Sabem que o verão vem, independente do número de andorinhas que vierem. E assim a tonalidade de Ventura varia do amargor próximo ao desespero à tranqüilidade mental induzida – temas explicitados metaforicamente, quase sempre representados por relações amorosas, bem ou mal sucedidas.

O grupo digeriu bem a passagem do megassucesso de “Anna Júlia”, de 1999, para o segundo disco. Decidida a sublinhar os aspectos ignorados do disco anterior, a banda injetou doses pesadas de MPB e de invenção no disco seguinte, muito além das referências ao samba e ao carnaval do primeiro álbum. O resultado foi um disco aclamado pela crítica, mas recebido como “difícil” e “experimental”. Exagero típico da falta de parâmetros da época em que vivemos, afinal O Bloco do Eu Sozinho, de 2001, era o disco mais pop e mais maduro de sua safra e, se os números ao redor do grupo diminuíam, uma base fiel de fãs foi sendo formada, seja seguindo o grupo em shows ou acompanhando a banda pela internet, através do site oficial (www.loshermanos.com.br – que publicou os bastidores da gravação do novo disco) do blog do tecladista Bruno Medina (http://instanteanterior.weblogger.com.br) ou dos muitos sites do grupo pela rede.

A transição do segundo para o terceiro disco é que parece ter sido conturbada. Não bastasse a expectativa natural dos fãs, a antiga gravadora do grupo, a Abril Music, fechou as portas no começo do ano e um ensaio com as músicas novas foi parar na internet. Ao mesmo tempo, o disco, que se chamava Bonança, trocou de nome, sendo batizado Ventura. A sonoridade também ficou mais pesada, seja nas guitarras (um pouco mais sujas) ou no fato de o teclado de Bruno Medina ter se tornado um elemento mais corpóreo do que decorativo, solando menos e engrossando a base estrutural das canções ao lado do baterista Rodrigo Barba e do baixista em estúdio, o produtor Kassin (do projeto + 2, com Moreno Veloso e Rodrigo Domenico).

Camelo e o outro vocalista e guitarrista, Rodrigo Amarante, deixaram pudores rock’n’roll de lado e se dedicaram à velha e esquecida arte do compositor de música brasileira – sem pós-modernismos, onomatopéias, gracinhas, palavrões ou romantismo vazio. Marcelo opta pela postura que dá o clima do disco – sincera e áspera, segura de si e melancólica -, compondo até como personagem feminina (em “A Outra”), característica clássica de um de seus ídolos, Chico Buarque, e levando adiante experiências líricas de O Bloco. Amarante dedica-se à interiorização do dia-a-dia, comparando elementos da rotina a sentimentos (“Parece que foi ontem que eu fiz aquele chá de habu pra curar da tosse e chulé e te botar de pé”, “Até quem me vê lendo o jornal na fila do pão sabe que eu te encontrei”) e finge encarnar vários personagens (“Um Par”, “O Velho e o Moço”). Mas em entrevista por telefone, o vocalista Marcelo Camelo explica que tudo ocorreu bem durante as gravações, fora a notícia do vazamento das músicas para a internet. E aproveita para falar sobre todos estes assuntos discutidos acima.

Quando este novo disco começou a existir?
Não tem um começo específico, porque ele foi composto durante a turnê do Bloco. A gente grava no sítio mais para ter uma paz, colocar as coisas no lugar e se desligar da cidade. Não entramos em um “processo de composição”, num universo de criação. A gente começa a falar no disco novo quando existe uma necessidade de expor várias canções novas que vão amadurecendo na turnê. A criação acontece o tempo todo, ela não existe só num período determinado. Foi assim com o Bloco, foi assim dessa vez.
Nosso trabalho exige uma produção sazonal: a gente lança o disco, faz uma turnê, compõe o disco novo e entra em estúdio. Enquanto isso, a gente vai passando por lugares diferentes, vendo gente diferente e, neste processo, vai surgindo uma necessidade de falar de coisas novas, que vão virando músicas. Então não existe esse afã inovador, essa vontade de mergulhar nas páginas em branco, pelo menos em termos de composição. Isso acontece uma vez que paramos tudo pra fazer o disco, mas até isso, o disco já começou faz tempo. A turnê é o processamento que você precisa pra pensar em novas idéias.

E como foi o lançamento do Bloco do Eu Sozinho?
A gente diminuiu muito os números em relação ao disco anterior, o que foi natural. Mas o engraçado foi que as pessoas não chegaram no Bloco pelos meios convencionais. Houve muita troca de arquivo pela internet, muito boca-a-boca, uma comunicação entre os ouvintes que aconteceu longe da grande mídia. Foi uma divulgação muito mais individual do que coletiva. Quase pessoal, talvez muito pelo fato do disco ser um disco mais pessoal.
Muitos dos que foram assistir a gente na turnê já tinham comprado o primeiro disco, mas de repente, por causa de “Anna Júlia”, ficou ridículo gostar de Los Hermanos. A gente virou Pokémon, tava em tudo quanto é lugar, parte do pessoal que comprou o primeiro disco deixou de lado. E foi convencido a voltar à medida que o Bloco foi crescendo.

E por que o Bloco cresceu?
Tem gente que gosta das letras, tem gente que gosta das músicas, e ficou mais fácil pegar um público mais amplo, que passou a prestar a atenção no grupo como um todo. A gente também tem um espírito bem brasileiro, mas sem ser caricatura ou afetado, que acho que as pessoas sentem falta. E tem também o fato da banda abraçar o perdedor como personagem, isso fala muito pras pessoas hoje em dia.
O fato é que a gente tinha consciência que, quando a gente tava dando um show pra 80 mil pessoas, 10% desse público realmente gostava da banda, sabia as letras e queria ver o nosso show. Depois do Bloco, passamos a dar show para mil pessoas, e todas elas sabiam tudo sobre a banda. Isso, ao mesmo tempo que diminuiu a banda em termos de mercado, aumentou em termos de credibilidade. O que foi ótimo, afinal continuamos fazendo o que queremos, e de forma sincera, sem precisar forçar a barra pra qualquer lado.
Hoje em dia, o pessoal vai no show e enche a gente de perguntas no final, sabe todas as letras, canta junto, pede o cover do Belchior (“A Palo Seco”, que o grupo toca nos shows). Isso no Brasil inteiro, de Recife a Porto Alegre.

Vocês se sentem mais próximos do público? Há uma cobrança pessoal por causa dessa proximidade?
Eu acho que as pessoas se atém aos detalhes porque nós somos uma banda que dá atenção aos detalhes, sabe? Mas se a gente não tivesse esse cuidado, o público não iria deixar de nos acompanhar. Agora, já que a gente optou por isso, o público se identifica e entende, por isso há essa demanda.

E como essa demanda se refletiu no disco novo?
De forma muito natural. Você sabe que a criação é um processo paulatino, não é um processo estanque. Ela está o tempo todo em ação, e você vai acumulando as coisas no caminho.

É a segunda vez que vocês gravam num sítio. Como o ambiente funciona neste processo?
Foi em outro sítio, em Petrópolis, não é o mesmo em que gravamos o Bloco. As pessoas pensam que é um troço sagrado, sacro, que só a gente e o Kassin (produtor do grupo) podemos estar ali, isolados. Não há nada ritual, fazemos o disco no sítio para poder nos dedicar mais a ele, para termos menos distrações. As pessoas acham que não podem visitar a gente, e a gente faz a maior festa quando alguém resolve nos visitar.

Uma vez terminada a turnê e começada a gravação, o disco já tem uma cara ou isso vai se formando no estúdio?
Num primeiro momento é só um apanhado de quinze canções, que juntamos no caminho. A liga do disco, o que torna o disco uma coisa só, no fim das contas, como foi no Bloco, acaba sendo a nossa sinceridade para com as músicas. Tudo que a gente fez foi feito por nós mesmos, e a gente acredita nisso. Essa coerência nos faz bem e o público gosta. A cara do disco se faz também pela coincidência dos detalhes, e isso é fruto dessa sinceridade. Cada disco é fruto de um processo diferente e ele acaba tendo uma cara que se reflete nos detalhes do disco.

Houve alguma tensão durante a gravação do disco, pelo fato de ele ser o sucessor do Bloco?
Não, não houve. Há uma coisa que acontece nos shows, que é as pessoas cercando a gente, querendo que a gente tenha alguma resposta, como se a gente soubesse de algo que as pessoas não sabem. Mas é uma característica das nossas letras, eu acho natural que tenha esse retorno. Mas durante a gravação, não sentimos isso…

Como vocês reagiram às críticas que tacharam o Bloco de “disco difícil”? Porque ele é um disco pop, não tão rock quanto o primeiro, mas, mesmo assim, pop.
Eu também acho. Eu não sei, acho que muita gente achou que a gente iria se preocupar em fazer um outro mega-hit, coisa que a gente nem soube como fez no primeiro disco. Eu acho que o Bloco é um disco tão pop como o primeiro e como esse terceiro.

E quanto ao fim da gravadora Abril, no meio do processo?
As pessoas tendem a colocar a gente como salvadores do mercado fonográfico, líderes de uma nova geração de bandas, e a gente passa meio batido a isso tudo. Não podemos pular para o mercado independente porque precisamos de uma certa estrutura, que o mercado independente não nos dá – pagamos músicos convidados, a nossa equipe e temos essa facilidade de termos nos ritmo pra fazer as coisas. E fora dos palcos, a gente se cerca por uma equipe que cuida de tudo que não for música no trabalho do grupo, pra justamente só nos preocuparmos com a parte artística e criativa do processo. Por isso, a notícia do fim da Abril foi quase um quebra-molas, a gente passou por cima e nem percebeu.

Houve a mudança de nome…
Sim, o disco se chamaria Bonança, mas foi um nome que a gente deu pra gravadora antes do disco pegar o embalo, um nome de trabalho. A idéia era registrar a tranqüilidade que estávamos vivendo, o clima instaurado no sítio, a forma como as coisas estavam fluindo… Tudo dava uma idéia de bonança, mas fomos percebendo que, além de bonança ser um quadro estático, que não se mexe, também daria ao Bloco a condição de tempestade, como no ditado (“Depois da tempestade, vem a bonança”). Pareceria a descrição de um quadro, não o nome de um disco. Aí viemos com a idéia de ventura, que é mais dinâmico e que significa “sorte”, que tem tanto o lado de risco – desde os do mercado até os estéticos, como o risco que corremos de sermos populares – como o lado de ida, de jornada. O título fica assim aberto à interpretação, um convite.

Então a mudança não teve nada a ver com o vazamento das faixas do disco para a internet.
Não, nada a ver. E isso foi algo que não gostamos. Tentaram nos imputar um pioneirismo de algo que não tínhamos nem o controle, não tínhamos influência sobre isso. Mas eu me senti invadido, afinal aquilo foi um ensaio interno que fizemos pra nós mesmos, pra ouvir como ficava, não era pra mais ninguém ouvir. Senti uma certa fragilidade nessa situação. É como se lessem um bilhete que você escreveu pra um amigo ou pra uma namorada. Por isso eu nem quero saber se alguém achou esse disco melhor ou pior o que ouviu nestas gravações. Não dou ouvidos a essa comparação. É como se elas não existissem.

Mas elas mostraram que existia uma demanda no público por vocês.
A gente bem conhece a força da internet. Nosso site foi um grande aliado quando a gente ficou desprovido de mídia. Não conseguimos melhorar esse canal por falta de tempo, é verdade. O site é um dos 10 mais acessados do UOL, o que não é pouca coisa. Mas não dá pra concordar com esse tipo de vazamento.

Mas se vocês lançassem coisas de vocês, aprovadas, primeiro ou apenas no site?
Isso é legal, é algo que queremos fazer.

E quando vocês sabem que o disco está pronto?
A gente sabe. Na hora certa, a gente sabe. É a hora da colheita, que é uma mistura de alívio com recompensa, mas também tem uma certa tristeza, porque um disco, ao mesmo tempo em que é um fardo, um trabalho pesado, também é uma espécie de casa, de cobertor.

Vocês estão assumindo uma postura bem definida entre a música pop e a MPB…
Não gosto disso, acho uma constatação preconceituosa, que acaba dizendo que um gênero é melhor que o outro, que a arte naïf é pior que a arte moderna. Fazemos música brasileira por excelência, porque somos músicos e brasileiros. Se essa referência soa jovem, é porque somos jovens.

Perguntei isso porque queria que você falasse do momento em que a música brasileira atravessa, em que parece que apenas os artistas que cruzam fronteiras entre gêneros conseguem se satisfazer tanto profissional quanto artisticamente.
Entendo. Acho que o pessoal começou a perceber que essa tentativa de abraçar um gênero inteiro, de ser o melhor de todos, é uma causa emburrecedora, e perdida, pois cada vez está mais difícil juntar tantas pessoas em torno de um só tema, de um só grupo.
Fora que a gente – eu, você, a banda, os fãs – é de uma geração que recebeu muita informação, de uma variedade muito diferente. A gente ouve Lulu Santos, Weezer e Cartola, lê Dostoievsky, Garcia Marques e turma da Mônica, assiste filmes de arte e o Te Pego Lá Fora. Isso tornou nossa geração sem utopia, pois temos todas possíveis ao mesmo tempo – e nenhuma delas nos satisfaz, porque sempre queremos outra.
Acho mais legal assim, porque você tende a procurar por coisas que te falem por inteiro, não a apenas uma parte de você, sabe? A conexão entre as pessoas aumenta, embora fique mais difícil rotular, as pessoas reconhecem melhor o que querem. Talvez por isso o mercado esteja passando por essa crise. Mas talvez seja ela que torne possível esse tipo de vínculo entre as pessoas. A gente acaba falando desse sujeito que ganha e que perde, que vive seus altos e baixos, e isso fala com as pessoas. Parece aplacar a solidão moderna. O bom é que eu não preciso fingir, eu realmente acredito no que eu estou falando.

As pessoas não estão mais se identificando com o mercado.
Sim, porque não encontram eco de si. Tentam se achar no que é oferecido e não se acham. Ao mesmo tempo, acontecem milhares de sucessos menores, como a gente, que consegue esse tipo de identificação. Acho que o excesso de informação que a gente tem a disposição hoje faz com que a gente descubra que o tempo não é uma linha, não há vários tempos e épocas, e sim várias formas de contar uma mesma história. Arte é emoção e essas emoções não vão ser inventadas, elas já existem há muito tempo, antes da arte. Essas coisas são atemporais. O que muda é a embalagem, que acaba virando o conteúdo, entende?
Não é que os Beatles ou o Nirvana falaram coisas que as pessoas não esperavam ouvir, mas justamente o contrário. Eles falaram exatamente o que as pessoas queriam ouvir, e por isso fizeram sucesso. São fenômenos de convergência, funcionam como catalisadores de sentimentos. É política, é cultura – música é tudo isso. Esses caras e muitos outros – e nós – são veículos de uma ansiedade popular, que está cada vez mais confusa, perdida. E não só em arte, a gente percebe esta confusão de uma forma geral, em diferentes campos. E as pessoas acham que vão salvar alguma coisa reinventando tudo.
Mas não existe sentimento humano que não tenha sido inventado. Acredito que a gente consiga um público sem ter sucesso no rádio justamente por falar do ser humano como um todo, esteja ele triste ou feliz, ouvindo rock, samba ou MPB. Então não tem essa de “tá mais pra cá do que pra lá”, “é mais rock que MPB” ou “tá no meio dos dois”. Entendo essa necessidade de classificação, mas ela tá falindo, já deu o que tinha que dar. Você liga uma rádio rock e… Quer coisa mais rock’n’roll que o primeiro disco do Tom Zé? Não em termos de música, mas de atitude rock, mesmo. Mas nunca vai tocar numa rádio rock e as pessoas vão ser privadas deste sentimento, desta emoção. Quer dizer, não vão, porque elas vão procurá-la onde quer que ela possa estar. Essa crise de mercado, que é fruto de uma crise de identidade mundial, se é que dá pra chamar assim, é conseqüência disso.

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Ventura – Los Hermanos
Mais sério e menos festivo que O Bloco do Eu Sozinho (em que o grupo afirmava tanto sua maturidade musical quanto a sensação de solidão no mercado fonográfico), Ventura é quase um disco gêmeo de seu antecessor. A ênfase é maior na MPB tradicional do que no samba, vedete do disco passado, e a tônica do disco, a mais incisiva da discografia do grupo, dá uma certa intensidade que era apenas insinuada em O Bloco, seguindo a evolução musical do quarteto carioca. Músicas como “Samba a Dois”, “A Outra”, “O Vencedor” e “Cara Estranho” habitam o meio-termo entre a música pop e a MPB e mostram que o grupo segue firme e forte rumo a um futuro não apenas promissor, mas ousado e inventivo, qualidades raras na música brasileira da virada do século.