Um papo com o PirateBay

Na edição da Galileu que está nas bancas, há uma entrevista que fiz com Tobias Andersson, porta-voz do PirateBay que vem ao Brasil no início do mês que vem para participar do YouPix. Segue a matéria abaixo.

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OS RÉUS E O PORTA-VOZ:Fredrik Neij, Gottfrid Svartholm e Peter Sunde recorrem no processo que estão sendo julgados na Suécia; Tobias (à direita), não

Um pirata no Brasil
Porta-voz do maior site de compartilhamento de arquivos do mundo é a atração do Youpix deste ano

Quando pergunto a Tobias Andersson qual é o seu papel no PirateBay, o maior site de compartilhamento de arquivos do mundo, nem ele sabe responder direito: “Estou no site desde o início”, explica por e-mail, “mas o trabalho no PirateBay é muito anárquico, para dizer o mínimo. Não há papéis específicos na equipe, da mesma forma que não há um líder ou um dono. Todo mundo faz o que quer. Falamos todos os dias pelo mesmo canal de informações, todo mundo participa de todos os processos. Pensamos de forma bem parecida e quase não há controvérsia entre nós”. Mas, para todos os efeitos, Andersson age como o porta-voz do grupo, que é representado pelas figuras de Fredrik Neij, Gottfrid Svartholm e Peter Sunde. Os três, suecos como Andersson, são os réus em um julgamento que teve seu veredito em fevereiro do ano passado, mas que ainda se arrasta através de novos recursos e instâncias. E Andersson vem a São Paulo como principal convidado do festival de cultura da internet YouPix, que acontece no início de julho e também terá mesas de debates oferecidas pela GALILEU. No evento, o pirata vem falar sobre sua experiência no PirateBay, política mundial e o futuro da internet. Ele também prepara um livro sobre os 10 anos do site — “e minha estada em São Paulo fará parte do livro”, adianta.

Qual é a situação do PirateBay? Os servidores de vocês foram para a Islândia?
Não, apenas o domínio está hospedado na Islândia. Nossos servidores estão espalhados pelo planeta eestamos transferindo todos os dados para serviços na nuvem. O domínio deve continuar mudando sempre, para estarmos um passo adiante. Há também um plano para começar um projeto via Kickstarter para comprarmos o domínio .bay.

O que você acha da pirataria digital ter virado uma bandeira política, com os Partidos Piratas pelo mundo?
Mark Getty, da agência de fotos Getty, disse que “a propriedade intelectual é o petróleo do século 21” e esta frase é bem interessante. Nós do PirateBay anunciamos que 2012 seria o ano da tempestade e foi isso que aconteceu: tivemos as brigas contra a Sopa [projeto de lei norte-americano que endurecia a vigilância e a punição aos direitos autorais], o Acta [tratado internacional com fins semelhantes] e o veredito de culpado contra os três fundadores do site — um deles está preso por um ano e os outros dois aguardam julgamento em liberdade, mas o site continua funcionando independentemente do julgamento. Acho que os próximos anos serão ainda mais inquietos.

Então você acha que a legislação digital deve endurecer nos próximos anos?
Acho que teremos duas opções: ou um estado de vigilância ou uma internet independente. Todos ganhariam caso a última alternativa prevalecesse. Modelos de negócio prosperariam e pessoas de todo o mundo usariam a internet para aprender sozinhas. Mas isso não acontecerá sem briga. Por outro lado temos outros fatores, como o crescimento da capacidade de armazenamento. A Lei de Krysder diz que o espaço de um HD dobra a cada 20 meses, o que quer dizer que, em 10 anos, teremos toda a história da música em nossos bolsos.

O que você acha de Kim Dotcom, do Megaupload, que foi caçado pela justiça norte-americana?
Kim Dotcom é um esquisito megalomaníaco que poderia ter se dado melhor se não pensasse apenas em ganhar dinheiro. Sites de armazenamento como o Mega não são a forma certa de agir. A internet precisa ser aberta e não se tornar um festival de “pague pelo arquivo”.

Você acha que o streaming de serviços como o Spotify irá suplantar o download?
Remixando as clássicas palavras do Chuck D, do Public Enemy: desculpe-me, mas foda-se o Spotify. Ele não resolve nada, pois é parcialmente mantido pelas três grandes gravadoras, que não submeteriam seus catálogos caso não fossem sócias. O que quer dizer que eles ainda ganham mais dinheiro que os artistas a cada execução. Isso inclui artistas que não são contratados por estas três gravadoras. Acredito que a evolução da tecnologia terá seu papel e veremos redes descentralizadas e anônimas onde amigos trocam conteúdo gratuitamente.

E quais são os próximos passos do PirateBay?
Espero que apareça algum sistema que torne o PirateBay obsoleto. Dez anos é muito tempo para um site como este. Adoraria ver um aplicativo com um cliente torrent embutido que poderia utilizar todos os agregadores de metadados disponíveis. Algo que nos tornasse livres de sites e domínios…

TPB: AFK | Lançado no início de 2013, o documentário TPB: AFK (The PirateBay: Away From Keyboard, Longe do teclado, em inglês), do sueco Simon Klose, acompanha o julgamento dos três fundadores do site desde o meio de 2008 até o veredito, no início do ano passado. O filme foi disponibilizado gratuitamente para download no próprio PirateBay. Tobias Andersson diz ter achado o filme “meio entediante”.

Presidente Kennedy

No ano 2000 entrevistei o Jello Biafra para a revista Rockpress. Devo ter a edição impressa em algum lugar aqui em casa, mas revirando meus arquivos digitais encontrei a versão em .txt da matéria que fiz, que segue abaixo, na íntegra. Resolvi republicá-la agora porque muito do que Jello fala tem a ver com o que está acontecendo agora…

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PRESIDENTE KENNEDY
Jello Biafra solta o verbo sobre globalização, processos judiciais, Sílvio Santos, alimentos transgênicos, protestos contra o FMI, corrida eleitoral, pornografia, Gordo na MTV, ecologia e a guerra santa da verdade das câmeras de vídeo!

Muito poderia ser dito à abertura de uma entrevista com Jello Biafra. Mas, sério, precisa? Jello fala pelos cotovelos e gosta, age ao telefone com a mesma verborragia cínica que destila nos microfones do planeta, misturando ideologia, economia global, preconceitos e arte num carregamento expresso de palavras cuspidas com firmeza de uma das línguas mais afiadas da história da música pop. Quase uma hora de papo com o cara pelo telefone explica muita coisa. Então tá: domingo de eleição (primeiro turno), cinco horas da tarde (a hora em que as urnas se fechavam – MUITO sintomático) e o telefone do cara na mão, me passado feito senha secreta pra detonar a bomba da terceira guerra mundial. Não era pra tanto. Era apenas mais uma das bombas verbais do presidente Kennedy, bem na minha orelha. Toca o telefone, duas vezes e atende. A secretária eletrônica.

Jello na secretária eletrônica – “O coelho Alba é um muito especial. Porque seu pelo brilha verde fluorescente no escuro. Não por causa da tintura de cabelo punk, mas porque Alba foi manipulado geneticamente para ser deste jeito pelo artista Eduardo Kac. Há muita controvérsia sobre formas de vida transgênicas para motivos frankenstalimentares, mas… artísticos? Descubra o que as pessoas pensam quando Alba será exposto em público no simpósio de Chicago chamado Arte, Ciência e Liberdade de Expressão: O Mundo de Eduardo Kac, que começa dia 17 de setembro, em Chicago”.

Olá Jello, aqui é Alexandre, do Brasil. Falei com a Michelle da Alternative Tentacles e se você estivesse em casa…
Jello Biafra – Alô.

Alô? Jello?
Jello Biafra – Sim.

Tudo bem?
Jello Biafra – OK.

Dá pra fazer a entrevista agora?
Jello Biafra – Claro.

Eu queria então que você começasse falando sobre as manifestações de Seattle contra as grandes organizações que representam a globalização, o FMI, o Banco Mundial, a OMC (Organização Mundial do Comércio)…
Jello Biafra – Você está gravando?

Sim.
Jello Biafra – Volte a fita para ouvi-lo.

Claro. (Voltei a fita, ele ouve a própria voz e consente).
Jello Biafra – OK.

Entre as formas que você poderia ter usado para falar o que queria, você preferiu cantar.
Jello Biafra – Eu cantei e discursei. E é bom frisar que não foram tumultos, que aquilo foi distorcido pela mídia corporativa porque alguns idiotas quebraram umas janelas. Quem tumultuou foi a polícia. Eu acho que é bom ponto para seu público, aprender como a mídia corporativa trabalha. Eles dizem que é um tumulto porque quebraram umas janelas mas não falam das 50 mil pessoas em paz.

Mas você acha que a música é a forma mais poderosa de atingir outras pessoas?
Jello Biafra – É uma delas. Você pode fazer isso falando, pelo rádio, filmando, pelo jornalismo. Todo mundo deveria fazer o que pode.

Mas a música parece agir de forma mais próxima, porque atua de uma forma mais emocional em relação às pessoas. Você concorda?
Jello Biafra – Houve uma discussão sobre como deveríamos fazer o show no final da manifestação, porque havia muitos policiais e tinha gás para todo lado. Estávamos presos dentro de uma casa de shows assistindo a polícia pela TV do lado de fora. Na noite seguinte ainda houveram problemas com a polícia, toque de recolher e o Michael Franti, do Spearhead, disse: “Agora, de todas as formas, as pessoas precisam de música”.

Um aspecto que parece ser positivo da globalização é o fato de você polarizar a discussão entre os que exploram e as diferentes forças intelectuais e ativistas de esquerda.
Jello Biafra – Não é tão simples. As forças da globalização ainda estão no controle. Eles ainda têm o dinheiro, o poder, a mídia e as armas. Mas essa é a mesma situação que a América assistiu quando algumas vozes solitárias começaram a pedir o fim da guerra do Vietnã, quando algumas vozes corajosas na América do Sul exigiram o fim de ditaduras militares arriscando a própria vida. Você tem que começar em algum lugar, mas o ponto é que isso está apenas começando.
Todo mundo tem de se envolver por todo mundo. Por exemplo, eu ouvi falar que há uma resistência no Brasil ao cultivo de alimentos geneticamente adulterados – ou deveria dizer, mutilados. Nos Estados Unidos, quase ninguém sabe que isso existe, que dizer que já está em nossa comida, agora. Ajuda quando as pessoas no Brasil, na Europa e agora na África e Índia resistem à franken-comida. Ajuda o fato das pessoas do Brasil ajudam o resto de nós salvar os Estados Unidos deles mesmos (ri).

Porque o capitalismo se vende como um paraíso, mas na verdade só oferece uma opção. Veja a atual campanha presidencial americana, em que os dois candidatos são praticamente o mesmo.
Jello Biafra – Sim, o mesmo, mas a maioria das pessoas por aqui não votam, que é o que as corporações querem. Eu estou tentando fazer as pessoas votarem porque existe um bom terceiro candidato chamado Ralph Nader, do Partido Verde. Mesmo se ele não ganhar, o que provavelmente não vai acontecer, a vitória não vem logo adiante: se ele ganha 5% dos votos, o dinheiro que o governo dá aos grande partidos durante a campanha virá de forma equivalente para o Partido Verde. Isso quer dizer 12 milhões de dólares americanos, no mínimo. Podem ser importantes para fazer crescer o perfil e a atenção do Partido Verde nos próximos anos.

Mas surte efeito jogar o jogo político com as regras de quem manda?
Jello Biafra – Eu acho que é melhor do que não fazer nada. A ação nas ruas é uma parte disso, mas a outra é tirar estes imbecis dos escritórios deles, que é uma coisa que ainda podemos fazer. A maioria das pessoas não sabe que estes outros candidatos existem, porque sua liberdade foi tirada pela censura da mídia. A notícia é que o Ralph Nader, do Partido Verde, existe. Mas outra razão para participar mesmo sendo pelas regras deles, é o princípio das artes marciais que fala para usarmos a força de alguém contra eles. Talvez não vamos ter um bom presidente, mas se as pessoas se fizerem ouvir, vão ter pessoas melhores nos escritórios governando cidades, escolas, estados… Não é só o presidente. A maior parte do dinheiro que é mandado do governo federal vai à instância local para ser decidido como ele será gasto, se será gasto em casas para os necessitados ou em um outro campo de golfe. Também é muito importante ver quem está mandando nas escolas, pois ao contrário farão as crianças terem aulas sobre a Bíblia.

E em paralelo a este jogo de mídia, há todo um poder no submundo da internet que não gosta de aparecer e faz tudo que tem de fazer longe do olho público. Qual é seu papel político?
Jello Biafra – Há trinta anos a mídia era independente e ajudava a policiar os governantes e as corporações mostrando como estes agiam de forma imbecil. Agora a mídia foi comprada por estas mesmas corporações e tornou-se basicamente numa vitrine de propaganda para as mesmas. O movimento de mídia independente começou a tomar o poder de volta deles à medida que as pessoas estão tendo a informação
real via internet, pela televisão pública ou microrrádios.
Por exemplo, a CNN disse que, em Seattle, a polícia estava agindo comportadamente e não houveram balas de borracha disparadas. E a mídia independente colocou no ar na internet em menos de uma hora, cenas de policiais atirando nos manifestantes com balas de borracha. CNN foi forçada a mudar sua história pois outras pessoas trouxeram suas câmeras também. Eu chamo isso a guerra santa da verdade do câmera de vídeo (camcorder truth jihad), quando mostra-se algo que não deve ser visto.

Mas como esse movimento consegue quebrar o ciclo que o público quer exatamente este ideal de felicidade?
Jello Biafra – Mas nem todas as pessoas, na América e no mundo, estão tão felizes agora. Falam de como a economia está ótima e como os Estados Unidos nunca foram tão ricos, quando apenas uma em cada cinco pessoas está se beneficiando deste boom econômico. Os outros 80% não tem porra nenhuma. São 80% das pessoas se fodendo e sem saber porquê. Eles podem não entender os motivos, mas aos poucos vão sabendo. Por exemplo, em Seattle, não eram apenas radicais, punks e hippies marchando contra a OMC, mas haviam os sindicatos também. Todo mundo desde metalúrgicos a pilotos estavam marchando lado a lado com pessoas que são normalmente tachadas de loucos. Isso é algo importante a ser salientado: os sindicatos não ajudaram a protestar contra a guerra do Vietnã, mas agora estamos do mesmo lado.

E qual vai ser a velocidade deste desenvolvimento político?
Jello Biafra – Ele vai acontecer. Vai ser difícil, mas tem de ser feito. Vai demorar pelo menos o mesmo tempo que demorou para parar a guerra do Vietnã, talvez mais. Porque desta vez o inimigo são as próprias corporações.

O presidente do Brasil também fechou esse acordo de fortalecimento da economia com o FMI…
Jello Biafra – …e ele deve! Caso contrário, eles descobrem uma forma de derruba-lo.

Deste jeito, nossas riquezas estão sendo aos poucos repartidas pelas corporações estrangeiras. Como você acha que o Brasil pode reagir a isso, uma vez que você conhece a história dos países latino-americanos?
Jello Biafra – Eu acho que é importante lutar o máximo que puder para preservar o que resta da Amazônia e suas tribos nativos. E educar o máximo de pessoas que a maior parte das riquezas vão para corporações multinacionais, não apenas americanas, mas européias e japonesas, e não para o Brasil. Há um discurso que diz que devemos explorar a Amazônia para tirar o Brasil da pobreza, mas não é isso que acontece. Os mesmos ricos tiram o dinheiro e tudo mais e todo o resto continua na mesma. Eu tenho a impressão que a maioria dos brasileiros apóiam a exploração das riquezas nativas.

Sim, porque vem embalado como progresso.
Jello Biafra – O importante seria apontar que isso não estava fazendo bem algum ao país. O Brasil parece um país muito nacionalista, então acho que a primeira coisa a fazer é falar o jeito que eles falam.

Além do fato que o inglês tornou-se uma espécie de uma segunda língua por aqui.
Jello Biafra – Muitas bandas daí cantam em inglês (ri).

Não apenas o Brasil, mas o terceiro mundo como um todo acaba parecendo um mutante entre a cultura americana e a cultura local.
Jello Biafra – Não apenas por causa da TV americana, mas a música também deve ser culpada.

Mas esta mesma música que aliena as pessoas, voltando ao início da entrevista, pode faze-la entende-las?
Jello Biafra – Sim. Você já disse isso, a música pode agir num nível emocional ou espiritual. Eu posso ouvir Ratos de Porão em português e ainda sentir a música, a energia, a emoção. Não são todos americanos que suportam isso, eles não conseguem ouvir outra música que não seja cantada em inglês.

Qual a imagem que o Brasil tem nos Estados Unidos?
Jello Biafra – Uma das piores partes sobre o fato das corporações controlarem a mídia é que a forma que eles censura alguns assuntos importantes existem pra valer. Então as únicas vezes que você ouve falar no Brasil é quando há um acidente de avião ou o time de futebol ganha. Os americanos não tem a menor idéia sobre o Brasil. Sabem que é na América do Sul, que tem muita floresta, que as cidades são muito poluídas… Os que sabem mais um pouco sabem que existe uma enorme desigualdade entre o mais rico e o mais pobre. Mas além disso, ninguém mais sabe mais nada. Eu acho que eu sei mais um pouco porque eu falo com brasileiros com mais freqüência, mas a maioria dos americanos, não, claro (ri).

Você esteve no Brasil em 92. Qual foi a sua impressão quando viu as coisas que já haviam lido sobre?
Jello Biafra – É difícil dizer porque eu não fui à floresta ou qualquer coisa do tipo… Eu só fui ao Rio e a São Paulo. Claro que as favelas eram muito chocantes, mas não surpreendentes. Um amigo brasileiro me levou a uma favela no Rio e ficamos lá à noite para ver uma banda que havia por lá. Há uma atmosfera de felicidade estranhamente diluída na superfície: as pessoas conversando com amigos e vizinhos e bebendo nas ruas… Mas consigo me lembrar de mais coisas além dos velhos discos brasileiros legais que eu encontrei lá. Primeiro foi descobrir que o que os americanos queriam forçar no tal encontro de cúpula (a Eco-92) que as corporações americanas poderiam entrar na Amazônia, pegar o gene de um animal e uma planta e dizer que era delas, vendo por um preço alto para alguém, sem pagar nada para as pessoas que mora lá. Outra coisa que eu me lembro, até comentei isso outro dia, que eu vi que haviam sacos plásticos nos mercados do Brasil do mesmo jeito que nos Estados Unidos. E disseram: “isso mostra como estamos evoluindo no mundo”, o que é justamente o contrário (ri).

E é exatamente assim que vivemos: achando que cada pequena nova coisa é algo que nos eleva e não o contrário.
Jello Biafra – Será mágico como um programa de TV americano. Mas por um outro lado, parece que em vez do Brasil ficar cada vez mais parecido com os Estados Unidos são os Estados Unidos que vão ficar mais parecidos com o Brasil. Um dos economistas do Ronald Reagan dizia que usava o “modelo brasileiro” para o futuro dos Estados Unidos: o rico fica bem mais rico, o pobre fica bem mais pobre e você aciona o poder militar e a polícia para ter certeza que ninguém reclame. Eu lembrei de outra coisa que eu vi no Brasil, era um programa de TV que só mostrava closes em gente morta, toda noite: gente que levou tiro, atropelados… E agora você vê o mesmo tipo de programa nos Estados Unidos.

Prepare-se então para a próxima onda, com mulheres esfregando a bunda na câmera…
Jello Biafra – Isso não me surpreende, não mesmo… Isso já tem aqui. Até os programas de debate, como Jerry Springer, em vez de pegar gente discutindo assuntos tem gente se pegando na porrada. Aí você muda para a Janie Jones e a grande pergunta do dia é “minha filha peituda está mostrando muita carne na escola?”, desfilando adolescentes com peitões na TV… É só sexo e violência, TV é isso. O que aconteceu com um apresentador em São Paulo que tinha um programa de jogos, que parecia um crocodilo e tinha um microfonezão saindo de dentro do peito?

(Rio)
Jello Biafra – Você deve saber de quem estou falando…

Sim, do apresentador Sílvio Santos…
Jello Biafra – Ele foi candidato a prefeito…

A presidente. Eles está na TV agora mesmo, enquanto conversamos. Hoje, inclusive é eleição para prefeito no Brasil.
Jello Biafra – Ele está concorrendo de novo?

Não, ele não chegou a concorrer. Ele só ameaçou fazer, para atrapalhar a disputa. Como o Ted Turner fez…
Jello Biafra – …Não lembro se ele fez isso, mas sei que ele sabe que tem mais poder onde ele está (ri).

Mas qual era a do programa, que você ia falar?
Jello Biafra – O mais louco era que na noite em que eu assisti, o grande prêmio era uma arma (ri)! O show acabava, começava a chover papel do teto, os créditos subiam e ele e a mulher que ganhou o prêmio estavam atirando com suas armas felizes e satisfeitos. Não chega a ser tão estranhos quanto os programas de TV no Japão, mas… Mesmo dando um prêmio como uma arma num programa de TV e ao mesmo tempo tem um show com fotos de cadáveres… Isso é uma forma de dessensibilizar as pessoas em relação à violência. Tentar provar para as pessoas que aquilo é normal. E isso está acontecendo nos Estados Unidos também… Embora não haja nenhuma revista como a Rudolf nos Estados Unidos (ri). Muito menos vendida em bancas de rua onde crianças podem ler…

…e comprar.
Jello Biafra – É estranho. Se o país é muito religioso, fervorosamente católico; o outro lado é tão fervoroso também. Tem uma loja de souvenirs no Corcovado que vende filmes pornô (ri)!

Mudando um pouco de assunto, eu queria que você falasse da briga judicial entre a Alternative Tentacles e os ex-Dead Kennedys.
Jello Biafra – Foi a coisa mais escrota que já aconteceu em toda minha vida. Gastei um bom tempo tentando lembrar as pessoas da nossa música e o que ela significava elas, quando tudo o que eu queria era que eu não tivesse conhecido esses imbecis. Eu não vou deixar eles colocarem “Holidays in Cambodja” numa propaganda da Levi’s. Então eles vieram atrás de mim com um grande advogado corporativo que também representa o Journey, o Boston, os Doobie Brothers e o Santana, e eles estão me processando por não ser corporativo, tentar destruir a Alternative Tentacles e roubar a música. Eles ainda mentiram ao dizer que escreveram todas as minhas músicas. Dizendo que eu estava roubando dinheiro deles quando na verdade eu havia os pago. Para o choque de todos, incluindo deles mesmos, o júri acreditou nisso. E agora, mesmo estando num puta rombo financeiro, eu tenho que juntar grana para apelar na justiça. Nesse meio tempo, eles estão tentando vendendo o catálogo dos Dead Kennedys o quanto antes sem se preocupar com nada. Por isso se você ver qualquer disco da Alternative Tentacles por outra gravadora NÃO COMPRE. Eles ainda usaram dinheiro que roubaram de mim para pagar o advogado deles. Eles não ligam para o que a banda significou, só querem dinheiro.

Quando você vai apelar?
Jello Biafra – Ainda não. Estou me preparando. Toda essa coisa influencia meus sentimentos a respeito do Napster, do download de músicas… Se eles conseguirem tirar minha música de mim, então o Napster será meu melhor amigo.

E o que você acha do Napster hoje?
Jello Biafra – O Napster deve ser destruído em breve pelas grandes gravadoras. Mas logo uma nova tecnologia que será mais difícil de destruir irá substituí-lo. Isso faz parte da bela e a fera que é a internet: não importa que tipo de garras que ponham no caminho e fechem as coisas; sempre haverá um moleque chateado de qualquer idade que irá encontrar um jeito de foder com aquilo (ri)!

Aproveitando a deixa, o que você acha sobre a questão dos direitos autorais. O formato tem que ser mudado?
Jello Biafra – Provavelmente. Agora mesmo estou lutando pelos direitos das minhas próprias músicas (ri). Querem roubar para coloca-la em comerciais e filmes de merda. Mas por outro lado, eu não sei o que vai acontecer. Eu não estou tão preocupado com o Napster ou com essa tecnologia, porque já acabou. Não vai fazer tão mal quanto alguém gravar um filme da televisão ou xerocar parte de um livro para um jornal da escola. Muitas pessoas que usam Napster não o fazem para roubar música, mas para ouvir antes de comprar. Você baixa uma música e se gostar, vai procurar o disco. Demora muito tempo para baixar um CD inteiro no Napster. Tanto tempo que o usuário prefere pegar o CD.

E ao mesmo tempo, conseguem baixar músicas de bandas independentes.
Jello Biafra – Eu espero que as pessoas apóiem a música independente. Porque o Napster pode começar a machucar pequenos músicos, que não têm muita grana e dependem da venda do Napster. Mas até aí eu sou pró-Napster. Eu tenho que ir (espreguiça-se).

Legal, Jello. Ótima entrevista.
Jello Biafra – Você também gostaria de saber que tem um disco novo meu, que é só falado, que vai sair agora em novembro, que chama-se Become the Media. E um novo EP do Lard chamado Seventies Rock Must Die.

Become the Media (torne-se a mídia) é um conselho?
Jello Biafra – É um grito de guerra. Torne-se a mídia ao tornar-se parte da guerra santa da verdade da câmera de vídeo. Pegue os policiais que bateram em Rodney King e os caras atirando balas de borracha – esta é a guerra santa da verdade. Apoie zines, rádio, música, a cultura independente… E, claro, apoie a cultura independente ao não dar dinheiro para grandes lojas em cadeia – sejam lojas, restaurantes… Tornar-se a mídia significa ser didático com as pessoas de casa, na família, na escola… Quando ouvir bobagens como “vou votar em Gore porque o Bush é pior ainda”. Conte a elas… a verdade.

Planos para vir ao Brasil?
Jello Biafra – Não por enquanto. Eu gostaria voltar, mas não parece que eu possa ir agora. Eu estou no meio de uma batalha legal…

Quando a revista sair, eu faço o possível para ela chegar em suas mãos.
Jello Biafra – Acabamos de lançar um disco novo do Ratos de Porão, o Crucificados pelo Sistema, que é uma regravação do primeiro álbum. Tá muito mais insano agora. O primeiro é muito bom, mas eu fiquei surpreso com esse novo…

Você sabia que o Gordo trabalha na MTV Brasil?
Jello Biafra – É engraçado, porque ele nega. Mas eu prefiro ter o Gordo na MTV que a Britney Spears. Ele é um exemplo bem mais positivo para jovens em todo mundo do que o mais novo clone pop americano.

Tá bom Jello. Valeu.
Jello Biafra – OK. Tchau.

Um papo com Slavoj Žižek

Bati um papo com o filósofo Slavoj Žižek quando ele esteve aqui no mês passado numa conversa que entrou na edição atual da Galileu. O Eugênio me acompanhou fazendo as fotos e os vídeos logo abaixo do texto da entrevista.

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Nós somos nossa tecnologia
Polêmico filósofo esloveno fala de nossa relação com as máquinas

Mal sou apresentado ao filósofo Slavoj Žižek no lobby do hotel na Alameda Santos, em São Paulo, em que ele se hospedou quando esteve no Brasil no mês passado, e ele aponta para a lata de refrigerante que está tomando: “Você sabe por que a Coca-Cola lançou a Coca-Cola Zero? Porque a Coca-Cola Light era associada ao público feminino, por ser ‘light’. Ao criar a versão Zero, neutra, conseguiram recuperar o público masculino”. E é nesse ritmo — uma enxurrada de ideias, pontos de vista, metáforas e hipóteses — que o pensador e provocador enfileira referências eruditas e pop, cultas e populares, para retratar o mundo ao seu redor. Sua recente visita ao Brasil aconteceu em decorrência do seminário Marx: A Criação Destruidora, realizado pelo Sesc e pela editora Boitempo (que está lançando Menos que nada: Hegel e a sombra do materialismo dialético, do próprio esloveno no país). Aproveitei para conversar com ele sobre um dos assuntos que mais o interessam, que é o papel da filosofia em relação aos desenvolvimentos tecnológicos atuais. Em uma hora de papo ele falou sobre isso, sobre livre sexo, religião, singularidade, gnose e tecnologia — a maior parte dessa entrevista você assiste no vídeo que fizemos para o site GALILEU. Por aqui, ele fala sobre a nossa relação com a tecnologia.

Você acha que podemos ser otimistas em relação ao futuro, devido ao avanço da ciência e da tecnologia no século passado?
A princípio, sim. Mas é bom não esquecermos de que a lacuna entre os mais pobres e os mais ricos é muito maior. Os ricos, verdadeiramente ricos, vivem num mundo bem diferente, mesmo no que diz respeito à ciência. Essas pessoas estão se prevenindo contra possíveis doenças, talvez até modificando seus cérebros para ficarem mais inteligentes. Pode ser que em breve as diferenças de classe se tornem diferenças na espécie. Mas concordo que há o velho pessimismo humanista europeu que prega a catástrofe, diz que a humanidade está em seus últimos dias e que estamos nos tornando máquinas que só se interessam pelo prazer.

Mas esta crítica tem a ver com o deslumbre atual pelo universo digital, que vem tomando conta das pessoas como se fosse um vício.
Não acho que isso seja um problema, pois a natureza humana tem uma habilidade incrível de incorporar e padronizar o que, a princípio, a chocava. Quem escreveu primeiro sobre isso foi Henri Bergson, que, ao se referir à Primeira Guerra Mundial, dizia que, antes da guerra, todos diziam: ‘Estamos vivendo 50 anos de paz na Europa, uma guerra nunca poderá acontecer de novo’. Mas então a guerra explodiu e dentro de uma ou duas semanas de choque, todo mundo a tomou como um fato.

Você não acha que há um tabu em relação à adaptação às novas tecnologias?
Sim, isso pode ser traumático. Por exemplo, pessoas com problemas renais precisam fazer diálises constantemente. Alguns pacientes me disseram que por mais que pensamos que somos autônomos e só precisamos de nossos corpos, eles dependem de uma máquina que está fora do seu corpo. Se o vínculo com a máquina é rompido, é a morte. E numa metáfora patética, será que a nossa linguagem, nosso sistema simbólico, não funciona da mesma forma? É o que diz, por exemplo, o estudioso da cognição cerebral Daniel Dennett, que fala que do mesmo jeito que um animal sem os pelos não é um animal — um coelho depilado é antinatural —, o mesmo vale para o ser humano — não em relação a nossas roupas, mas às nossas máquinas. Elas são partes da nossa identidade. Se você desconectar o ser humano de suas máquinas, você tem um animal mutilado.

Somos a nossa tecnologia.
Com certeza! E as tecnologias modernas só nos tornam mais conscientes disso.

Assim pode ser que a internet, por exemplo, seja uma manifestação física de nosso inconsciente coletivo?
Sim, isto está acontecendo, mas é algo que só faz sentido quando contraposto às nossas mentes individuais. Não compro essa história de “mente coletiva”. Se você matar as pessoas que operam as máquinas, elas não vão ficar felizes trabalhando sozinhas. São apenas máquinas burras funcionando. Máquinas inteligentes só trabalham de forma inteligente em contato com a inteligência humana. Não falo isso como um humanista, mas apenas consciente da subjetividade humana.

Os vídeos com a íntegra da entrevista seguem abaixo:

 

Um papo com Nolan Bushnell, o criador do Atari

Conversei na semana passada com Nolan Bushnell, o fundador da Atari e pai do entretenimento eletrônico doméstico com o conhecemos hoje, que veio para São Paulo como uma das atrações da Campus Party na semana passada. Segue a íntegra abaixo:

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Conversamos com o pai do Atari
Nolan Bushnell, um dos convidados da Campus Party 2013, falou a Galileu sobre videogames e educação, como inspirou a Apple e a Nintendo e como quase popularizou a internet dez anos antes

Em uma Campus Party com poucas atrações célebres, Nolan Bushnell, que completa 70 nesta terça-feira, dia 5 de fevereiro, talvez seja o nome mais famoso do evento que encerrou suas portas neste domingo. Ele só divide atenções com o ex-astronauta Buzz Aldrin. Mas enquanto o segundo lugar de Aldrin – o segundo homem a pisar na Lua – não foi o suficiente para lhe garantir lugar na história (Neil Armstrong, que morreu no ano passado, sempre será o grande astronauta da Nasa, pelo menos no século 20), a prata de Bushnell não foi tão problemática. Afinal, ele foi o segundo empresário a lançar uma linha comercial doméstica de jogos eletrônicos, no início dos ano 70. O primeiro console da história, o Magnavox Odyssey, lançado seis meses antes, não sobreviveu, enquanto o por Bushnell, o pai do Atari, por um bom tempo foi sinônimo de videogame. E é da fama do Atari que este norte-americano vive até hoje – foi ela que o trouxe à Campus Party 2013 e que me permite entrevistá-lo quarenta anos depois de seu grande feito.

Quando refiro-me a ele como uma lenda viva, ele graceja: “Sempre pergunto às pessoas que dizem isso: ‘O que tenho feito recentemente para você?’”, ri. E, realmente, depois que vendeu a Atari para o grupo Warner no meio dos anos 70, Nolan Bushnell saiu do holofote mundial e deixou o mundo dos games comerciais para dedicar-se à educação. Sua atual empresa, a Brainrush, foi criada para aproveitar-se de um momento em que, graças aos meios digitais e à internet, o autoaprendizado torna-se não apenas complexo quanto divertido.

Foi disso que falou durante sua apresentação na Campus Party, sobre como o formato de aula tradicional restringe o aprendizado ao capturar a atenção apenas nos minutos iniciais. Bushnell crê no que ele chama de “tempestade perfeita”, uma situação de condições ímpares que irá acelerar o aprendizado em dez – “talvez vinte”, completa – vezes nos próximos cinco anos. “A aproximação entre software onipresente, redes robustas, hardware barato e ciência do cérebro irá provocar algo que nunca vimos antes, será uma mudança sem precedentes”, explicou, enfatizando que sua empresa aposta bastante no último ingrediente desta equação – a exploração do cérebro humano. “Hoje já fazemos testes que conseguem medir o quão rápido é o seu aprendizado. E sabe o que é engraçado? As crianças que estão tirando as piores notas hoje em dia são, na verdade, aquelas que aprendem mais rápido. Mas elas se chateiam mais rápido e por isso não conseguem mostrar um bom desempenho”, explica.

Embora afastado do universo do comércio digital, Bushnell sabe de sua importância para este mercado. “Acho que não foi por acaso, por exemplo, que Steve Jobs e Steve Wozniak trabalharam para a Atari. Eles construíram o primeiro computador Apple com partes de um Atari… Gosto de pensar nisso como raízes comuns para esta cultura de criatividade e inovação que une a computação pessoal aos videogames”, explica.

O fortalecimento desta indústria do outro lado do planeta também tem influência do trabalho de Bushnell na Atari, empresa norte-americana que adotou um nome japonês apenas pela sonoridade. Anos após se tornar a principal empresa de games dos EUA, a Atari viu surgiu, no Japão, sua primeira grande concorrente, a Nintendo, que impulsionou toda a indústria por lá. “Pong foi o jogo que deu origem ao negócio de jogos eletrônicos para o consumidor no Estados Unidos”, explica. “Mas, no Japão, como eles têm famílias menores, um jogo para duas pessoas não fez tanto sucesso, pois eles não têm o hábito de chamar amigos para jogar em casa. Então era preciso que um jogo bom para ser jogado sozinho e foi Breakout, justamente o jogo que Jobs desenvolveu, que deu origem ao mercado de jogos eletrônicos para o consumidor naquele país.”

A lógica dos jogos o acompanha desde o tempo da faculdade, antes de aplicá-la aos computadores. “Paguei minha faculdade como gerente de um parque de diversões. Eu trabalhava no verão e estudava no inverno, era uma combinação perfeita de empregos. E foi isso que me fez pensar em jogos. Desenvolvi uma sensibilidade ao ver milhares e milhares de pessoas jogando todos os dias. Via o que elas gostavam e o que elas não gostavam. Quando você empreende qualquer tipo de negócio, você tem de ter uma certa flexibilidade para lidar com seu público e acredito que minha experiência em parques de diversão me ajudou muito com isso”, explica.

Além de inspirar Apple e Nintendo, a Atari poderia ter acelerado a popularização da internet em pelo menos uma década. “A internet foi criada pelo governo e depois se tornou privada, mas 1976, tínhamos um projeto chamado Ataritel, em que construímos os modems mais rápidos no mundo e iríamos construir uma rede de troca de informações através das linhas de telefone. A ideia era reunir jogadores de uma região que tivesse o mesmo código de área em uma central que conversasse com outras centrais de outras regiões com códigos de área diferentes, de forma que as pessoas não tinham que pagar interurbano para jogar com pessoas de outros estados. Acontece que esta é exatamente a arquitetura da internet (ri)!”

Ele culpa o fracasso do projeto à venda da Atari para a Warner, naquele período. “Eles achavam que não tinha sentido fazer as pessoas jogarem games através de linhas telefônicas, que era uma ideia estúpida”, ri, sem graça. “A Atari é um dos raros casos – talvez o único – em que uma companhia que era líder em seu segmento cometeu
suicídio!”, lamenta. “Não foi homicídio, foram engravatados idiotas que trabalhavam na empresa que mataram a própria Atari.”

Pergunto se isso não tem a ver com a lógica corporativa industrial, que parece perseguir, em vez de incentivar, a inovação. “Acho que quem faz sucesso sem saber porquê tem muito medo de perder este status. Eles acham que qualquer tipo de mudança é perigosa e, por isso resistem a mudanças. Por isso que a próxima grande batalha que está vindo acontecerá nas escolas e universidades. Quem hoje é o detentor do conhecimento, que diz querer ajudar as pessoas, está completamente alheio e fechado às novas tecnologias que ensinam muito mais rápido do que um cara com um giz na frente de uma pequena multidão. Nos próximos anos vamos ver isso mudar muito rápido, na medida em que pessoas que não assistem aulas e não frequentam cursos começarem a superar as pessoas que frequentam escolas”, profetiza, voltando para seu tema atual favorito, a educação.

Mas é inevitável que o assunto volte aos jogos eletrônicos, uma vez que são justamente eles que o motivam a enveredar pela educação. Para Bushnell, são os games que vão salvar a educação da chatice. “Jogos fazem parte da textura psíquica dos seres humanos, desde que nós éramos homens das cavernas e brincávamos com fogo, até os dias de hoje. E à medida em que a tecnologia evolui, os jogos dão um jeito de se inserir nela. E do mesmo jeito que a tecnologia melhora, os jogos também melhoram. Eu me sinto muito mais um veículo deste fluxo do que um criador”, conclui.

Cory Doctorow: “O quanto antes o Facebook acabar, melhor”

Eis a entrevista que fiz com o Cory Doctorow para a Galileu deste mês.

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O que acontece quando se é banido da internet
Um romance para ilustrar os riscos da vigilância online

Cory Doctorow vive uma vida dupla. É um escritor de ficção científica que usa elementos da nova era digital para pensar num futuro próximo. E também é ativista digital empenhado em não permitir que as mudanças na internet possam interferir na liberdade individual. Em seu novo livro, Cinema Pirata (Galera Record, R$ 47,90), ele junta as duas faces ao desenhar um cenário que para muitos parece inofensivo, mas que pode ser tenebroso em poucos anos. Ele conta a história do adolescente Trent McCauley, que mora no norte da Inglaterra e tem como passatempo remixar filmes de um velho galã do cinema para recontextualizá-lo em situações constrangedoras — e sem o consentimento do autor. Isso o torna um infrator digital e a pena resulta no fim do acesso de sua família à internet, o que quer dizer que seus pais não podem mais procurar emprego ou pagar impostos em casa, nem sua irmã pode estudar. Frustrado, foge para Londres onde começa a entender a natureza por trás de sua punição. Conversei com Doctorow no fim de 2012, quando, atarefado com os filhos pequenos, preferiu responder em áudio às perguntas que fiz por e-mail.

Cinema Pirata é um romance, mas também funciona como um alerta, afinal o futuro distópico do livro não é tão distante de nossa realidade atual…
O que a ficção científica faz de melhor é colocar movimento e sangue em um argumento que, de outra forma, soaria frio e abstrato. Antes de George Orwell escrever o romance 1984, era difícil explicar por que ter uma câmera filmando por cima do seu ombro era tão perturbador. Graças a ele podemos importar aquela narrativa para entender por que toda essa vigilância suprime a nossa liberdade e por que só somos felizes, saudáveis e completos em uma sociedade livre. É muito fácil ser abstrato ao se tratar a internet como um sistema de TV por assinatura melhorado e dizer coisas como “qual é o problema de se regular a internet para excluir pessoas que assistem à TV de forma errada?”. O que quis mostrar no livro é o que isso significa tanto emocional quanto politicamente, como é sentir a pena de morte da era digital, ter seu acesso à internet tirado em um mundo em que quase tudo que você faz envolve a internet e que, em breve, tudo que você fará irá exigi-la.

Como a guerra contra a pirataria pode nos levar a esse estado de vigilância e restrição da liberdade?
O motivo para os computadores estarem na linha de frente do debate sobre direitos autorais não se deve apenas ao fato de serem máquinas de fazer cópias e destruírem o modelo de negócios da indústria do entretenimento, mas em razão de os legisladores acreditarem que eles podem ser legislados. Acham que basta fazer leis que digam como os computadores e a internet devem funcionar, que conexões podem ou não fazer, que programas podem rodar. O problema é que não há como inventar esse tipo de função, tecnicamente falando. Não dá para criar um computador que execute todos os programas menos um que lhe aborrece. O mais próximo disso são computadores que permitem fazer tudo, mas vêm repletos de softwares-espiões que vigiam o que é feito e tentam parar o usuário quando ele quer fazer algo proibido. Quando uma máquina vem de fábrica com esses recursos, há muitos desvios mal intencionados que podem também vir com eles. Se alguém entrar naquele software, pode prejudicar o usuário de muitas formas. Imagine, por exemplo, um carro que se dirige sozinho e que dispõe de uma trava digital que não permite que você carregue seus próprios softwares ou que não possa ver o que o software está fazendo. Se essa trava for comprometida, alguém pode alterar o software do carro e, em vez de ele não permitir que você corra, pode fazer seus freios pararem de funcionar. Os computadores foram concebidos para podermos ver o que eles estão fazendo e pará-los de fazer algo quando não queremos.

Há futuro para o direito autoral?
Antigamente, dizíamos que era possível controlar a indústria do entretenimento ao controlar a possibilidade de se fazer cópias, pois todo mundo que poderia fazer isso estaria necessariamente trabalhando em escala industrial. Hoje em dia, um computador faz cópias milhares de vezes ao dia e isso não torna todos que usam computadores parte desta indústria. Assim, temos uma indústria do entretenimento que insiste em leis ancestrais feitas para serem interpretadas por advogados corporativos e que devem ser obedecidas por todas as pessoas que trabalham com cópias. Ou seja, na era da internet, isso significa quase todo mundo. Não existe um conjunto de leis que seja flexível o suficiente para que a Warner licencie os direitos de Harry Potter para que a Universal faça um parque temático sobre o personagem e que, por outro lado, seja simples o suficiente para permitir que uma garota de 12 anos no porão da casa dos pais faça um site de fã sobre Harry Potter. Acho que a única maneira de resolver isso é criar outra definição para o que chamamos de processo industrial, que não seja apenas fazer cópias, algo que realmente represente só o que a indústria faz e, a partir disso, um novo conjunto de leis. Isso, no entanto, não quer dizer que não teremos regras culturais que nos digam como devamos usar essas coisas entre nós mesmos, de formas não-comerciais ou não-industriais. Mas não serão as mesmas leis que controlarão a indústria, da mesma forma que hoje temos leis que controlam o sistema financeiro e os bancos e elas não se aplicam quando precisamos emprestar dinheiro de um amigo ou pagar um almoço para ele.

Seus livros sempre foram lançados no formato tradicional, de texto. Você não tem intenção de explorar a interatividade ou o aspecto multimídia da narrativa?
Meu primeiro emprego de verdade foi em uma editora de CD-ROMs chamada Voyager, onde fui programador e desenvolvedor multimídia por alguns anos. Ainda não encontrei motivação de usar tais recursos na ficção, embora haja alguns projetos com os quais trabalho hoje que poderiam ter este formato. Mas, até agora, no que diz respeito à arte, eu tenho uma estética irredutível e um sentimento que está na minha cabeça e no meu coração e que eu quero levar para a sua cabeça e para o seu coração. E os recursos artísticos que melhor domino para transferir esses sentimentos são as palavras em ordem sequencial. Isso não quer dizer que eu não faria outro tipo de linguagem. Recentemente, lancei um livro ilustrado para crianças, algo que nunca tinha feito.

Conte-nos a história do site em que você escreve, o Boing Boing.
Meu primeiro contato com o Boing Boing foi como vendedor, quando eu ainda morava em Toronto e trabalhava em uma livraria — e o Boing Boing era uma revista de papel. Ela tinha sido criada por dois futuros amigos meus, Mark Frauenfelder e sua esposa Carla Sinclair, e alguns colegas deles, em uma época em que pequenas revistas estavam começando a ter distribuição internacional. Mas, alguns anos depois, a distribuidora que cuidava da revista faliu e a revista não conseguiu sobreviver. Conheci Mark anos depois, quando ele trabalhava em uma revista chamada Industry Standard, e foi convidado a testar um novo produto digital chamado Blogger. Para fazer o teste, pegou o domínio que já tinha de sua velha revista (boingboing.net) e instalou o Blogger lá. Ele ficou muito empolgado, mas não conseguiu emplacar a matéria na publicação, que pensava que esse novo serviço era só um modismo, uma nota de rodapé engraçadinha. Mas Mark gostou e continuou, conseguindo reunir algumas centenas de leitores até que ele conseguiu um furo jornalístico de médio porte. Havia muita especulação sobre uma invenção que estava para ser anunciada: uma empresa havia declarado que tinha desenvolvido um novo dispositivo inventado por Dean Kamen, que havia atraído o interesse de muitos investidores e quem o havia visto dizia que a invenção revolucionaria o mundo — Steve Jobs era um destes —, mas ninguém sabia direito o que era. Mark, sendo engenheiro, foi atrás das patentes registradas por Kamen e acertou corretamente sobre o que era o dispositivo, o Segway. Assim, a CNN publicou o Boing Boing no programa da noite e o blog teve milhares de novos leitores. Mark estava para sair de férias e me perguntou se eu estaria interessado em ser o editor convidado do site por uma ou duas semanas. Eu topei, ele gostou e, quando voltou, pediu para que eu continuasse. Trouxemos alguns amigos que tinham escrito na Wired — Xeni Jardin e David Pescovitz — e continuamos por cinco ou seis anos trabalhando basicamente por amor. Só que chegamos a um ponto em que não poderíamos trabalhar de graça, porque tínhamos alguns custos, como a banda de internet, que passava de US$ 50 mil dólares por mês… então resolvemos adotar publicidade. E falamos com nosso amigo, John Battelle, que estava começando uma empresa de publicidade online, chamada FM Publishing, e resolveu usar o Boing Boing como protótipo de como sua companhia iria funcionar. E assim continuamos crescendo. Acho que nossa fórmula secreta — o que fazemos melhor do que os outros — é que nós escrevemos apaixonadamente sobre as coisas em que acreditamos e nada mais. Não buscamos leitores, nossos interesses são nossas paixões. Provavelmente teríamos mais leitores se escrevêssemos sobre assuntos que eles gostariam de ler, mas tais pessoas viriam e iriam embora. Acho que onde nós acertamos é no fato de escrevemos sobre as coisas que realmente nos interessam.

Como você vê esta era da mídia social? Acha que o Facebook e o Twitter chegaram a um auge?
Se Facebook ou Twitter chegaram ao auge, isso não quer dizer que o mesmo tenha acontecido com a era da mídia social. O que provavelmente acontecerá com um lugar puramente social, como o Facebook, é que ele se tornará bastante tóxico. É o que parece sempre acontecer quando tentamos articular nossos contatos na internet e derrubar todas as barreiras entre as diferentes facetas de nossa personalidade, as diferentes pessoas que somos para nossos amigos, nossos familiares, nossos colegas de trabalho e por aí vai. Quando tentamos falar com todas essas pessoas ao mesmo tempo, isso começa parecendo ser libertador, mas com o tempo fica opressor e logo vamos para algum lugar em que não precisamos ser a mesma pessoa o tempo todo.
Foi o que aconteceu com o Facebook, que pegou todo mundo que estava no MySpace, que por sua vez pegou todo mundo que estava no Friendster. Parece ser uma regra que se repete o tempo todo e acredito que isso também acontecerá com o Facebook. Mas este tipo de serviço chegou para ficar e logo surgirão outros novos, todos tentando achar um equilíbrio entre como fazer dinheiro com seus usuários — às vezes às custas deles, forçando-os a derrubar as barreiras de suas identidades sociais — e como fazer dinheiro de outras formas, assim evoluindo para algo melhor. O Twitter, no entanto, não pertence ao mesmo universo do Facebook e se ele acabar será porque alguém entendeu como fazer o que o Twitter faz melhor do que eles. É parecido com a TV: quando a televisão apareceu, todos aqueles filmes que funcionavam melhor nesse formato se tornaram programas de TV. Aí, quando o YouTube apareceu, os programas de TV que funcionavam melhor na telinha se tornaram vídeos do YouTube. E acho que isso pode acontecer com o Twitter. Agora, mesmo que isso aconteça e que o público do Twitter vá para outro serviço, acredito que ele continuará como veículo para as coisas que têm mais a sua cara.

Qual dos dois devemos temer mais: Google ou Facebook?
Acho que o Facebook. O Google pelo menos parece ter alguma consciência da dimensão social do que ele faz. Não é que ele sempre faça as coisas melhor ou que leve seu slogan de não fazer o mal tão rigidamente, mas ao menos eles têm uma ideia empresarial sobre como o que eles fazem afeta a vida das pessoas. E a saúde da internet está ligada à saúde do Google. Já o Facebook parece não ter nenhuma dimensão moral ou ética. Não é que ele seja imoral, mas, sim, amoral. Eles não medem as consequências de seus atos se o assunto é faturar dinheiro. E quando articulam qualquer tipo de filosofia moral é sempre o Zuckerberg [seu criador] falando coisas bizarras ou estúpidas, como as pessoas devem ter apenas uma personalidade ou mostrar todas as facetas de sua identidade a todo mundo. Isso é de uma estupidez e arrogância monumental. Fora que as pessoas continuam empilhando uma quantidade enorme de informações sobre si mesmas que podem colocá-las em risco — informações que, se alguém mais fica sabendo, podem causar problemas no trabalho ou com a polícia. Esses dados eventualmente vazam ou são hackeados, e eles [do Facebook] não estão nem aí. O quanto antes o Facebook acabar, melhor.

Você acha que os problemas políticos e empresariais relacionados à internet vêm do fato de que seus líderes não entendem a rede porque nasceram em outra época?
Não sei se dá para apenas dividir isso por faixas etárias. É claro que quem é mais velho nunca vai conseguir entender o que é crescer em um mundo em que tudo está conectado. Mas, dito isso, também é verdade que há muitos jovens que não se lembram da internet mais aberta e livre, que nasceu de um esforço coletivo e onde tudo que fazíamos parecia de certa forma heroico, onde todos se sentiam parte de um grande projeto humano que tornaria o mundo um lugar melhor. E algumas pessoas mais velhas sempre têm isso em mente. Acho que precisamos achar esse equilíbrio, entre a internet como um projeto que nos torne a todos melhores e a internet como uma ferramenta que deve ser tratada de forma sensível.

Gostaria que você falasse um pouco do que conhece sobre o Brasil e nossa política digital.
Acompanho bem o Brasil, mas não tanto quando estava na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, vinculada a ONU. A delegação brasileira era tão boa que eu aprendi muito sobre a política do país. Claro que também tive contato com o Gilberto Gil [então Ministro da Cultura], Sérgio Amadeu [sociólogo e pesquisador da cultura digital], o pessoal do movimento dos Telecentros… O Brasil é central para o movimento do software livre e dos Creative Commons… Mas sei muito desse lado politizado, mas não do Brasil como um todo, o que é uma pena. E uma das tragédias de se morar na Inglaterra é que muito pouca coisa é traduzida para o inglês, e o pouco que é tem de competir com esse enorme pool de produção em inglês nativo. Aí, é difícil se informar em outro idioma a não ser o inglês.

David Karp, fundador do Tumblr: “A cultura brasileira celebra a criatividade mais do que a dos EUA”

E a matéria de capa do Link desta semana é a entrevista que fiz com o fundador do Tumblr, David Karp, que vem ao Brasil começar a internacionalização de sua plataforma – e nesta mesma semana inauguramos o Tumblr do Link.

A orkutização do Tumblr
O criador do Tumblr chega ao Brasil para promover a expansão internacional do site e fala, com exclusividade ao Link, sobre o rumo da plataforma que está substituindo os blogs

David Karp, criador do Tumblr, chegou ao Brasil no fim de semana para uma série de eventos que marcam o início da internacionalização do site criado por ele há cinco anos. O primeiro aconteceu em Curitiba, no domingo, e os próximos têm data marcada para esta semana: dia 25 há uma festa no Rio de Janeiro (no Espaço Sacadura) e dia 26 em São Paulo (no antigo Masp, no centro).

Uma plataforma de autopublicação simplificada, o Tumblr é uma das principais redes sociais do mundo, e Karp diz ao Link que escolheu o Brasil para começar sua expansão internacional por achar que nosso comportamento online reflete bem a natureza de seu site, que, como ele diz, quer que funcione como um ponto de convergência para criadores online. Conversei com ele na semana passada pelo telefone sobre a relação de seu site com a nossa cultura digital.

Por que começar a expansão pelo Brasil?
O Brasil é uma comunidade incrível. Não só pelo fato de crescer e usar a internet de forma ágil, mas também pela sensibilidade criativa. E não é algo que esteja restrito a uma comunidade de early adopters ou às pessoas fascinadas por tecnologia ou a uma região específica – é o país inteiro. Acho que o Tumblr toca num nervo que mexe com a noção de cultura daí, uma sintonia que não atingimos nem nos EUA. A impressão que tenho é que o seu país é um caldeirão para novas formas de produzir artes e uma nova cultura. É claro, para mim, que a cultura brasileira celebra a criatividade mais consistentemente do que os EUA hoje em dia.

Como o Tumblr se encaixa num cenário que já tem Twitter, Facebook e Google? A impressão que tenho é que vocês lidam com nichos em vez de lidar com a massa…
O motivo pelo qual várias comunidades diferentes são atraídas pelo Tumblr é a diversidade. Apesar de parecer que o Tumblr é uma plataforma para fotos e vídeos, eu o considero um lugar para mídias em geral. Pode ser mais uma vontade minha do que a realidade, mas acho que ele tem mais a ver com diversidade e liberdade de expressão do que com algum tipo específico de mídia ou de conteúdo. Por exemplo, o Twitter é ótimo para quem usa o celular se expressar e é bom para frases de efeito ou piadas de comediantes. Já o Instagram e o Flickr são ótimos para fotografia, e o YouTube tornou-se um padrão para vídeos. Mas vejo o Tumblr como algo atraente e excitante para criadores em geral, e queria que ele se tornasse um ponto de convergência para comunidades criativas.

Quando o Tumblr começou, há cinco anos, a internet no celular ainda era rudimentar, não havia a economia de aplicativos e redes sociais não eram algo tão presente. Como continuar relevante nos próximos cinco anos?
Começamos como uma plataforma de publicação e era o que queríamos: ser uma plataforma simples e fácil de usar. Acontece que surgiu uma rede de mídia diferente desde que criamos o Tumblr. Assim, funcionamos como vitrine para esta nova rede. A tecnologia muda de forma muito rápida e os criadores acompanham a velocidade dessas mudanças. Sobre internet móvel, acho que estamos ainda arranhando a superfície de algo completamente novo, por isso não acho que estamos defasados em relação ao que virá. E há tantas coisas sendo criadas agora – linguagens de programação, hardwares, novas tecnologias – e eu não vejo nenhuma grande empresa de tecnologia lidando com isso hoje. No máximo o YouTube, mas acho que eles têm uma abordagem bem diferente da nossa.

Qual é a sua abordagem para estas mudanças de formatos e plataformas?
O telefone celular, sem brincadeira, é a máquina de produção de mídia mais sofisticada que já existiu. Antes você precisava de uma filmadora, ligava-a ao computador, esperava o vídeo ser transferido, para aí sim editá-lo muito lentamente. Agora, você faz tudo isso em um só aparelho de 100 dólares. É incrível. O que nos deixa muito animados com essa mudança para dispositivos móveis é que ela torna muito mais fácil produzir qualquer coisa que, se não fossem os celulares, as pessoas não produziriam – e talvez não se descobrissem como criadores. Os aplicativos que já foram criados para esta máquina – o Instagram, o Cinemagram… – não estão nem no começo da história.
Ao mesmo tempo, você tem uma nova plataforma que também é um aparelho – o tablet. Para mim, a maior qualidade dele é trabalhar com a exploração e descoberta na navegação, o que é parecido com a natureza do Tumblr. Meu blog, por exemplo, tem posts de todos os assuntos, em todos os tipos de mídia. Algumas coisas eu criei, outras eu repostei de outros. E quando eu vejo os blogs desses outros criadores, também vejo que eles também têm suas coleções de tópicos e mídias.
É uma rede muito complicada de se explorar (ri). Há tantos pontos de conexão que você pode navegar por horas, dias na rede de uma única pessoa! Isso é muito difícil de se fazer em um browser! É um ambiente que você só pode subir e descer, que você tem de abrir abas, e muitas abas abertas são um pé no saco… Não são bons para isso. Se você tenta abrir doze abas do YouTube em um browser, vira uma bagunça. Browsers não são a melhor forma de navegar. Tablets, por outro lado, tornam a navegação mais divertida. Permitem que você explore a rede de uma forma não linear.

Em suas pesquisas sobre o Brasil você deve ter ouvido falar na expressão “orkutização”, que significa se tornar popular, com tom pejorativo. É algo que você teme ou quer para o Tumblr?
Conheço o termo. Um de nossos primeiros investidores é um dos CEOs do Fotolog (John Borthwick), e sempre conversamos sobre o papel do Fotolog e do Orkut na difusão da internet no Brasil. Mas há algo de interessante no fato de o Orkut ter sido uma empresa dentro de outra maior ainda, que era o Google. Foi por isso que ela não ganhou a atenção que deveria, mesmo sendo uma das maiores redes sociais do planeta. Na indústria de tecnologia comenta-se à boca pequena como o Orkut foi negligenciado pelo Google, como o Google esqueceu que tinha o Orkut. Se for verdade, precisamos entender como uma rede tão cheia de gente pode se tornar uma comunidade tão sem inspiração a ponto de ser mal vista.
Não acho que tenha a ver com alguma faixa de renda ou etária. Acredito que a tendência de crescimento, da inclusão de cada vez mais gente, é a regra desse tipo de mercado, por isso você tem de aprender a lidar com as massas e, principalmente, se preparar para isso. Por isso, se falar em “orkutização” parece que nos referimos a uma favela online é porque as pessoas que gerenciavam aquela rede foram descuidadas com a infraestrutura do design. É o tipo de decisão que pode erodir qualquer tipo de comunidade virtual. Nos preocupamos bastante com isso: com a possibilidade de a comunidade Tumblr ser arruinada pela negatividade, pela falta de inspiração, por qualidades genéricas que podem transformar a rede social em um lugar em que não queremos estar.

Sónar e tecnologia

Na edição de segunda do Link também entrevistei Ricard Robles, um dos fundadores do Sónar, sobre o papel de um festival de música em tempos digitais.

Palco, web e público
Fundador do festival de música e tecnologia Sónar, que acontece em São Paulo esta semana, discute impacto da internet no hábito de ouvir e curtir música

Criado há 18 anos na Espanha, o festival Sónar chega pela segunda vez ao Brasil no próximo fim de semana (a primeira edição foi em 2004), quando reúne, na sexta e no sábado, alguns dos principais expoentes da música pop contemporânea no Anhembi.

Diferente da maioria dos festivais, que chamam artistas de apelo popular para atrair um grande público, o Sónar sempre optou por atrações pouco conhecidas ou que estejam em ascensão, se firmando, em quase duas décadas de atuação, como farol para as novas tendências do mercado da música.

Mas como a música vem passando por uma transformação brutal, que envolve desde os processos de criação e distribuição, até a forma como a música é consumida e curtida, qual é o papel de um festival que sempre levantou a bandeira das novas tecnologias? Quem responde é um dos criadores do festival, o espanhol Ricard Robles, que esteve no País há poucas semanas, para acompanhar os preparativos do evento de música.

“Você tem razão quando diz que um evento que se ampara em apresentações ao vivo sofre pouco impacto frente às mudanças que estamos vendo – afinal, a natureza deste tipo de evento é anterior mesmo à era da música gravada”, explica. “Mas as transformações recentes mostram que há uma mudança crucial na forma como as pessoas consomem música. Hoje, graças à onipresença da internet, de computadores e de celulares, ouvir música está se tornando uma atividade cada vez mais solitária, individual. A importância do Sónar reside em proporcionar um momento de comunhão palpável para uma geração que não tem nem mesmo alguma referência física no que diz respeito à música. Não há mais CD, nem capas de discos. A música tornou-se uma experiência”, conclui.

Ele ressalta a importância do painel Sónar Pro, dedicado a palestras e discussões sobre o mercado da música, que sempre existiu no festival, mas que ganhou relevância nos últimos anos. “Começou como uma vitrine, mas hoje se tornou uma parte importante do festival para discutirmos o futuro deste mercado”, comenta.

Mas, com todas as mudanças, o formato palco-público ainda obedece à antiga fórmula, separando o artista da audiência, uma tendência que tem sido demolida na medida em que os meios digitais se popularizam. Será que é possível pensar em um festival que contemple a participação do público?

“Acredito que sim, e isto já vem acontecendo, mas acho que é uma dúvida que vai ser solucionada pelos artistas”, conta, citando o produtor Richie Hawtin como um exemplo prático. “Ele colocou uma pessoa para twittar em seu perfil quais músicas que estava discotecando. Ainda é um rascunho do que acho que vamos assistir no futuro, mas tais experimentações tem de partir dos autores, dos compositores”, conclui o espanhol.

Howard Rheingold: “Multidões inteligentes não são necessariamente multidões sábias”

Entrevistei o Howard Rheingold, autor de livros como The Virtual Community, Smart Mobs e o recém-lançado Net Smart, na edição do Link desta segunda. Ele vem para o Brasil no fim desta semana, dentro da programação do festival Arte.mov, que acontece em Belo Horizonte.

Como o online muda o offline
Teórico pioneiro em cultura hacker e comunidades virtuais, Howard Rheingold vem ao Brasil dez anos depois do lançamento do livro que anteviu os movimentos políticos organizados online no ano passado e fala de sua preocupação com a privacidade na rede

Howard Rheingold escreveu um livro sobre comunidades virtuais quando a internet ainda saía da fase dos BBSs e fóruns frequentados por acadêmicos e entusiastas da nova mídia. The Virtual Community, de 1993, não só funcionou como guia teórico sobre o funcionamento cultural da internet exatamente no momento em que ela começava a se popularizar, como consolidou a importância do escritor como visionário digital.

Na época, ele já tinha passado pelo mítico laboratório PARC da Xerox (berço de grande parte dos itens da computação pessoal que usamos até hoje, como a interface gráfica e o mouse) e havia publicado outros dois livros: Out of the Inner Circle: A Hacker’s Guide to Computer Security (Fora do Círculo Interior: Um Guia sobre Segurança de Computadores para Hackers, em tradução livre) ao lado de Bill Landreth e Tools for Thought: The History and Future of Mind-Expanding Technology (Feramentas para o Pensamento: A História e o Futuro da Tecnologia de Expansão da Mente), ambos publicados em 1985. Nenhum teve edição brasileira, nem os que foram lançados depois.

De lá para cá, estabeleceu-se como cronista do mundo digital e futurista do comportamento online, aura consolidada com suas colunas para o jornal San Francisco Examiner nos anos 90. Em 2002 escreveu seu visionário livro Smart Mobs: The Next Social Revolution (Multidões Inteligentes: A Próxima Revolução Social),que já antevia os movimentos populares e organizados online que ocorreram no ano passado, como a Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street.

Rheingold vem ao Brasil para falar de seu quinto livro, Net Smart: How to Thrive Online (Esperteza de Rede: Como Prosperar Online), lançado no mês passado, durante o festival Arte.mov, que é realizado nesta semana em Belo Horizonte. O Link conversou com ele por e-mail sobre as mudanças políticas e sociais que estão acontecendo graças à nova realidade digital.

Qual sua visão sobre as redes sociais, do ponto de vista de um dos pioneiros das comunidades virtuais?
Na minha opinião, redes sociais como o Facebook são uma espécie de bênção mista. Elas permitem que as pessoas se conectem entre si, embora, em alguns casos, isso não é um benefício positivo, Basta lembrar das pessoas chatas que você deixou para trás quando mudou de casa, escola ou emprego. As rede sociais também tornam muito mais fácil compartilhar informação com pessoas com quem mantemos vínculos sociais. Este aspecto fortalece o tal “capital social” – a capacidade de grupos conseguirem atingir metas coletivas fora de instituições formais como contratos, leis, governos – que depende de “redes de confiança e normas de reciprocidade” de acordo com sociólogos. Contudo, tais serviços não fazem aquilo que era feito em comunidades virtuais que permitiram o crescimento rápido da internet e que tornavam possível conectar pessoas com interesses em comum mas que não se conheciam. O Facebook restringe a comunicação, transforma a privacidade em produto e comercializa toda ação de seus usuários. Ao mesmo tempo, há milhares, talvez milhões, de listas de e-mail, fóruns online, salas de bate-papo, blogs e wikis com área de comentários.

Meu maior medo em relação ao Facebook é que ele tenta fechar a internet aberta. Sir Tim Berners-Lee, criador da World Wide Web, recentemente nos alertou sobre isso em um artigo. Berners-Lee não precisou pedir permissão a ninguém para criar a web e os criadores do Google não tiveram de pedir a ninguém para reprogramar um serviço controlado para transformá-lo em uma companhia multibilionária a partir de um alojamento universitário. A inovação depende da natureza aberta da internet, mas o Facebook está caminhando diariamente para transformá-la em um sistema fechado em que ele dita as regras.

Você acha que estes serviços ameaçam a privacidade? O conceito de privacidade mudou?
Como colunista, sempre alertei sobre as ameaças à privacidade, há 15 anos. Muito pouca gente nos EUA parece se importar. Nós estávamos despreocupados – para não dizer ansiosos – em trocar nossa privacidade pela conveniência e, especialmente depois do 11 de Setembro, pela ilusão de segurança. Os avanços tecnológicos de hoje rastreiam todos os nossos passos online e constroem poderosos portfólios de informação sobre bilhões de pessoas. Câmeras de vídeo nas maiores cidades do mundo podem reconhecer rostos de pessoas específicas. E agora não tememos mais apenas o Estado – nossos vizinhos, ex-cônjuges, estranhos que ficam com raiva da gente no trânsito e anotam nossas placas, todos eles podem descobrir muita coisa sobre qualquer um de nós. Acho que está claro que a privacidade não significa mais o que significava antes das rede sociais. Quando o Facebook acionou seu feed de notícias – permitindo que você veja atualizações instantâneas sobre o que todas as pessoas na sua lista de amigos estão fazendo naquele momento –, as pessoas se sentiram ultrajadas e houve uma espécie de revolta. Seus usuários sabiam que qualquer pessoa poderia ver o que elas haviam postado em seus perfis, mas a simples ideia de que estas informações poderiam ser publicadas em suas redes de forma instantânea aborreceu o senso de privacidade de muitas pessoas que já usavam a rede social. Mas agora o feed de notícias é aceito por todos. Os limites da privacidade vão mudando. Acho que é importante distinguir entre informações que podem ser constrangedoras para outras pessoas e aquelas que podem dar poder a outras pessoas em relação a nós mesmos. É muito tarde para parar essa vigilância tecnológica e as violações de privacidade promovida pelos governos e por iniciativas comerciais. O melhor que podemos fazer é educar as pessoas de forma que elas possam tomar as providências necessárias para proteger suas privacidades. Eis a razão de eu ter escrito o livro Net Smart, que ainda não tem uma edição no Brasil.

Você acha que as comunidades online podem melhorar a vida fora da internet? O mundo digital pode fazer as pessoas se sentirem parte de uma comunidade mesmo quando não estão conectadas à internet?
Sem dúvida. Sou um sobrevivente do câncer e posso garantir que isso funciona. Há pessoas no Brasil e em qualquer país do mundo que têm recebido muitos benefícios desta comunidade – informação necessária, apoio emocional, sensação de pertencimento – de comunidades virtuais.
Uma pesquisa recente feita pelos sociólogos Barry Wellman, Keith Hampton, entre outros revelou que as pessoas que passam mais tempo se comunicando online com seus vizinhos também se envolvem mais com eles fora da internet. Esta questão era usada como jurisprudência por filósofos de escritório e juristas, mas pesquisas científicas recentes revelaram que a participação em comunidades online não é necessariamente alienante e em muitos casos pode trazer benefícios para a vida fora da vida conectada da internet.

Uma vez que todos estão online, a tendência para o futuro é que nos tornemos mais isolados ou gregários?
Sei que as pessoas que realmente criam uma cultura na qual elas participam – seja comentando num blog, organizando uma wiki, participando de uma comunidade virtual ou outras centenas de formas de contribuir com a cultura online –, se veem como cidadãos ativos, comparados a pessoas que se veem apenas como consumidores passivos de uma cultura criada por outros. A incerteza crítica vem do fato de não sabermos a forma como este conteúdo será disseminado. As pessoas saberão que existem formas de participar? Estas habilidades não são ensinadas nas escolas, apesar de muitos ensinarem isso uns aos outros. De outra forma, não teríamos a web! Novamente, este elemento educacional foi um dos motivos pelo qual escrevi meu livro. Eu até criei um currículo para professores de universidade ensinarem essas habilidades.

Como você acha que os levantes populares organizados online durante o ano passado vão evoluir nos próximos anos?
Escrevi um livro sobre este fenômeno há dez anos e notei que a combinação entre telefonia móvel, internet e computador pessoal estava criando uma nova mídia que diminuiu bastante as barreiras para tornar a ação coletiva possível. Mesmo antes dos eventos que você mencionou, as eleições na Coreia e na Espanha mudaram devido ao uso deste tipo de mídia. As pessoas têm como organizar ações com pessoas que nunca tiveram contato. Da mesma forma que a imprensa escrita permitiu que as pessoas criassem democracias nas quais os cidadãos podiam decidir pelo futuro de seus governos, as tecnologias de hoje têm permitido novas formas de organização política. E não apenas política – a Wikipedia, a comunidade do software livre, a resposta voluntária a catástrofes e muitas outras formas de ação coletiva ainda estão apenas surgindo. Multidões inteligentes não são necessariamente multidões sábias, e as pessoas se organizam tanto para construir quanto para destruir coisas. De novo, acredito que a educação – o que as pessoas sabem sobre seus novos poderes – fará a diferença.

Miguel Nicolelis e eu

Conversei com o cientista mais importante do Brasil hoje pra capa da edição do Link dessa segunda:

‘Ninguém associa ciência com soberania nacional’
O neurocientista Miguel Nicolelis fala com exclusividade ao Link sobre a próxima etapa de seu projeto para transformar a criação de um exoesqueleto robótico em um programa de educação e saúde para estimular o desenvolvimento tecnológico e científico do País

“A renúncia a um investimento maciço de formação de um corpo de cientistas e de atuação em diferentes áreas – tecnologia de informação, microengenharia, biomedicina, nanotecnologia, engenharia biomédica… – é uma renúncia à soberania do País.”

Miguel Nicolelis, um dos cientistas mais importantes do Brasil, é enfático sem se exaltar. Mesmo quando fala do Palmeiras – uma de suas paixões, que havia perdido de virada para o arquirrival Corinthians no dia anterior à entrevista, realizada no bairro de Higienópolis há uma semana –, ele mantém a calma e a clareza características de quando expõe suas ideias. Até quando reclama de como seu time achou que o jogo estivesse ganho no intervalo do clássico.

Futebol à parte, a conversa foi sobre outras duas paixões: ciência e educação. E ele conta, com exclusividade ao Link, mais um passo de seu projeto Câmpus do Cérebro – o início de uma parceria entre o Hospital Sabará, de São Paulo. “Com a abertura da Escola do Câmpus do Cérebro, no ano que vem, vamos poder fechar o ciclo completo, unindo o Centro de Saúde Anita Garibaldi à escola”, explica.

Ele se refere ao trabalho que iniciou há seis anos no Rio Grande do Norte, que começa pelo tratamento de mulheres grávidas no Centro de Saúde (e que reduziu a mortalidade materna da região de Natal e Macaíba a zero) para garantir que os futuros alunos de sua escola possam ser acompanhados desde antes do nascimento. “As crianças que nascem lá já são alunas da escola no pré-natal. Depois elas entram no berçário e seguem estudando em período integral até o ensino médio”, diz.

José Luiz Setúbal, presidente da Fundação Hospital Sabará e responsável pela aproximação do hospital a Nicolelis, explica que a parceria começa com a troca de experiências em saúde materna e de recém-nascidos, mas Nicolelis frisa que não deve parar por aí. “Estamos discutindo a possibilidade de evoluirmos a relação para uma parceria clínica.” O que, na prática, significaria que o hospital paulistano é candidato a ser o primeiro lugar em que o projeto dos sonhos de Nicolelis, o Walk Again, possa ser testado em humanos.

Andar de novo. Walk Again é o projeto de criar um exoesqueleto robótico controlado pelo cérebro. O grande sonho de Nicolelis é fazer um tetraplégico dar o pontapé inicial no primeiro jogo da Copa do Mundo no Brasil, em 2014, como disse em entrevista ao Link no ano passado. “Testamos um protótipo nesta semana que são pernas mecânicas. Vestimos um macaco e elas se mexeram, não com o pensamento, mas com um programa de computador”, explica. “O próximo passo é anestesiar a medula espinhal do macaco, para, finalmente, testarmos se a veste consegue fazer movimentos. Faremos isso até o meio do ano. E, mais ou menos no ano que vem, nesta época, já estaremos trabalhando com pacientes em potencial. Mas isso ainda está em fase de discussão.”

Mas o Walk Again não é um fim em si mesmo. Nicolelis o compara ao programa espacial norte-americano, que estabeleceu a meta de levar o homem à Lua, mas que, no processo, alavancou outras tecnologias que surgiram durante a pesquisa. “Há várias aplicações que surgem desta meta, que chamamos de ‘spinoffs’. Até mesmo para entretenimento, como o videogame. Quando os executivos da indústria de games veem um macaquinho imerso num mundo virtual jogando videogame com a mente, eles veem o futuro.”

E antecipa, sem entregar: “Eu não posso contar agora, mas estamos perto de divulgar três novas ideias que ninguém nunca tinha tido – e que não tínhamos a menor ideia que iriam acontecer. As grandes descobertas são acidentes. Na hora em que a gente estava fazendo um experimento com macacos, vimos isso e pensamos ‘não é possível’… Essas novas ideias são tão fora do esquadro que quando a gente publicar as pessoas vão achar que estão num filme de ficção científica.”

Mas Nicolelis quer menos ficção e mais ciência. E reforça a importância do Walk Again em seu projeto científico-educacional. “O Walk Again é a semente de uma nova indústria no Brasil, a da tecnologia de reabilitação. Gostaríamos de usar o Walk Again como projeto-âncora para lançá-la aqui no Brasil com a construção da infraestrutura do parque neurotecnológico do Câmpus do Cérebro”, diz.

O projeto visa criar uma geração de cientistas no Brasil para tratar futuros alunos no pré-natal e ensinar ciência, na prática, numa escola de período integral. “Nossa abordagem de ensino de ciência é prática. As crianças aprendem a lei de Ohm descobrindo como funciona um chuveiro. E contratamos nossos ex-alunos para trabalhar conosco. Na prática, estamos pegando crianças que nunca tiveram contato com ciência, colocando-as em um programa de educação e em cinco anos elas estão trabalhando em um laboratório de ponta. E são crianças que, até os 10 anos, não tiveram oportunidades. Imagina quando pegarmos as crianças que tiveram um pré-natal ótimo…”

Isso tudo é para reverter o quadro científico brasileiro. “Nossa situação é dramática. O déficit de engenheiros que o Brasil tem é gigantesco. E esse é um assunto estratégico. A indústria deste século, sem dúvida, é a do conhecimento e estamos em grande desvantagem. Se não acordarmos agora, não precisamos mais acordar. A janela de oportunidade está se fechando – e rápido.”

Contudo, o neurocientista é otimista. “As coisas estão mudando. Esta nossa conversa seria impossível há dez anos. O governo federal está ouvindo. Presido uma comissão – a Comissão do Futuro – que está preparando um relatório para mostrar todos os indicadores internacionais sobre a verdadeira situação do ensino de ciência e da produção científica brasileira. O relatório deve ficar pronto em junho.”

E conclui: “Meu intuito diz respeito à criação de uma nova geração de brasileiros. Produzindo não apenas cidadãos – muito mais felizes, engajados, competentes – mas também engenheiros, médicos, cientistas, professores… Pessoas que têm outra visão de mundo. E de Brasil.”

Soundcloud além da música

Conversei com o David Haynes, um dos donos do Soundcloud e uma das atrações na Campus Party 2012, para a capa da edição do Link desta semana. E ele me falou que o site, que aos poucos se firma como a principal rede social de música atualmente, aspira ir para muito além do mercado fonográfico, apostando na voz como principal meio de comunicação online dos próximos anos.

A voz do som
O Soundcloud tem mudado a relação das pessoas, artistas e gravadoras na internet e é uma das atrações da Campus Party 2012

“Não acho que somos apenas uma rede social de música”, explica, pelo telefone, Dave Haynes, vice-presidente de negócios do Soundcloud, uma das atrações da Campus Party 2012, que começa na semana que vem.

Haynes pode até desconversar, mas o fato é que, aos poucos, seu site vem se estabelecendo como a principal rede social de música na internet, título que já foi do MySpace, quando este aspirava a ser maior rede social do mundo. Enquanto este último deslizou ao deixar a música em segundo plano – e aos poucos perder a relevância digital –, o Soundcloud restringiu seu foco e dedicou-se apenas ao compartilhamento de arquivos de áudio.

Esta definição rendeu bons frutos. Menos de dois anos depois de ter sido criado em 2009 pelo engenheiro de som Alex Ljung e pelo artista Eric Wahlforss na Suécia, já conseguiu atrair grandes nomes do mercado musical. Hoje o site é baseado em Berlim, na Alemanha. E diferentemente do MySpace, que começou a ganhar fama ao revelar artistas independentes como Lily Allen, Arctic Monkeys e Mallu Magalhães, o Soundcloud teve a facilidade de ser reconhecido mais naturalmente por artistas já estabelecidos. Eles começaram a usar a plataforma para mostrar, em alguns casos na íntegra, lançamentos inteiros em streaming, como foi o caso do Foo Fighters. A banda deixou seus fãs ouvirem todo seu disco mais recente, Wasting Light, na mesma semana em que ele foi para as lojas – digitais ou não. E não são apenas artistas cujos fãs já estão habituados a baixar músicas online, como é o caso do ex-beatle Paul McCartney. Ele encerrou o ano passado apresentando a primeira faixa de seu próximo disco – Kisses on the Bottom, na rede social. O disco será lançado no mês que vem.

E não são apenas artistas que se prontificaram a estabelecer perfis na rede social. Muitas gravadoras – principalmente selos pequenos – já o utilizam como base para lançamento de seus artistas, apresentando canções, discos e até mesmo promoções, como foi o caso da gravadora nova-iorquina DFA Records. Ela abriu no mês passado um concurso de remixes para a música “How Deep is Your Love”, do grupo Rapture. Na outra ponta do espectro, a tradicional gravadora alemã de música erudita Deutsche Grammophon também tem seu perfil no site.

Mas se Haynes não acha que o Soundcloud é uma rede social de música, então o que é este site, que, na semana passada, comemorou a marca de 10 milhões de usuários? “Somos uma plataforma de criadores de áudio”, diz. “É natural que nos associem a artistas, afinal música é muito popular e vários nomes – tanto estabelecidos quanto iniciantes – já ajudaram o público a entender a natureza do site. Mas achamos que música é só uma pequena parte de nosso potencial. Hoje, graças aos celulares, todos carregamos uma câmera no bolso, também temos um microfone à nossa disposição o tempo todo. E é nisso que apostamos.”

O executivo do site lista que as pessoas já usam o Soundcloud para publicar comentários falados, fazer diários em áudio, entrevistas e ler textos em voz alta. “E não são apenas pessoas comuns, mas jornalistas, comediantes, editoras de livros, radialistas, escritores, emissoras de rádio e TV”, continua Haynes.

Não é pouca coisa: nomes como a editora Penguin, a revista Vanity Fair, a emissora de rádio norte-americana ABC, a Sociedade Real pela Literatura inglesa e a BBC também utilizam a plataforma para priorizar mais a voz do que canções. E Haynes concorda quando pergunto se aos poucos vamos ver a voz substituir o texto como principal meio de comunicação na rede.

“Acho que isso é uma tendência que ainda vai se estender por alguns anos. A revolução da telefonia móvel está apenas começando”, diz, citando que só agora estamos vendo a ascensão dos smartphones para as pessoas que até outro dia apenas trocavam SMS e conversavam pelo celular. “Acredito que é uma tendência sem volta”, diz.

Na Campus Party, Haynes vai presidir o Music Hack Day, maratona de programação que o Soundcloud promove, com sucesso, em vários países. A competição reunirá programadores que terão de criar, em cima da API aberta do site, “a nova geração de aplicativos de música”, como gosta de falar.

“A antiga indústria musical – o rádio, as lojas de discos e as gravadoras – sempre impôs a forma como a música deve ser criada, distribuída e consumida. Isso acabou. Vivemos numa era em que todos colaboram com essa indústria, desde os programadores que participam destes Hack Days – que outros sites também fazem – até o ouvinte, além dos artistas e novos players no mercado de música. É um ecossistema em constante formação que não está restrito à definição de alguns poucos executivos com bons contatos.”

Mas ele não crê que o novo cenário deste mercado tenha aberto uma cisão entre duas gerações. “Acredito que a revolução digital a que estamos assistindo hoje é muito mais importante do que aquela que aconteceu há dez anos. Todos já entendemos que a internet chegou para ficar e há uma nova geração de executivos que entende a rede como um leque de novas oportunidades e não mais como uma ameaça. Eles estão dispostos a fazer novas parcerias, a dialogar com músicos, a ouvir o público, a criar novas ferramentas de interação entre os diferentes lados do mercado. Nós somos apenas uma peça neste novo cenário”, conclui.