Zé Nigro: Silêncio
(Foto: Indira Dominici/Divulgação)
Quando convidei Zé Nigro para fazer uma temporada no Centro da Terra há dois anos, sabia que daquele mato sairia algo. Conheço-o desde os tempos em que ainda estávamos no Unicamp (embora ele não lembre) e acompanhei sua ascensão como músico e produtor nos últimos vinte anos, sempre o vendo testar limites e explorar novas fronteiras com figuras que respeito e admiro no mundo da música – de Anelis Assumpção a Metá Metá, passando por João Donato, Elza Soares, Curumin, Glue Trip, Antonio Carlos e Jocafi e Francisco El Hombre, entre outros). Ele lançou seu primeiro disco solo durante a pandemia e nunca havia feito um show só com seu nome, mas tinha certeza que era só dar a oportunidade que ele abraçaria. Dito e feito. E no ano passado ele me chamou para ouvir o disco que havia finalizado após a experiência que teve em suas segundas-feiras no teatro e levando seu primeiro disco para outros palcos e me convidou para escrever o release do disco. Silêncio, que chega nesta quinta-feira às plataformas de streaming e tem releituras de diferentes faixas do primeiro disco por artistas tão distantes quanto Russo Passapusso, Souto MC, Saulo Duarte e Arthur Verocai, é, ao mesmo tempo, uma continuação e um complemento ao disco que lançou em 2021, Apocalip Se. Segue abaixo o texto que escrevi pra ele sobre o disco:
O piano faz as primeiras notas que ouvimos, mas ela logo são superpostas por camadas de cordas sinuosas e plácidas que criam um clima completamente novo para uma melodia já conhecida. As teclas estão nos holofotes, mas o cenário musical é épico e solar e conduzido por violinos, violas e cellos. Estamos no início do segundo álbum do produtor, compositor e músico Zé Nigro, mas de alguma forma ainda estamos no primeiro. Silêncio abre com a mesma “Gorjeios”, parceria com a poeta Eveline Sin que, em seu disco de estreia, aparecia lá pelo começo do lado B. Desta vez, contudo, ela vem em trajes de gala, pisando firme e abre o novo trabalho. Se seu compositor segue presente às teclas que guiam sua melodia principal, a grife do novo alfaiate vem inclusive no título da nova versão. As deslumbrantes cordas que abrem tanto a nova versão da faixa quanto este segundo disco têm nome e sobrenome e consagra a parceria do produtor paulistano com o mago dos arranjos Arthur Verocai.
É só um dos muitos momentos em que este Silêncio superpõe-se sobre o primeiro disco de Nigro, Apocalip Se, lançado em 2021. Encurralado pelo momento pandêmico como todos os músicos neste começo trágico de década, o músico, arranjador e produtor viu-se sem poder tocar ao vivo ou colaborar com outros artistas e, como muitos, mergulhou em si mesmo. Conhecido por trabalhar com artistas como Anelis Assumpção, Curumin, Russo Passapusso, Saulo Duarte e Francisco El Hombre, Zé abriu a gaveta de suas composições e parcerias antigas que havia começado a produzir antes de 2020 para começar a compor seu primeiro trabalho autoral.
Só que Apocalip Se, como o próprio título entrega, foi escrito à luz – ou melhor, à sombra – da calamidade que atravessamos o que acabou deixando o trabalho mais acelerado, cheio e comprimido, como se compensasse a ausência humana com o volume de novas frequências. À medida em que começou a tocar o disco ao vivo – tanto em shows solo quanto numa temporada experimental no teatro do Centro da Terra, em São Paulo, no início de 2022 – o músico foi entendendo que o disco propunha mais do que uma continuação, uma espécie de versão estendida de alguns temas do primeiro disco, que surgiram com nova roupagem.
E não era apenas uma ou outra canção. Aos poucos, um conjunto de faixas do disco de 2021 começou a se impor em uma nova velocidade, intensidade e amplitude entre 2022 e 2023, ao mesmo tempo em que abriam espaço para novas versões. Além de “Gorjeios”, que abre o disco com o piano do velho camarada de Nigro Dustan Gallas, que também é A&R de Silêncio, outras músicas do primeiro disco são revistas neste outro momento, como a colaboração com outra poeta, Anna Zeppa, “Calor”, que ganha uma tensão específica com a entrada de uma nova vocalista, Fernanda Broggi. Mais adiante, “Andarilho das Galáxias” troca de gênero ao tornar-se “Andarilha das Galáxias” com a entrada da vocalista de origem indigena Souto MC, que reescreve a letra original em suas rimas, e “Jararaca Snake”, que no disco original contava com os vocais de Céu, e agora vem com vocal robótico em versão remix, coproduzida por outro chapa do autor, o baterista e produtor Samuel Fraga.
Outras faixas são novas mas fazem parte do universo musical do disco de 2021, como a versão para “Reaction”, de Bob Marley, a delicada “Nem Um Pio”, que Russo Passapusso fez com Luedji Luna e trouxe para o novo álbum em versão solo, rebatizada de “Nem Um Pio (vs. Silêncio)”, e a irresistível “Trincheira”, parceria com o compadre Saulo Duarte. O disco é completo com duas vinhetas, “Caossonância” (que sampleia um disco de 1981 do percussionista visionário Fernando Falcão chamado Memória das Águas), desabrochar horizontal lúdico entre synths e cordas que funciona como uma introdução para a nova “Andarilha das Galáxias” e a faixa-título “Silêncio”, que encerra o trabalho, funcionando como um contraponto perfeito à “Gorjeios” com o maestro Verocai que abre o disco.
Silêncio não é um simples disco-irmão de seu disco antecessor. Em muitas formas, os dois trabalhos são o mesmo, embora bivitelinos, cada um produto de uma carne sonora, um material humano diferente. Se o primeiro contava com uma pressão e uma urgência que pairava naqueles dias de trevas, este novo álbum traz luz, tempo e leveza que o primeiro trabalho não conseguia respirar. Mas não é como se um anulasse o outro. Os dois discos se completam como o que são: o nascer de uma nova carreira artística, que vai além das colaborações, coproduções e da divisão de palco. Aqui é onde Zé Nigro mostra a que veio.
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