Foi muito didático assistir mais um show de Roberto Carlos bem no dia em que Zé Celso Martinez Corrêa foi velado em seu teatro Oficina. A celebração que atravessou de quinta pra sexta era exatamente o que o dramaturgo havia proposto em sua vida e obra – uma festa sobre a vida, com o caixão de seu corpo presente. Já na zona sul de São Paulo, no antigo Credicard Hall que agora chama-se Vibra São Paulo, Roberto Carlos encarava seu público num espetáculo que, à distância, parecia o oposto completo do sarau mágico que foi o velório de Zé Celso. Mas mesmo com o ar fúnebre que parece tomar conta dos shows de Roberto – e sua presença quase sobrenatural, aos 82 anos querendo parecer que tem pouco mais de 60, cabelo e terno impecáveis, sem um fio de cabelo branco -, há um elemento dionisíaco e moderno nessa celebração.
A Jovem Guarda esteve no mesmo terreno do pop global que o tropicalismo desbravou nos anos 60 e a guitarra elétrica que caracterizava aquele movimento sempre foi símbolo de contracultura, até antes da infame passeata que fizeram no país contra o instrumento. A persona soul e romântica que Roberto assumiu no fim daquele período, moldando essa abordagem pessoal no misto de amante latino e voz de sua geração que encarna até hoje para milhões de brasileiros, é uma versão branda e careta do desbunde de Zé Celso, pois mira no outro extremo do público. Por mais que tenha atravessado a ditadura militar sem problemas com seus generais (era a voz da Globo, afinal), Roberto Carlos sempre trabalhou no terreno da paixão, da entrega e até da luxúria, independentemente que seu público sejam aqueles que se excitam em silêncio e só gemem sem querer, quando atravessados por essa energia. E mesmo que seja bem provável que grande parte de sua audiência talvez tenha votado e ainda saúde o presidente de merda que tivemos nesses últimos anos, o que o capixaba ativa em suas cabeças não é ordem, hierarquia e pátria, justamente o contrário.
Embora seu show seja engessado e idêntico sempre, esses adjetivos não estão em suas canções, talvez mais na forma como ele as interpreta, décadas a fio. Ele abre o show com uma sequência que prega empatia, utopia e subversão (“Como Vai Você?”, “Além do Horizonte” e “Ilegal, Imoral ou Engorda”), valores que vão de encontro a essa lógica militar que pode fazer sentido na cabeça de seu público, e encerra com uma beatlemania comedida da melhor idade disfarçada de delírio gospel, quando entrega rosas por quinze minutos para as fãs que se aglomeram na beira do palco no final de “Jesus Cristo”. O repertório equilibra músicas cafonas (“Lady Laura”, “Esse Cara Sou Eu” e “Nossa Senhora”) com clássicos do cancioneiro nacional (“Detalhes”, “Outra Vez”, “Como É Grande o Meu Amor Por Você”, “Emoções” e “Sua Estupidez”, emendada com a infame campeã dos karaokês “Evidências”) e Roberto segue fazendo exatamente o que se espera dele. Senti falta da homenagem a Erasmo (ele canta “Amigo”, mas não teceu maiores comentários, talvez a perda do irmão ainda o emocione), mas não tinha esperança que o repertório fosse fugir do padrão de sempre, mas a sensação é que Roberto continua sendo rei, embora tal título não faça o menor sentido no século 21 – a não ser para seus súditos. E ainda que soe como um crooner robótico, ainda há paixão.
Com 80 anos completos, Paulinho da Viola segue com a mesma calma impecável e o mesmo ar de tranquilidade que sempre carregou por toda sua vida. O carisma recolhido passa uma impressão de timidez, mas é só uma forma de ficar à vontade ao mesmo tempo de dominar o público de forma quase passiva – e quando menos esperamos estamos envoltos por suas histórias e canções, que se misturam com a própria história do samba. Em sua apresentação neste sábado no Vibra São Paulo (o antigo Credicard Hall), ele aproveitou esse momento para contar seus causos e lembrar parcerias, citando compadres e mestres como Monarco, Cartola (cantou “Acontece” acompanhado apenas do piano de Adriano Souza), Zé Kéti, Elton Medeiros e Lupicínio Rodrigues ao mesmo tempo que mistura suas canções com as destas entidades. E longe de ser só uma celebração nostálgica, ele visitou clássicos de diferentes fases de sua carreira, dos hinos que o tornaram célebre (“Samba Original”, “Coisas do Mundo Minha Nega”, “Sinal Fechado”, “Dança da Solidão”, “Pecado Capital”, “Coração Leviano”, “Argumento”, “Timoneiro”, “Prisma Luminoso” e “Foi Um Rio Que Passou em Minha Vida”) a clássicos mais recentes (como “Eu Canto Samba” e “Bebadosamba”) e até um samba inédito, ainda sem título, que usou para abrir a apresentação, tocando, sozinho no palco, apenas uma caixinha de fósforo. Gigante.