Tataravós do rap

Bem antes do rap nascer no final dos anos 70, um grupo de ativistas e poetas negros se reuniu no aniversário de Malcolm X três anos depois de seu assassinato para lembrar o líder com um novo movimento. O trio formado por Abiodun Oyewole, Dahveed Nelson e Gylan Kain apresentou um novo tipo de manifestação cultural que consistia em improvisar poemas sobre uma base rítmica, misturando a então recente novidade de recitar poesia sobre música que ficou conhecida como spoken-word e a ancestral roda de percussão que precede a vinda dos africanos que vieram escravizados para o outro lado do Atlântico. Dez anos antes da disco music se despedaçar criando os elementos para gangues nova-iorquinas se reinventarem a partir da música usando apenas toca-discos e microfones, os autodenominados Last Poets começavam a abrir um caminho que facilitou o início da cultura hip hop. E lá estavam dois de seus fundadores no palco do Sesc Pompeia, encerrando as atividades do Festival Zunido. No lugar de Gylan Kain estava Felipe Luciano, que nasceu no ano seguinte à fundação do grupo em 1968 e viaja com eles desde o final do século passado. Devido à idade avançada dos sobreviventes da banda (Abiodun Oyewole tem 75 anos e Dahveed Nelson, 89!), o show começou com uma longa (e tediosa) introdução de Luciano rimando sobre um violão tocado de forma quase vacilante, abrindo o território para a chegada dos tataravós do rap. Depois de Luciano, quem subiu ao palco foi o percussionista Baba Don Babatunde, que lentamente começou a esquentar a noite. Um vídeo curto apresentou a história da banda para o público antes que os poetas originais Abiodun e Dahveed entrassem em cena e conquistassem o público. Não era uma apresentação de rap, mas em pouco tempo os dois anciãos mostraram porque estão neste ponto tão central na genealogia de toda esta cultura, rimando sobre o ritmo dos tambores enquanto puxavam o público para a apresentação, pedindo para que este terminasse algumas rimas, repetisse palavras de ordem e se juntasse aos versos que vinham do palco. Mesmo com a idade avançada e sem um beat mais incisivo, foram lentamente conquistando o público, mostrando que a fama que os precede faz jus. Histórico!

Assista aqui.  

Virtuosismo sem rótulos

Qualquer apresentação de Kid Koala é um convite a perder o rumo. Tocando três vitrolas e um mixer ao mesmo tempo sem usar fones de ouvido, o DJ canadense pertence à escola do turntablism que reinventou o tocadiscos como instrumento na virada do século e como outros da sua estirpe, transcende barreiras entre gêneros musicais, lentamente transformando faixas facilmente reconhecíveis e hits desconhecidos guardados a sete chaves em uma massa amorfa de som que desafia rótulos sonoros. Mas em sua performance única, ele não desmerece estilos e escolas como se fossem meras classificações técnicas, muito pelo contrário: faz questão de passear por diferentes áreas mostrando para o público o universo que está desbravando, não importa se é o ska ou o shoegaze. E assim enfileirou clássicos dos Beastie Boys com aquele remix do Erol Alkan pro Franz Ferdinand, contrapondo Outkast com a islandesa Emiliana Torrini, sempre criando climas exóticos e familiares ao mesmo tempo. O DJ apresentou-se neste domingo no Sesc Pompeia com a canadense Lealani, que alterna entre esmerilhar na MPC e rugir com sua guitarra, tocando hinos punk de sua banda Pezheads (quando Koala assume as baquetas de sua MPC e se torna ele mesmo um baterista). Koala fechou a noite mostrando que seu virtuosismo não é só exibicionismo ao visitar a música favorita de sua mãe, “Moon River”, que deixou tocar com os vocais de Audrey Hepburn para depois ele mesmo tocar a música usando apenas a variação de velocidade de seus tocadiscos. Um mestre.

Assista aqui.  

Festival Zunido: Marcos Valle com Azymuth, Last Poets e Kid Koala e muito mais

2023 empilhando festival atrás de festival – então toma mais um pra incluir na sua agenda. O Festival Zunido acontece este mês no Sesc Pompeia e reúne o trio Azymuth com o mestre Marcos Valle, traz o DJ Kid Koala mais uma vez ao Brasil e nos presenteia com a primeira vinda dos Last Poets, um dos grupos pioneiros na história do rap, ao país. “O mais importante é a questão dos encontros e das sonoridades que se juntam nessas delicadezas e dissonâncias”, explica Talita Miranda, que assina a curadoria do festival ao lado de Rodrigo Brandão e da curadoria de música do Sesc Pompeia, “são transformações e releituras a partir de uma base da música negra, da diáspora africana, o quanto a gente busca essa transformações e essa mistura, então vai ter sempre o hip hop, jazz, afrojazz, o afrossamba e, claro, dar uma ênfase específica para a música brasileira.”