Um Corpo Expandido pelo violão

, por Alexandre Matias

No cair do ano, descobri que o trabalho que a baiana Paula Holanda Cavalcante mostrava ao violão em sua conta no Instagram se materializaria num EP lançado quase no fim do ano, quando ela o lançaria com o nome de Corpo Expandido. Canções melancólicas e solitárias que faziam o ar desértico do interior ganhar ares introspectivos longe dos clichês da música do sertão, ecoando brasileiros como Dorival Caymmi, Baden Powell e Kiko Dinucci e gringos como John Fahey, Nick Drake e o lado folk de Jimmy Page, misturando o clima de isolamento destes dias de pandemia com a esperança quase palpável que a espera de um novo ano carrega. Conversei com ela sobre o disco e ela antecipou as quatro faixas de seu Entre Ruínas e Devaneios, que chega às plataformas digitais no antepenúltimo dia do ano, em primeira mão aqui para o Trabalho Sujo, ouça abaixo.

Paula, que mora em Feira de Santana, começou explorando seu lado artístico como fotógrafa, em 2015, mas como basicamente fotografava pessoas – retratos, shows, protestos, peças de teatro e a rua -, perdeu seu principal objeto com o início da pandemia, no começo de 2020.

Mas foi o isolamento pandêmico que a fez expandir sua consciência – e seu corpo – para além da foto. “Entre setembro e outubro de 2020, acompanhei remotamente um festival de fotografia experimental da Colômbia, chamado Cali Foto Fest”, ela me explica por email, lembrando de duas oficinas que lhe mudaram o rumo. “Uma delas foi uma oficina de criação de trilhas sonoras para fotografias. A ideia era compor com instrumentos musicais, ou objetos da casa, narrativas sonoras que contextualizassem uma fotografia que você escolheu. Isso foi um grande insight, e eu diria que foi exatamente a partir daí que eu comecei a compor. Passei a compor trilhas sonoras para minhas próprias fotografias, e para fotografias de artistas que eu admirava, com o violão, em uma frequência praticamente diária. Eu tenho violão em casa desde adolescente, mas foi na quarentena que passei a levar a composição musical a sério, e comecei a estudar profundamente como a música funciona como uma narrativa.”

“A segunda oficina se chamava Corpo Expandido e a ideia era entender a câmera fotográfica e o território como extensões do seu corpo”, ela continua. “Eu sempre entendi minha câmera como uma extensão do meu olhar, e das coisas que eu pensava e sentia. O violão passou a ser também uma extensão, e ele agora comunica o que eu me sentia incapaz de comunicar sozinha. A incerteza, o luto, a sensação de impotência, são coisas muito difíceis de se comunicar.” Além dos artistas que já mencionei, ela também cita outros como Black Sabbath, Sun Ra, Egberto Gismonti e Secos & Molhados, movimentos da natureza e referências eruditas, como os escritos sobre silêncio de John Cage e o Gráfico para Fixar a Melodia das Montanhas de Villa-Lobos, em que o maestro modernista brasileiro propunha composições a partir de fotografias.

“É um EP sobre contrastes, principalmente o contraste entre a realidade e o sonho”, explica a musicista, que ainda não tem previsão de lançamento do trabalho em shows. “A realidade é dura e está arruinada, mas ainda é possível sonhar, e transformar o real a partir do devaneio. A bell hooks fez a seguinte citação no livro O Feminismo é para Todo Mundo”: ‘Para sermos verdadeiramente visionários, devemos fundamentar nossa imaginação em nossa realidade concreta, enquanto simultaneamente imaginamos possibilidades para além dessa realidade’. E é justamente essa imaginação que nos permite sobreviver em um sistema que está constantemente tentando nos matar.” Pois sonhemos.

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