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ceu-baiana

Mais uma coluna da Caros Amigos, esta publicada em fevereiro deste ano.

Esperança para 2017
Como a produção musical de 2016 consolida um movimento cultural que cresce desde o início do século e pode aproximar as duas metades de um país dividido

2016 foi um ano pesado sob quase todos os aspectos e 2017 não parece que vai dar trégua. Para começar, o novo ano é quando as tragédias que ocorreram no ano passado começam a valer – de Trump ao governo do ex-vice golpista, de Dória a Crivella. As crises política e econômica que assolam o planeta parecem ter se transformado em regra e que não há espaço nem motivação para resistir.

Mas, como canta um dos mortos de 2016, “há uma brecha em tudo e é por ali que entra a luz”. E enquanto via a democracia ruir, o Brasil e o resto do mundo engatar a ré rumo aos anos 80, à Velha República, à Idade Média, também pude ver de perto diferentes facetas de um movimento que está cada vez mais engatilhado e que cresce apesar da crise porque não é pensado apenas como um mercado, apesar desta ser uma de suas motivações.

A criação de um movimento musical autoral brasileiro já não é mais uma vontade – é um fato. Se compararmos então à crise criativa que vivemos na virada do século, quando a internet fechou algumas portas para abrir milhares de outras, a situação atual é o paraíso. A maioria das pessoas que trabalha com música – no palco e nos bastidores – vivem cada vez mais disso, sem ter que se equilibrar entre outros bicos e empregos.

Há uma lenta transição que também mostra a criação de um novo mercado que pode se tornar autossustentável em alguns anos, quando a internet é usada mais para divulgação da obra de um artista e eventos com a presença deles irão pagar suas contas. O mercado também amadurece à medida em que você tem várias máquinas de entretenimento trabalhando de costas para a mídia tradicional e fazendo as gravadoras multinacionais correr atrás do novo sucesso, que depende de cenas e artistas que já formaram seu público.

Por mais que você possa desgostar do sucesso do forró universitário, do novo sertanejo, do funk paulista e do hip hop, é inegável que seu sucesso é fruto de seu próprio trabalho – e não da única máquina que antes alimentava rádios e lojas de discos. Se você nunca ouviu “10%” de Maiara e Maraisa, “Malandramente” do produtor Dennis com Nandinho e Nego Bam ou “Bumbum Granada” dos MCs Zaac e Jerry – três dos maiores hits de 2016 no Brasil – não é sinal que você é desinformado ou que vive numa bolha, mas que o que antes era a principal corrente do mercado não é uma tsunami única como era até o final do século, mas várias ondas diferentes – algumas gigantescas, mas nunca reunidas em uma só, que, inevitavelmente, dominavam o espectro musical coletivo. Lembre da onipresença do axé, do sertanejo e do pagode nos anos 90 (e como você, mesmo sem gostar ou conhecer, sabe de letras inteiras deste período) e compare com o que acontece no mainstream atual. E se você ainda perceber que estes artistas movem-se por conta própria, sem o auxílio de uma máquina de mídia que elegia os ungidos, dá para ver o quanto a música brasileira mudou nestes últimos quinze anos.

E mudou também para aqueles que exploram outras fronteiras da música brasileira. O ano viu a consolidação de um movimento novo na música brasileira deste século, cujo ápice aconteceu no ano passado – a volta do inquietação. Dois discos sintetizam estas duas frentes diferentes de um mesmo movimento em 2016. O Tropix de Céu, melhor disco da carreira da cantora paulistana, aponta transformações políticas e estéticas sob uma camada de despretensão pop. E o impressionante Duas Cidades, do grupo baiano BaianaSystem, bota o dedo na ferida do apartheid brasileiro, fundindo pontos de vistas e gêneros musicais modernos e ancestrais, urbanos e rurais.

Os dois discos fundem-se a um cenário desenhado no ano anterior por discos como Transmutação, Dancê, Fortaleza, De Baile Solto, Selvática, Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de Casa, Frou Frou, Mulher do Fim do Mundo, Rá!, Violar, Manual, Pedaço Duma Asa e Terceira Terra, que este ano ganhou aliados como MM3 do Metá Metá, os discos póstumos de Sabotage e Serena Assumpção, o Brutown dos The Baggios, o Melhor do Que Parece d’O Terno, o Golpe de Vista de Douglas Germano, o Arco e Flecha de Iara Rennó, o Monstro do DeFalla, o Ivete de Wado e o primeiro disco de Mahmundi, além de obras novíssimas de veteranos como João Donato, Letieres Leite, Odair José e Arthur Verocai. Isso sem contar a grande revolução estética transgênero, em que artistas como Liniker e os Caramellows, As Bahia e a Cozinha Mineira, Jaloo e Rico Dalasam desafiam classificações sexuais para expandir o horizonte cultural do país, modernizando-o na marra.

Há, contudo, um enorme abismo entre estes dois Brasis: um verdadeiramente popular, outro verdadeiramente desafiador. Dois levantes populares distintos, que se dividem esteticamente e retratam um país também separado pela política. Mas enquanto o cisma ideológico parece cada vez mais profundo e doloroso, a separação cultural parece mais fácil de se resolver. Artistas das duas vertentes já começam a flertar uns com os outros e nomes como Tiê, Karol Conká, Emicida, Tropkillaz, Kondzilla, Tiago Iorc, Anitta, Marcelo Jeneci e Mano Brown já lançaram os primeiros sinais de aproximação entre metades brasileiras que não se conversavam – e pode ser que estes primeiros flertes comecem a render frutos à medida em que a situação política do país vai por água abaixo. Esta talvez seja a boa notícia deste 2017 que já começa em transe e em crise – e o inimigo comum possa nos restituir a glória de ser uma só nação.

BR-135

Atualizando mais uma rodada de republicações das minhas colunas na Caros Amigos, resgato a coluna que escrevi para a edição de janeiro deste ano, sobre o festival maranhense BR-135, que aconteceu no final do ano passado. Antes do texto, os vídeos que fiz durante a passagem por lá:

Reerguer o Maranhão
Há cinco anos, o Festival BR-135 ocupa o centro histórico de São Luís e ajuda a cultura independente local a ganhar voz

O centro histórico de São Luís, uma das cidades mais antigas do Brasil, padece. O lugar é o centro nervoso da capital maranhense e ali ficam algumas das principais instituições da cidade – a prefeitura, a junta comercial, a capitania dos portos, o centro de criatividade, o mercado, o teatro João do Vale, a igreja matriz. Construções coloniais seculares, erguidas entre ruas de calçamento numa cidade fundada por franceses no século 17, completamente abandonadas pelo poder público e político, convertida em uma região em que poucos se arriscam após a noite, devido à falta de segurança que caracteriza os centros de dezenas de cidades de grande porte no Brasil.

Mas durante alguns dias de novembro, este mesmo centro foi tomado por populares de todas as idades, classes, etnias e gêneros. Uma autêntica mistura humana espalhava-se pelas pequenas ruas de um bairro outrora abandonado sem o menor tumulto, sem o menor alarde. Por trás daquela motivação erguia-se um festival de música que, por três dias, trouxe artistas veteranos e novatos, locais e de outras cidades, para dois pequenos palcos colocados em dois pontos estratégicos daquele centro, além de promover rodadas de negócios entre agentes, empresários e bandas, debates e palestras, exibição de documentários, discotecagens e apresentações de costumes tradicionais da cultura local. Uma transformação brusca e feliz, espalhando boas vibrações para esquinas da capital maranhense que normalmente se evita.

E tudo isso começou por conta da vontade de um casal. “Nós começamos na raça, na camaradagem e vontade coletiva de fazer algo”, explica Luciana Simões, metade da dupla Criolina, responsável pela criação e produção do festival BR-135. “Cobrávamos um ingresso de R$ 10 no Circo da Cidade para pagar um bom som e organizávamos cada edição conforme a adesão dos artistas. O bacana dessa época é que reuníamos a velha guarda e os jovens artistas, brechó, poesia, cultura popular. Era um palco para quem tinha trabalho pra mostrar.”

Nesta fase, o BR-135 era um projeto local e mensal – tinha foco no futuro, mas Luciana e seu parceiro Alê Muniz sabiam que era preciso começar no trabalho de base. E ela continua, praticamente ditando um manual de como sondar uma cena e criar algo com corpo. “Ali era também um laboratório para melhorar. Iniciamos sabendo que reunir a cena era o mais urgente, então fizemos dois anos sem convidados de fora, apenas identificando a cena local, fortalecendo e tentando conectar as bandas novas aos mestres da cultura popular. Nesses dois anos homenageando compositores antigos, resgatando com shows temáticos álbuns antigos que fazem parte da nossa formação musical como o Bandeira de Aço, disco de Papete, lançado em julho de 1978, pela Discos Marcus Pereira, e show em homenagem a João do Vale interpretado pela nova cena local.”

Mas há três anos, o festival deu um salto e deixou de ser uma atração mensal para tornar-se um grande evento anual. “No terceiro ano percebemos que já conseguíamos reunir a cena e contribuir para que nossa música entrasse no mapa. Convidamos as pessoas de outros estados para conhecer o que estava acontecendo aqui, oferecendo um ambiente de encontro, de troca de ideias, de discussões e espaço para shows”, continua. “Em 2014, abrimos com show de Céu, pela primeira vez em São Luís, no Teatro Arthur Azevedo, e nos dias seguintes ocupamos duas praças do centro histórico reunindo maranhenses e artistas convidados de outros cantos do país: os paraenses Felipe Cordeiro e Dona Onete, a banda pernambucana Mombojó, além de 14 grupos selecionadas entre 273 inscritas. Paralelamente começamos o Conecta Música, com palestras, workshops, oficinas e rodada de negócios. Chamamos Roger de Renor, do Ocupe Estelita, o músico Marcelo Yuka e Maurício Bussab, da Tratore, além de André Martinez, da Aprax e Marcelo Arêde, do conexão Vivo. Nos anos seguintes: Arnaldo Antunes,Orquestra brasileira de Música Jamaicana, Siba e Curumim. No Conecta Música recebe os jornalistas Patrícia Palumbo, Otávio Rodrigues e Roberta Martinelli, os produtores musicais Melina Hickson, Otávio Argento, Paulo André, Marcelo Damaso e Anderson Foca”.

Fui convidado para participar de uma das mesas da edição deste ano – e para conferir a visível transformação que o casal está impondo à própria cidade. Criada em 2006, a dupla Criolina nasceu em São Paulo, quando os dois maranhenses Luciana Simões e Alê Muniz começaram a compor juntos para “fazer um som que desinfetasse os ouvidos da musica maçante e corriqueira da velha MPB e MPM – a música popular maranhense”, explica Luciana. A dupla lançou seu primeiro disco em 2006, talvez o ano mais complicado para quem trabalha com música desde a explosão do download livre na virada do sécul. “A Criolina nasceu na época da quebra das gravadoras e da mudança do formato de CD pra MP3, pirataria, etc. Aí veio a angústia de querer saber como a banda iria entrar em contato com o público, uma banda independente, sem contrato com gravadora, sem lenço, sem documento. Não havia estrutura pra circular, levar a gente de um lugar para outro. Aí pensamos numa saída que se mostrasse viável: formar bandas com músicos das cidades por onde a gente desejava passar, incorporando a cultura desses locais e conhecendo o país de uma forma mais profunda.”

A transformação começou lentamente e localmente, primeiro com os shows mensais e depois com o festival anual. A edição de 2016 reuniu nomes de peso tanto da velha guarda, quanto da música contemporânea e do novíssimo pop brasileiro, além de várias bandas locais. Assim, pude ver shows do veterano Di Melo, do duo Strobo, da poderosa Nação Zumbi (tocando seu clássico Afrociberdelia na íntegra), dos chapados Du Souto, a dupla de DJs Venga Venga, a cantora Lei Di Dai e da sensação Liniker e os Caramellows, que fechou o festival levando o público ao delírio. Entre as atrações de fora, locais como Nubia, Nathalia Ferro, Beto Ehongue, O Vórtice, Royal Dogs e números tradicionais como o Boi de Santa Fé, o Tambor de Crioula de Mestre Felipe, a Orquestra de Berimbaus Mandigueiros do Amanhã e o High Vibes Sound System, comandado por Tarcisio Selektor, misturavam-se a um mercado de produtos independentes, barracas de comida local, artistas de rua, performances e DJs. Tudo sob um calor firme de trinta e quase quarenta graus e um clima de paz e tranquilidade, entre pessoas de todas idades, classes sociais e orientações sexuais. “Nos surpreendemos com o público que sempre entendeu e abraçou a proposta do festival e que só cresce a cada ano”, comemora Luciana, contando quase 50 mil pessoas nos três dias de festival. “Percebemos que as pessoas estão sedentas por ver seus artistas preferidos, de perfil independente, que nunca vieram aqui e que dificilmente viriam” – e, principalmente, no centro esquecido da capital. “Escolhemos ocupar o centro histórico por ser a alma da cidade, um território cultural querido e à margem. Era uma forma de conectar as pessoas à esse espaço através da música, da arte”, conclui a produtora e artista, fazendo planos para 2017. “Ano que vem queremos ampliar a ocupação do centro histórico de São Luís e aumentar a programação, crescendo sem perder a identidade de promover diálogos, trazer a cena do Brasil e apresentar a nossa, sempre com uma festa de som, amor e paz, mantendo o diferencial de convidar artistas nacionais importantes e valorizar a cena local contemporânea que tem uma identidade rica e diversa, destacando o reggae e a cultura popular, principalmente bumba meu boi e tambor de crioula.”

“Temos muita admiração pela luta dessas cidades que conseguiram essa sinergia, como Recife, Salvador e Belém”, explica. “Por isso nos preocupamos em estimular diálogos com produtores, gestores e jornalistas desses lugares. Temos consciência de que ainda não chegamos no nível deles. Mas São Luís pela força da sua cultura popular e a vocação cultural pode num período curto ser tão conhecido quanto essas cidades. Nós temos uma voz própria e ela há de ser ouvida num tempo muito mais curto do que muita gente imagina. O Festival BR135 briga por isso e acreditamos e estimulamos em nossas falas que qualquer artista pode e deve assumir um papel de protagonismo, como vem acontecendo com outros artistas e seus projetos , outros projetos devem acontecer para fortalecer e validar a cena.”

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Mais uma coluna minha na revista Caros Amigos resgatada pra cá – esta da edição de dezembro do ano passado, sobre a importância do Sabotage.

Fim do capítulo
Com o disco póstumo de Sabotage, encerra-se a fase de amadurecimento do rap nacional

O rap brasileiro sempre nos fez esperar pelos novos discos. A espera por Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais MCs, era palpável – todos sabiam da importância do grupo para o gênero e ansiavam pela novidade que certamente elevaria o patamar de qualidade da cena local. Os quatro anos entre Raio X do Brasil e o disco de 1997 só não foram mais tensos que os cinco que o sucederam, antes do lançamento do épico ostentação Nada Como Um Dia Após o Outro Dia.

A lenta espera também marcou o lançamento dos discos do RZO na virada do século, o segundo disco solo de Marcelo D2, o segundo do Z’África Brasil, o primeiro do coletivo Quinto Andar, o segundo disco do coletivo Instituto, os discos de estreia de BNegão e Black Alien e, claro, os doze anos que separam Nada Como Um Dia… de Cores e Valores, lançado em 2014, pelos Racionais MCs. Mas nenhuma espera foi tão aguardada quanto a do segundo disco do rapper Sabotage – e a razão é evidente.

Porque Mauro Mateus dos Santos, uma das raras unanimidades no rap brasileiro e assumidamente agente fundamental para tirar a cena hip hop nacional da adolescência, foi assassinado no dia 24 de janeiro de 2003, três meses antes de completar trinta anos e bem no início da gravação de seu segundo disco. O primeiro, Rap é Compromisso, lançado três anos antes, havia chocado o consenso do gênero ao levar o estilo musical para além do território gangsta, pavimentado durante os anos 1990 ao som de tiros e sirenes de polícia. Sabotage flertava com o samba, com o soul, com o funk e seu impressionante fl ow de palavras conquistava até os neófi tos. Sem contar sua presença: um poço de carisma que hipnotizava rodinhas de improviso, plateias de milhares ou qualquer um com quem parasse para conversar olhando no olho.

Logo após Rap é Compromisso, que vendeu quase 2 milhões de cópias pela gravadora dos Racionais MCs, Cosa Nostra, Sabotage passou a explorar novos rumos. Flertou com a moda, a publicidade e o cinema, quebrando uma série de tabus em relação à presença do hip hop. Se os Racionais haviam erguido um muro contra tudo que eles entendiam como uma continuação velada da escravidão, Sabotage pulava este muro sagazmente para mostrar que era preciso ganhar aqueles que eram considerados inimigos.

O cinema proporcionou seu momento-chave, quando entrou para o filme O Invasor, adaptação de Beto Brandt para o cinema do livro de Marçal Aquino, quase como penetra. Foi chamado para participar da trilha sonora depois que o diretor o viu em um clipe de seus padrinhos do RZO e não conseguiu disfarçar o riso quando viu o ator e músico Paulo Miklos interpretando alguém da periferia. Começou a dar dicas para o diretor e para o ator e logo foi efetivado na equipe como consultor para o filme. Foi a deixa para que ele participasse do filme fazendo o papel dele mesmo. A elogiada participação no filme de 2002 o garantiu um convite para trabalhar na adaptação que Hector Babenco fez do livro de Drauzio Varella, Carandiru, que estreou no ano em que o rapper morreu.

Foi nos bastidores do primeiro filme que Sabota, como era mais conhecido pelos amigos, consolidou o laço com os produtores Daniel “Ganjaman” Takara, Rica Amabis e Tejo Damasceno, que haviam começado a lançar-se como Instituto. Ao perceber o potencial que os produtores tinham para reunir pessoas e músicos interessantes, o rapper instigou os três para irem ao palco e assim reuniram-se para poucas apresentações ao vivo – algumas históricas, como no Sesc Santo André ou no Sesc Pompeia. Era o início do ciclo ao vivo de um dos polos de produção mais intensos do Brasil na primeira década do século – que aos poucos foi se separando amigavelmente à medida em que Ganjaman começou a se envolver com a carreira de Criolo – e uma forma de Sabotage explorar novos limites e horizontes musicais.

Essa evolução foi interrompida com a morte estúpida do rapper, que tomou quatro tiros dados por alguém ainda anônimo, que deixou uma máscara preta ao lado de seu corpo, no bairro da Saúde, em São Paulo. A notícia pegou toda a cena hip hop de surpresa e, em choque, ela perdeu o rumo conduzido pelo agora mártir. Anos se passaram para retomar o rumo, que contaram com o surgimento de outros rappers e coletivos inspirados no trabalho de Sabotage com o Instituto. Nomes como Quinto Andar, Emicida, Rappin’ Hood, Kamau, Rael, Parteum, Marcelo D2 e os próprios Racionais começaram a moldar um novo rap para o século 21, claramente inspirados pelos horizontes abertos por Sabotage.

Enquanto isso havia a espera de um disco que vinha sendo feito há mais de dez anos, usando os vocais que o rapper havia gravado pouco antes de morrer e reunindo os principais nomes da cena e amigos de Sabotage .O disco, que finalmente foi lançado este semestre com apenas o nome do rapper, levou treze anos para sair, mas reúne a nata de uma cena cada vez mais madura e coesa. Conduzido pelos três integrantes originais do Instituto (que, com a saída de Ganja, finalmente lançaram o seu próprio segundo disco no ano passado, Violar), o novo disco conta com onze faixas que juntam nomes tão importantes quanto Negra Li, Lakers, Mr. Bomba, BNegão, Céu, DJ Cia, Funk Buia, Dexter, Helião e Sandrão do RZO, Fernandinho Beatbox, Rodrigo Brandão, Rappin’ Hood, DJ Nuts e Tropkillaz, entre outros, e tem o peso que esperávamos deste lançamento, revelando-se um disco tão importante para esta década como o anterior foi para a passada.

Este mesmo grupo de luminares – mais outros tantos, como Emicida, Criolo, Fióti, Black Alien, João Gordo e os filhos de Sabotage, Sabotinha e Tamires, entre outros – se reuniu no Salão dos Arcos do Teatro Municipal de São Paulo para a primeira audição ao vivo do disco, quando cada um dos amigos e participantes do álbum póstumo foi ao microfone para saudar a importância do maestro do Canão para a maturidade atual do rap brasileiro – e vários discursos arrancaram lágrimas ao lembrar como o Sabotage, mais que importante, era querido. O disco póstumo é o legado vivo de sua obra, que certamente infl uenciará os próximos rumos do rap que vem por aí. Um fi m de capítulo que valeu cada minuto da espera.

CasadoMancha

Hora de trazer algumas das minhas colunas mais recentes publicadas na revista Caros Amigos pra cá – e começo com o texto que escrevi na edição de novembro sobre o festival Fora da Casinha, realizado pelo Mancha, e a importância de sua Casinha para a cena independente brasileira.

Começa com uma pessoa
A Casa do Mancha se consagra como um dos principais palcos independentes do Brasil e já está dando passos largos para o futuro

Tudo começa com uma pessoa. Alguém que tem uma ideia e chama alguns amigos para colocá-la em prática. A execução atrai mais gente e aos poucos um senso comunitário vai surgindo ao redor daquela primeira ideia da primeira pessoa, e a partir daí tudo pode acontecer. Empresas, ideologias, fi losofi as, países, manifestações, seitas, passeatas, partidos, greves, cultos, impérios, religiões e movimentos artísticos começaram assim, num misto dúbio de modéstia com a ambição de que uma pessoa com uma ideia pode mudar tudo.

Mancha é uma destas pessoas. De cabelo comprido e barba por fazer, mais baixo que alto, mais escuro que claro (daí o apelido), camiseta de banda, tênis, às vezes boné e bermuda, outras, camisa de flanela e jeans. Ele não é muito diferente dos milhares de skatistas ou integrantes de bandas que nascem em São Paulo como mato. Nativo do interior do interior do estado – uma cidade chamada Castilho –, quase na divisa com o Mato Grosso do Sul, ele viu a cena independente brasileira crescer durante os anos 1990 à distância e quando chegou a São Paulo, quis dar sua modesta contribuição a essa história.

Sem o complexo de épico característico destas decisões, Mancha simplesmente botou a mão na massa. Não criou um selo, nem uma banda, muito menos dirigiu clipes ou organizou um festival. Ele só abriu sua casa para receber bandas e novos artistas e aos poucos a transformou em um dos palcos mais importantes da cidade. Lógico que isso não aconteceu como num passe de mágica. Foi um processo lento de quase dez anos que acompanhou o renascer de uma cena paulistana, ao mesmo tempo em que o transformava em um de seus agentes mais ativos. O segredo foi a chave de seu tamanho.

O nome de seu estabelecimento – Casa do Mancha – deixava clara a dimensão de sua proposta. Era uma banda tocando em uma sala de estar de uma casa na Vila Madalena. A princípio, bandas do tamanho de uma sala de estar, tocando como se estivessem fazendo o primeiro show de suas vidas. Algumas estavam. Outras não. Mas se sentiam tão à vontade como se estivessem tocando para amigos em sua própria sala de estar. E a maioria estava.

A Casa do Mancha virou uma segunda casa para muitos fãs da música produzida às próprias custas na cidade. O caráter doméstico era fundamental para essa referência. Não havia distância entre banda e público – nem na altura do palco, que fica no chão, nem de áreas separadas. Os artistas sempre ficam no meio do público, conversando e bebendo antes e depois dos shows; e muitas vezes são o público – além daquele mesmo público, por inspiração ou osmose, acabar também virando artista. E por mais que o tempo amadurecesse a Casinha – como é conhecida por seus frequentadores – para que ela recebesse atrações de maior porte e até internacionais, elas não descaracterizaram a proposta original.

E além de casa de shows, a Casinha também funciona como incubadora musical, sala de ensaio e até estúdio. Bandas como Holger e Maglore trabalharam seus discos por lá, antes de ir para gravar em um estúdio bancado por uma gravadora. Outros artistas, como Juliana Perdigão e Gui Amabis, usaram o espaço para talhar melhor apresentações ao vivo, e outros ainda como Bárbara Eugênia, Rock Rocket e Stela Campos, gravaram seus discos ali mesmo.

A comunidade que continuava se formando ao redor da Casinha, no entanto, não parava de crescer e cada vez mais fi cou comum, não apenas lotações esgotadas de shows – com o público se aglomerando do lado de fora –, como shows duplos na mesma noite, alguns até improvisados. O caráter caseiro da noite facilita a retirada do público da primeira sessão para a entrada de um novo público, que chegava mais tarde.

Mas como crescer continuando do mesmo tamanho? Mancha até cogitou ir para um estabelecimento maior em outro momento, mas preferiu expandir suas fronteiras mantendo sua base intacta.

Primeiro, levou o nome da Casa para fora da casa em festas e depois em um festival. O Fora da Casinha foi materializado como uma edição comemorativa dos oito anos da Casinha longe do ponto original, como seu nome deixava claro. Realizado primeiro no Centro Cultural Rio Verde, em 2015, ele teve sua segunda edição realizada este ano na Unibes Cultural, indo de dois para três palcos simultâneos. Em duas edições, Mancha pode reunir artistas como Juliana Perdigão, Carne Doce, Dustan Gallas, Gui Amabis, Jaloo, Maglore, Maurício Pereira, Anelis Assumpção, Twinpine(s), Ventre, Stela Campos, Cidadão Instigado, Soundscapes, O Terno, Supercordas, Kiko Dinucci, Hurtmold, Luiza Lian, As Bahias e a Cozinha Mineira e Boogarins. Cobrando barato a entrada e sem contar com nenhum patrocínio.

O Fora da Casinha é o começo de uma expansão da Casa do Mancha para outras capitais. Depois de fazer o palco da Casa do Mancha no festival goiano Bananada, um dos principais do País, Mancha quer levar a curadoria de um palco para outros festivais indies pelo Brasil a partir do ano que vem, como o paraense Se Rasgum, o pernambucano Coquetel Molotov, o paulista Contato e o potiguar DoSol. “O Fora da Casinha é o irmão mais novo”, brinca Mancha, usando a idade do festival para justifi car sua modéstia. Não precisa. Sozinho, ele ajudou a cena paulistana – e, em seguida, a brasileira – a se erguer com uma autoestima intacta, mesmo quando quase não há rádios que toquem este tipo de música, os cadernos de cultura de jornais viraram agendas culturais comerciais, que as grandes gravadoras ignorem estes novos artistas ou que a mídia tradicional sequer perceba sua existência. Para o segundo semestre de 2017, ele planeja a terceira edição do Fora da Casinha e outra coisa para comemorar seus dez anos em atividade – mas ele nem tem ideia do que quer fazer ainda. Ou tem e prefere não falar… E sim fazer.

ascensao

Escrevi na minha coluna de agosto da revista Caros Amigos sobre o exuberante disco póstumo de Serena Assumpção, o excepcional Ascensão, que devia ser ouvido por muito mais gente:

https://www.youtube.com/watch?v=b_-HPVYSk9U

serena

Serena em ascensão
Um disco profundo que mantém vivo o nome de sua criadora

A primeira música é dedicada a Leonilson e reúne o dramaturgo Zé Celso às cantoras Karina Buhr e Luê. A segunda saúda o Profeta Gentileza e tem vocais de Tulipa Ruiz e Tatá Aeroplano. A terceira traz o casal Curumin e Anelis Assumpção celebrando João da Baiana e Noriel Vilela. A quarta, para Luz Del Fuego, traz Moreno Veloso, Domenico Lancelotti e Bem Gil. Depois, o trio Metá Metá aparece ao lado do baixista Alfredo “DJ Tudo” Bello e da percussionista Simone Sou em uma música feita para Iyá Sandra Apega e Dorival Caymmi. Pelo resto do disco cruzamos com Filipe Catto, Tetê Espíndola, Lettieres Leite, Céu, Mau, Klaus Sena, Luz Marina, Mariana Aydar, Paula Pretta, Bruno Barbosa, Xênia França, Marcelo Pretto e Juliana Kehl, entre outros músicos e intérpretes, homenageando, a cada canção, nomes como Nina Simone, Pai Joaquim de Angola, Elis Regina, Clementina de Jesus, Mahatma Ghandi, Geraldo Filme, Clara Nunes, Madame Satã, Paco de Lucia, Mahalia Jackson, Pai João, Egbomi Cidalia, Heitor Villa-Lobos e Mãe Menininha do Gantois.

Descrito assim, por sua ficha técnica e pelas dedicatórias à cada música no encarte, o disco Ascensão, de Serena Assumpção, parece uma celebração da diversidade cultural brasileira, mais um registro musical que celebra um cânone plural em movimento, que ergueu a identidade de um País que passa longe da coroa portuguesa, da bossa nova, da Rede Globo, de Brasília. E também um encontro da nata dos representantes atuais deste cânone musical, traçando conexões e pontes entre músicos e intérpretes que sempre estiveram próximos, mas num grande disco de celebração à própria importância como geração.

Essas leituras, no entanto, mudam completamente de fi gura quando sabemos que a primeira música se chama Exu, a segunda Ogum, a terceira Pavão, a quarta Oxumaré, depois Xangô, Iansã, Oxum, Iemanjá, Iroko, Nanã, Obaluaiê, Oxalá e Do Tata Nzambi – e que suas letras falam especifi camente de cada um desses orixás. Sabendo disso, a escolha dos intérpretes e os homenageados de cada faixa dão uma dimensão extra a cada letra, a cada batida, a cada acorde, a cada nota. Ascensão não é um simples disco de celebração da cultura brasileira – é algo muito mais profundo, intenso e ancestral do que o próprio Brasil. Fora a voz onipresente de Serena, uma liga que soa milenar ao conectar cada canção com o imponente todo.

“Serena recebeu essa ‘missão’ em um jogo de búzios no terreiro que frequentava, que ela então seria a responsável por gravar um disco com músicas desse terreiro, Ilê De Obá De Dessemi De Odé”, me explica o músico e produtor Rodolfo Dias Paes, o Dipa,que acompanhou o nascimento de Ascensão desde o início, ajudando Serena a concretizar a obra. “E essas músicas são as que são cantadas no próprio Ilê.”

“Serena já havia escolhido praticamente todo repertório que formaria o disco quando me chamou”, continua o produtor do disco. “Entrei no processo logo no início, em 2009. Antes ela havia gravado duas músicas no estúdio do Alfredo Bello, o DJ Tudo. Mas por conta de agenda e proximidade, me convidou para continuar esse projeto, ainda sem nenhum tipo de custeio externo, fazendo às próprias custas. Havia me encantado e disse que mergulharia com ela nisso.”

“Lembro que nos encontrávamos nos estúdio duas ou três vezes antes de gravar apenas para ouvir as melodias, que ela gravava no celular, e aí pensar quem poderia gravar, qual seria a melhor instrumentação para aquela canção”, continua o produtor. “Sobre os convidados, ela tinha bem claro quem gostaria que participasse – e pensando em quem cantaria, nós pensávamos qual seria a melhor instrumentação, tudo isso para poder ‘dar certo’, fazer fl uir o dia que teríamos para gravar todos juntos no estúdio determinada música. E assim foi. Quase todas as músicas nasceram no encontro de no máximo dois dias no estúdio. Escolhíamos os músicos e intérpretes e a música nascia no processo coletivo mesmo! Todos no estúdio e criando juntos. Começamos assim em 2009, e assim continuamos até a conclusão do disco em 2015.”

“Serena sempre soube bem os caminhos que ela queria para esse trabalho, se ela não soubesse a maneira técnica pra falar algo que ela queria expressar na música, ela sempre dava referências e do sentimento que a música poderia ter”, explica Pipo Pegoraro, o outro produtor do disco, que entrou no meio do processo “ajudando a reorganizar e produzir os materiais que já haviam sido gravados”. “No estúdio, no meio dos takes de gravação, diversas vezes ela chegava perto do microfone e falava uma palavra ou um som para a pessoa pensar naquele momento – e certamente mudava algo ali!”

“Teve um dia em que antes de irmos pro estúdio, ela reuniu as pessoas que iriam gravar e ofereceu um almoço baseado nas comidas que são ofertadas para aquele Orixá, que mais tarde seria musicado por nós”, continua Pipo. “Esse tipo de relação com o trabalho estava sempre presente.”

“Serena tinha um grande conhecimento nesse quesito”, completa Dipa. “Ela tinha propriedade quando falava dos Orixás, suas referências, contos, origens, cores, sabores, matérias… Com certeza ela escolheu a dedo cada intérprete para cada Orixá. E conversou bem com cada um que iria participar. Serena gostava muito disso, ela convidava para passar na casa dela, fazia um bolo delicioso ou um almoço, chás, sucos e fi cávamos conversando sobre o assunto. Assim foi também com todos os intérpretes. Todos que cantaram chegaram lá com bagagem da Sereninha. E mesmo durante as gravações, no estúdio, ela trazia mais referência, mais subtextos para os intérpretes.”

“Serena sempre teve bastante consciência do que ela estava querendo”, continua Pipo. “Ela queria falar das crenças e da importância disso na vida dela, expressar a beleza de nossa autêntica cultura e religiosidade, e fazer algo por isso, juntando a energia de cada um que se envolvia no projeto e acreditava. Juntar todas essas pessoas para ela foi algo meio que natural, sabe?”, conta Dipa. O disco foi lançado ofi cialmente nos dias 7 e 8 de julho, com shows no Sesc Pompeia que reuniram Karina Buhr, Tulipa Ruiz, Filipe Catto, Céu, Anelis Assumpção, Tatá Aeroplano, Luz Marina, Juliana Kehl, Luê, Mauricio Bade, Xênia França, Paula Pretta, Leo Cavalcanti, Marcelo Pretto, Ana Lomelino e Laura Lavieri, acompanhados pela banda Tono.

“Serena já havia deixado tudo pronto e aprovado, não mudamos uma vírgula, das músicas à lombada do CD”, lembra Dipa. “Já falávamos bastante sobre como poderia ser o show. Ela já havia escrito duas propostas de projeto para o Sesc para esse lançamento, já havia deixado marcado com a Banda Tono para ser a banda de base que a acompanharia, o Ryck Staff faria a direção geral do show, a Julia (Rocha, autora do projeto gráfi co do disco) as projeções; a Isadora Gallas o fi gurino e por aí foi. Tudo já anotado, assessoria de imprensa e tudo mais que pensar.”

“Com a partida da Serena pensamos que faria todo sentido convidar os intérpretes que participaram do disco. Nem todos puderam fazer o show por conta de agenda. Outros somaram no dia, pois eram artistas, amigos muito próximos a Serena e sentimos que nesse formato, eles mesmos não estando no disco faziam parte. E assim foi”, lembra o parceiro. A partida da fi lha de Itamar Assumpção, que saiu de cena devido ao câncer no dia 16 de março deste ano, foi anunciada pela irmã Anelis no dia seguinte: “Serena foi voar / Nadar nas profundas águas / Num canto de sereia / Serena voou encantos / Foi navegar seus ultramares / Serena agora está livre / Livre e mais Serena / pra sempre / Serena.” Ascensão, no entanto, torna-a viva – e intensa – para todos que não a conheciam.

O disco é um dos mais envolventes da história da música brasileira, não apenas deste século. E Dipa não acha que seu ciclo terminou com os shows no Sesc: “Ainda não sabemos como fazer, mas foi tão especial que merece ainda ser pensado”, explica o produtor, adiantando também que “existe uma faixa que gravamos e não saiu no disco físico, com participação do Caetano Veloso. Vamos lançar essa faixa em breve para download gratuito e continuar espalhando essas sementes.”

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A minha coluna Tudo Tanto da edição de julho da revista Caros Amigos foi sobre o terceiro disco do Metá Metá e o show deles que assisti na infame noite do golpe.

Música inquieta
Como o Metá Metá desintoxicou a noite do golpe e mostrou a luz no fim do túnel – a música

No ensurdecedor silêncio que baixou sobre a noite do golpe, tive de sair de casa. Mariana, minha cara-metade, estava viajando a trabalho em outra cidade e a indignação após a notícia de que haviam derrubado a democracia brasileira no tapetão e que estávamos prestes a voltar, com sorte, há três décadas, me deixava inquieto em casa. Não dava pra ficar remoendo o golpe sozinho naquela noite. Mandei mensagens para alguns amigos perguntando o que fazer e a Roberta me avisou: tem Metá Metá na Casa de Francisca. Nem pensei duas vezes e em poucos minutos já estava no metrô rumo ao minúsculo sobrado nos Jardins.

Formado pelo trio Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França, o Metá Metá é uma das inúmeras facetas da nova música de São Paulo, herdeiros diretos da geração da vanguarda que criou-se ao redor do saudoso Lira Paulistana. Os três, como outros músicos, cantores, compositores e intérpretes da mesma geração, participam dos discos uns dos outros, lançam projetos paralelos e discos de improviso e vivem uma constante reinvenção de suas personalidades a partir desses encontros e reencontros musicais.

Mas o Metá Metá é o epicentro mais forte dessa cena.

São três personalidades distintas e cada uma puxa para um extremo: Juçara é veterana dos grupos Vésper e A Barca, professora de canto e de uma intensidade ímpar no palco, deixando sua voz vibrar suave ou nos atacar como uma força da natureza. Kiko vem do punk rock e do samba paulistano, fez fama liderando o grupo Afromacarrônico que tocava no Ó do Borogodó, inferninho do samba na Vila Madalena, e transita entre a guitarra e o violão sem a menor cerimônia, tratando ambos instrumentos com a mesma intimidade. Thiago é saxofonista de salão, seja de jazz ou de gafieira, e explora os limites de seu instrumento indo do hard bop à doce melodia, além de peregrinar pela flauta e por engenhocas que disparam efeitos.

Encontrei a Roberta antes do show e subimos para o andar sobre o palco, no camarim em que o público, lá de baixo, pode ver os músicos antes de eles começarem a tocar. Os três, normalmente falantes e sorridentes, estavam grudados cada um em seu celular, olhando tensos para a tela brilhante e levantando a cabeça para cada nova notícia que liam sobre os desdobramentos da política brasileira indo para o brejo. Na hora do show, no entanto, tudo mudou. A princípio sérios e introspectivos, o trio cumprimentou o público e começou um lento e fugaz exorcismo de más vibrações. Kiko transformando o violão em instrumento de percussão ou emulando distorção elétrica ao entortar suas cordas. Thiago desembesta-se no sax como se fosse possível viajar até Saturno na velocidade de seu som. E Juçara, entre os dois, entrega-se à musa do trio – a própria música – num misto de sacerdotisa e mestra de cerimônias. Juntos despoluíram toda a má sorte que havia caído sobre o dia e, mesmo que tenham conseguido fazer piadas para desanuviar o clima, mostraram o rumo da luz com música. Intensa música.

No show, algumas músicas funcionavam como aperitivo para o assombroso MM3, terceiro disco que o trio lançou de supetão no mês de junho. Gravado quase ao vivo com o baixista Marcelo Cabral e o baterista Serginho Machado, o disco expande ainda mais o universo explorado no pequeno palco da Casa de Francisca. E mesmo sem dar nomes aos bois, é um disco – como a banda – de natureza política. Um disco descontente – para mencionar Let’s Play That, de Jards Macalé, tocada ao vivo na noite daquele fatídico 12 de maio. Um disco de protesto.

“A gente quando pensa em música de protesto, pensa em letras diretas. Mas cada gesto seu como artista pode ser um protesto”, me explicou Kiko depois; “Por exemplo, o som do Metá pode ser um protesto contra a música brasileira careta, comercial ou inofensiva. A gente pensa muito nisso. O jeito como autogerimos nossos negócios também pode ser um protesto contra os artistas conformados que se deixam ser explorados. Acho que fazemos mais política do que protesto. No momento em que disponibilizamos o disco de graça num País pobre, e qualquer pessoa que mora em uma cidade com menos infra-estrutura pode baixar o disco, isso pode ser encarado como democracia cultural ou uma espécie de reforma agrária da cultura. Não é só o Estado que deve dar acesso à arte, os artistas também podem contribuir.”

“A gente não usa a música pra fazer protesto, a gente usa pra fazer arte”, continua Thiago. “Contamos a nossa história, o que vemos e percebemos do mundo ao redor. É possível você abstrair completamente os significados, reinterpretá-los, assim como a gente ouve muita música que não tem ideia do que a letra diz, e fruímos mesmo assim. Mas sim, somos pessoas inquietas, politizadas e incomodadas com a realidade em que vivemos, sobretudo em São Paulo. Nos envolvemos em questões sociais e políticas, somos simpáticos a vários movimentos.”

“Fazer arte, primar pela liberdade, pela experimentação e pela independência, no que diz respeito à criação e à produção, se tornou algo quase proibitivo na atual realidade cultural brasileira”, completa Juçara. “Mas o protesto se dá de uma maneira muito diferente daquela que marcou os anos 60 e 70. Nossa música não tem palavras de ordem. O discurso mais político, se o utilizamos, aparece na nossa fala durante o show. É a sonoridade, a poesia, a proposta libertária que se estabelece em cada show que fazemos, onde o indivíduo se vê levado pelo som a se expandir, a se soltar, a se transtornar também! -, é isso uma forma de protesto. Talvez a mais forte forma de protesto que existe.”

“Abram caminho para o rei”, ela cantou durante o show. “Sorriam em vez de se curvar / Ele é justiça, ele é a lei / Que fez pra nos levantar / Pra nos pôr em pé, nos erguer / E lançar pra orum nosso olhar.” A plateia estava estática e extasiada, sendo levada num transe com uma descrição crítica do atual cenário político brasileiro – “Não há justiça se há sofrer / Não há justiça se há temor / E se a gente sempre se curvar”, culminando com uma saudação em ioruba ao rei de verdade que ainda há de chegar: “Kawó kabiecilè xangô oba iná!”

Voltei para casa mais leve. O pesar da noite que se abateu sobre o País persistia, mas havia um horizonte à espera, me disse a música. Ela mesma.

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Hora de republicar as edições da minha coluna Tudo Tanto que escrevi para a revista Caros Amigos nos útimos meses. A primeira da safra é a do mês de junho, quando escrevi sobre o Tropix da Céu.

Céu imprevisível
Em seu quarto disco, a cantora paulista se firma como o João Gilberto da música brasileira deste século

Encontrei com a Céu logo depois de ela ter terminado seu quarto disco e ela quase não cabia em si. Queria falar sobre o disco, queria mostrar o disco, queria dizer o nome do disco, dizer o que estava experimentando, o que havia inventado, quem havia participado. Mas sabia o quanto o sigilo era importante naquele estágio de gestação do álbum, que ainda estava tendo seu cronograma de lançamento agendado. A obra já estava terminada, o produto ainda não. Mas a vontade para mostrar o disco novo era tanta que ela preferiu trabalhar no campo subliminar, indo me encontrar vestida com uma camiseta do grupo paulistano Fellini. Confesso que a visão dela com a camiseta de uma banda tão importante para a cena independente brasileira quanto desconhecida do grande público me causou certo estranhamento, tanto que perguntei logo depois de nos cumprimentarmos. “Conheci faz pouco tempo”, ela me contou, empolgada, dizendo que estava escutando todos os discos da banda. Por mais que pudesse ter traçado uma conexão entre a banda paulistana e o novo disco dela (Céu lo-fi?) a dica invisível nunca me diria que ela estivesse prestes a lançar uma versão para uma das músicas do grupo. “Foi difícil escolher uma das músicas pra regravar”, ela me contou num outro encontro, quando já podia falar sobre o assunto.

Tropix, o disco que Céu revelou ao mundo no final de março, no entanto, passa longe das gravações de baixa fidelidade do Velvet Underground paulistano. O quarto disco da cantora é seu salto mais ousado, um mergulho na disco music e na pista de dança, na eletrônica e na vida noturna, no mundo digital e nos beats e loops. Um universo completamente avesso à aura rústica que ela carregava em seus ombros musicais, uma ambiência que cruzava a singularidade do reggae mais roots com a aspereza do samba mais cru, a tonalidade mais sépia da música latina e a candura da canção brasileira. Depois de discos de cores neutras, ela veio com um álbum preto, branco e prata, brincando com timbres sintéticos e com a linguagem digital.

E é tudo Céu. O disco foi produzido pela dupla Pupilo, o pulso preciso da Nação Zumbi, e Hervé Salters, o mago francês dos timbres eletrônicos por trás de projetos como General Elektriks e Honeycut. Conta com participações do guitarrista carioca Pedro Sá e da cantora paulista Tulipa Ruiz, tem canções coescritas com o goiano Dinho da banda psicodélica Boogarins e o pernambucano Jorge Du Peixe, vocalista da mesma Nação de Pupilo. Mas é tudo Céu.

A tradição do canto feminino no Brasil nos acostumou a tratar cantoras como intérpretes – que vão da simples definição do termo (em que basicamente cantam músicas compostas, arranjadas e produzidas por outros – quase sempre homens) ao limite da canção com o teatro (quando cantoras como Elis Regina e Maria Bethânia se entregam corporalmente à música). Mais uma das inúmeras facetas do secular machismo enraizado em nossas entranhas (e isso, de forma alguma, é demérito exclusivo do Brasil), sempre que pensamos em mulheres fazendo música, as vemos como musas escolhidas por homens talentosos ou controladores. Céu vira esse jogo. Porque seu disco é todo seu. Foi ela quem começou rascunhando as canções no computador, foi ela quem escolheu músicos e produtores, foi ela quem determinou o rumo a ser seguido, quem compôs as canções e deu o tom do novo álbum. Como em todos seus álbuns.

Ela é o João Gilberto de vestido que inventou essa nova bossa nova que gosto de chamar de música brasileira do século 21. Foi ela que mostrou para diferentes novas cantoras que não era preciso ter homens nos bastidores para determinar seu rumo. Foi ela também quem estabeleceu o parâmetro musical que não é preciso sublinhar forte os gêneros musicais em formação para se determinar pertencente a um clube A ou B de estilo musical, misturando tudo numa mesma sonoridade indefinível, ousada, mas, principalmente, pop. Tropix não é a nova joia em sua coroa de rainha da música brasileira: é o farol que determina o rumo daqui pra frente. Em seus três primeiros discos (Céu, Vagarosa e Caravana Sereia Bloom) ela traçou um perfil que ajudou a moldar a cena musical brasileira atual. Tal como João Gilberto cinquenta anos antes, não o fez de forma consciente, apenas deixou sua sensibilidade guiar o rumo. Mas acertou um nervo artístico que ecoou por diferentes artistas, cenas musicais, discos e shows. Injetou autoestima em uma cena musical que vivia sob a sombra de um cânone que parecia imutável. E mudou a cara da música brasileira.

Tanto que Tropix parece-se com outros dois discos de cantoras e compositoras que vieram depois dela. Tanto o Dancê de Tulipa Ruiz e Frou Frou de Bárbara Eugenia, ambos lançados no ano passado, disfar- çam-se de fúteis para passar mensagens bem fortes. Cada um apresenta uma sonoridade específica, todos os três fundados em cima de uma musicalidade brasileira que sucedeu a MPB dos anos 1970 e antecedeu o rock dos anos 1980. Uma atmosfera de pista de dança que ecoa a discoteca e os arranjos de Lincoln Olivetti, a carreira de Rita Lee após o grupo Tutti Frutti e os anos dance music de Gilberto Gil, a frugalidade de uma sonoridade de fácil absorção e com alto astral. Cada um deles chega dançando do seu jeito para revelar verdades mais difíceis de ser assimiladas do que o simples pop: Tulipa traz mestres como João Donato, Lanny Gordin e novos titãs como Felipe Cordeiro e o trio Metá Metá; Barbara entrega-se a mantras de autoconhecimento e às baladas intensas de Fernando Catatau e Tatá Aeroplano.

A superfície sintética e dance de Tropix guarda segredos densos e realidades flutuantes, como a própria versão que ela fez para “Chico Buarque Song”, dos acima citados Fellini, a latinidade teatral de “Sangria” e as três músicas que fecham o disco “Camadas”, “A Nave Vai” e “Rapsodia Brasilis”, cheias de cordas deslumbrantes, que apontam para um rumo completamente diferente da pista de dança (embora as duas últimas façam dançar). O que ela fará a seguir? Uma viagem à África? Um disco de música baiana? Uma visita ao Caribe? Uma busca pela canção interiorizada? Nem ela sabe. E assim ela consagra a imprevisibilidade não apenas como uma de suas principais características, como a de toda essa nova geração.

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Como o diretor revolucionou a TV, a música e o jornalismo ao sair de cena e como esta estratégia o torna vivo para sempre – escrevi sobre este incrível legado em minha coluna de maio da revista Caros Amigos.

O ego de fora

Ele era mesmo baixo e chamava a todos por este seu apelido – ou por variações dele. “Baixo, baixa, baixinha, baixinho” – não importava a estatura de seu interlocutor. Este quase sempre o via de cima, pois Fernando Faro, que morreu no final do mês de abril, sempre se sentava próximo ao chão quando ia entrevistar seus convidados.

Era um esperto macete de cena que quebrava completamente o gelo das apresentações de seu programa Ensaio, que fazia na TV Cultura desde o início dos anos 1970, depois de lançar o programa na falecida TV Tupi na década anterior. Ao sentar-se um nível abaixo de seus entrevistados, Faro – ou Baixo, como todos o conheciam – quebrava a defensiva típica erguida por quem faz música quando chamado para falar sobre sua vocação. Aquilo tirava a solenidade do estúdio, fazia músicos se esquecerem das câmeras, deixava a atmosfera mais casual, branda, leve – e a música fluía melhor, mais emotiva, mais próxima e mais quente.

E este nem era seu grande truque. Seu Ensaio entrou para a história quando ele mesmo se colocou fora das câmeras. E até dos microfones. Criador e apresentador do programa, Faro não aparecia. Nem sequer sua voz. Muito menos quando perguntava. As perguntas – que ele entendia como redundantes e achava que causavam certo ruído no fluxo da fala de seus convidados – não eram ouvidas durante o programa. Víamos os músicos assentindo com a cabeça, calados ouvindo as colocações do mestre de cerimônias, mas em momento algum víamos quem perguntava ou ouvíamos o que era perguntado. A questão vinha embutida na resposta, por vezes literalmente, mas em muitos casos só entendíamos a pergunta com o desenrolar da explicação dada pelo artista.

A ausência das perguntas em um programa de entrevistas era a marca registrada de seu Ensaio, mas não era a única. A ambientação meio escura, quase sempre com sombras carregadas, mesmo com as cores da TV colorida, davam um clima preto e branco que conversava tanto com o cinema europeu do final dos anos 1960 quanto com o cinema da Boca do Lixo paulistana. As imagens ganhavam profundidade ao revelar as minúcias de seus entrevistados. Músicos olhando para o lado, quase nunca olhando para a câmera, cobertos por uma escuridão acolhedora, que, como a posição de Faro, também tornava o clima do estúdio menos hostil e mais familiar. Os closes nas mãos dos instrumentistas, na textura da pele de seus entrevistados, nas rugas e recôncavos faciais, nas rachaduras dos lábios dos cantores. Havia uma proximidade intensa entre a câmera e seu foco que aproximava o telespectador do entrevistado. Não era um show, não havia maquiagem, figurino nem efeito especial – eram pessoas tocando em sua própria casa.

Havia ainda a amplitude do leque musical de Faro, um rígido crítico musical que não precisava de adjetivos ou notas para mensurar o trabalho alheio. Bastava ser chamado para o Ensaio para entrar num enorme panteão que recebia sambistas, chorões, sertanejos, roqueiros, bossanovistas, virtuosos, rappers, intérpretes e instrumentistas sem a menor distinção de hierarquia ou degraus de importância. Só o fato de estar lá já significava fazer parte de um grupo específico designado pela escolha do dono da festa. Tanto faz se fosse Cartola, Elis Regina, Los Hermanos, Racionais MCs e inúmeros artistas quase anônimos que o tempo esqueceu – Baixo tratava-os todos da mesma forma.

E também havia a longevidade do programa. Foram quase cinco décadas ininterruptas de shows semanais, ladeando artistas em ascensão que se tornaram os mestres de hoje em dia com novatos que despontaram para o anonimato, músicos de imenso apelo popular ou queridinhos da crítica musical, veteranos que não foram celebrados em seu auge e conjuntos instrumentais. A estética, o estilo, a mensagem que o meio passava, tudo se mantinha quase idêntico por todos esses anos. Essa longevidade na TV brasileira necessariamente depende de um apresentador carismático para esticar-se por décadas (como Fausto Silva, Sérgio Groissman ou Inezita Barroso) e são raros os programas que se esticaram por tanto tempo sem depender de um rosto conhecido ou mesmo mantendo a própria assinatura.

O foco no entrevistado, o clima intimista, a estética como assinatura, a amplitude de gêneros e a firmeza em manter o próprio trabalho eram as qualidades intrínsecas ao Ensaio, que é o grande legado que Faro nos deixa. Agora interrompido por questões biológicas, todo o acervo do programa – que já começou a ser lançado em DVD, tem um próprio canal no YouTube, mas não está inteiro disponível on-line – surge como uma imensa obra única, uma herança monumental sobre uma das principais contribuições da cultura brasileira para o mundo, a música.

A sacada de Faro para entrar para a história da TV, do jornalismo e da música brasileira foi sair de cena. Décadas antes de Quincy Jones colocar uma plaquinha na porta do estúdio de gravação do encontro de popstars dos anos 1980 USA for Africa, em que pedia para os intérpretes da música “We Are the World” (figurões do quilate de Michael Jackson, Bob Dylan, Stevie Wonder e Bruce Springsteen) deixarem seus egos do lado de fora do estúdio, Faro deixou o próprio ego fora da história que queria contar para que seus personagens brilhassem mais que ele.

É claro que sua ausência será sentida, mas não vista – como era em sua vida. Seu legado é um olhar lúdico sobre a diversidade e profundidade emocional e viva da música brasileira e seus autores e intérpretes, deixando que estes falassem por si. Mesmo morto Faro continuará fazendo as perguntas que ninguém ouve – e seu Ensaio continua mesmo que não seja mais gravado.

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Mais uma edição de minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos que republico atrasado por aqui, esta é sobre o novo disco de João Donato, que pude ver ao vivo no começo do ano (e os vídeos vêm a seguir). A coluna saiu na edição de abril.

De volta à eletricidade
João Donato volta ao vigor de seus anos 70 com o disco Donato Elétrico

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João Donato aceitou o convite de Ronaldo Evangelista para voltar à eletricidade. O jornalista – meu amigo pessoal, não preciso esconder isso – já vinha apontando sua transição do texto para o estúdio ao se propor o desafio de transformar seu projeto Goma Laca – em que artistas recriavam pérolas esquecidas da música brasileira que só foram registradas em compactos de 78 rotações – em um disco. Sua primeira produção reuniu nomes de peso como Karina Buhr, Lucas Santtana, Russo Passapusso e Juçara Marçal para recriar músicas com quase um século de idade. O próximo estágio seria produzir um disco de um único artista e aproveitou a aproximação com Donato para fazer sua estréia como produtor em grande estilo.

Foi um lento processo de convencimento, sem pressa nem pressão, bem ao estilo do velho músico. Donato é destes alicerces da música brasileira que poucos prestam a devida atenção – ele se adequa à expressão inglesa que o qualifica como um “musician’s musician”, um músico apreciado mais por outros músicos do que pelo grande público, não sem razão. Mestre da suavidade e do sossego, é uma das claras inspirações da bossa nova, tendo influenciado tanto João Gilberto quanto Tom Jobim quando estes ainda começavam suas carreiras. Depois teceu uma carreira paralela entre o Brasil e o exterior, levando a música brasileira embalada a uma latinidade própria sua, que foi desenvolvendo e curtindo com o passar dos anos.

O primeiro disco de inéditas de João Donato deste século começou com um acerto de contas com o passado, quando Ronaldo conseguiu uma boa desculpa para fazer o músico voltar aos instrumentos elétricos, essência de sua sequência de discos clássicos dos anos 1970. Descobriu que o disco Quem é Quem, lançado em 1973, não teve um show de lançamento de fato e resolveu aproveitar o aniversário do disco para finalmente lançá-lo. Para isso cercou-o dos músicos do grupo paulistano Bixiga 70 e convocou amigos do arranjador para subir ao palco – além do veterano compadre Marcos Valle, que produziu o disco original, também chamou as cantoras Tulipa Ruiz e Mariana Aydar para cantar os clássicos do disco do mestre, que incluem canções como “A Rã”, “Cala Boca Menino”, “Me Deixa”, “Amazonas” e “Cadê Jodel?” No ritmo de Donato, o show só foi acontecer no início de 2014, em duas apresentações emocionantes no Sesc Pinheiros.

Era o primeiro passo para uma impressionante aproximação entre o buda do groove brasileiro e a fina flor da nova música instrumental brasileira. Além de músicos do Bixiga, que incluem o baterista Décio 7, o baixista Marcelo Dworeck, os guitarristas Cris Scabello e Maurício Fleury (que também toca teclado no Bixiga mas preferiu não chegar perto do instrumento do mestre), o naipe de metais formado por Cuca Ferreira (sax e flautim), Daniel Nogueira (sax), Douglas Antunes (trombone) e Daniel Gralha (trompete) e os percussionistas Rômulo Nardes e Gustavo Cecci, o disco contou com outras presenças de peso, como o baterista Bruno Buarque (que tocava com a Céu e hoje toca com Anelis Assumpção), o saxofonista Anderson Quevedo, os percussionistas Mauro Refosco e Guilherme Kastrup (este idealizador do disco mais recente de Elza Soares, Mulher do Fim do Mundo), o guitarrista Gustavo Ruiz (irmão de Tulipa, que toca com ela), o trombonista Richard Fermino, o vibrafonista Beto Montag e o baixista Zé Nigro (que toca com Curumin) e um quarteto de cordas formado por Aramís Rocha, Robson Rocha, Daniel Pires e Renato de Sá, que em uma das músicas seguiu os arranjos de Marcelo Cabral, baixista que toca com Criolo e com o Metá Metá.

Chamado de Donato Elétrico, o disco foi gravado no ano passado no bunker do Bixiga, o estúdio Traquitana que sedia as sessões de alquimia musical do coletivo paulistano de groovezeira, localizado no bairro que batiza o grupo, mas só viu a luz do dia no início deste ano. É um inevitável reencontro de Donato não apenas com instrumentos que havia deixado de lado – teclados Rhodes, Farfisa, Clavinet e até um Moog – mas com uma espontaneidade que solta faíscas. Há a clara vibração de discos como A Bad Donato, Quem é Quem e o clássico Donato/Deodato, em que encontrou-se com outro monstro maestro brasileiro, Eumir Deodato. Mas ela tem uma luz mais clara que a daqueles discos, que são propriamente carregados. O novo disco não é parte de uma evolução natural de sua musicalidade como aconteceu nos anos 70 e sim um reencontro com uma essência jovem que talvez tivesse dada como perdida. Donato vinha tranquilamente apresentando-se ao lado de um baixista acústico e um baterista, quando muito chamando uma vocalista ao encontro, e de repente viu-se cercado de músicos com sangue nos olhos, secos para deitar e rolar ao lado do mestre. João, envolto em sua tradicional névoa branca, com seus bonés e tênis coloridos escancarava o sorriso nas apresentações ao vivo com o grupo de novos músicos, alheio aos seus mais de oitenta anos de idade.

Pude vê-lo em ação duas vezes nesta nova fase. Uma delas, no ano passado, tocando para pouquíssimos num palco menor daquele shopping center chamado Rock in Rio, pérolas aos porcos que esperavam na fila para cantar no karaokê de uma marca de refrigerante. Em outra, no lançamento do disco, toda a choperia do Sesc Pompeia lotada, reverenciava o encontro do mestre com os pupilos. Em ambas apresentações, em dado momento Donato levantava-se do banquinho de trás dos teclados e brincava com os botões dos sintetizadores, explorando efeitos, transformando melodia em ritmo, claramente divertindo-se e divertindo o público.

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Outra coluna que publiquei na revista Caros Amigos, esta é de março deste ano e fala sobre o BaianaSystem às vésperas de lançar seu segundo disco, Duas Cidades, que ainda não tinha nome na época.

A ascensão do BaianaSystem
Maior nome da música pop atual de Salvador, o grupo está prestes a conquistar o Brasil com seu segundo disco

“Também”, ri o guitarrista Beto Barreto quando pergunto se a faixa “Playsom”, uma das melhores músicas de 2015, mostrava o rumo para o disco de sua banda, o BaianaSystem. Ele emenda a explicação: “Costumamos falar isso sempre que perguntam se o som é segue numa determinada direção. O novo disco tem na verdade uma série de referências e transita por muitos lugares. Tem uma forte presença da percussão e dos beats, e um amadurecimento no diálogo entre a guitarra baiana, que trabalha novas timbragens e participações de outros instrumentos, e a voz, com a poesia mais forte e rimas também caminhando por referencias que vão do repente ao samba reggae, da canção popular ligada com o universo pop.”

Descrito assim, o grupo BaianaSystem parece um mero projeto de pesquisa que tenta equilibrar diferentes tradições em um novo formato musical – e não a usina de som cuja força vem crescendo a cada ano, culminando com o carnaval deste ano, em que as saídas do trio elétrico pilotado pelo grupo – a Nau Pirata – levaram mais de 50 mil pessoas às praças públicas. Escolhendo estrategicamente o mês de março para lançar seu segundo disco, o grupo preferiu fugir da saída que seria convencional – lançar o disco novo antes do carnaval e ver toda essa multidão se impregnar das músicas novas. Querem ir um passo de cada vez, sem sede ao pote.

Eles utilizam a já clássica velocidade baiana em seu próprio benefício, sem dar passos apressados e caminhando em seu próprio ritmo rumo ao topo do pop da Bahia e – por que não? – do Brasil. A escalada do BaianaSystem começa desde sua concepção quando, ao final da década passada, resolveram reunir duas linguagens no mesmo conceito sonoro – a guitarra baiana e os soundsystems jamaicanos.

A guitarra baiana é uma versão elétrica de um híbrido de bandolim com cavaquinho, um violão que foi eletrificado antes mesmo da guitarra elétrica existir. Tudo começou com a dupla Dodô (Antonio Adolfo Nascimento) e Osmar (Osmar Macedo), que resolveu trazer para o carnaval da Bahia algo que tivesse a mesma energia dos blocos de frevo do Recife. Eletrificaram a viola graças aos conhecimentos de Osmar em engenharia elétrica e ainda nos anos quarenta desfilaram tocando o estranhíssimo novo instrumento em cima de um automóvel, o hoje histórico Ford apelidado de Fobica. Na época ele era chamado apenas de “pau elétrico”, o que justificava a eletricidade no novo formato. A dupla, que originalmente era um trio (ainda formado por Temístocles Aragão, que saiu no ano seguinte – daí a segunda parte do nome), foi a primeira banda a se apresentar no carnaval sobre um carro, arrastando multidões já naquele carnaval histórico de 1951.

A guitarra baiana ganhou esse nome nos anos seguintes e tinha um papel central naqueles primeiros carnavais – ela cantava a melodia das canções, papel que nos blocos de frevo pernambucanos ficava com o naipe de metais. O som estridente da guitarra, ao ser eletrificado, podia ser ouvido a quilômetros de distância, atraindo primeiro curiosos e depois todos os foliões, e aos poucos consolidando o carnaval da primeira capital do Brasil como um dos mais peculiares – e, posteriormente, populares – do Brasil.

Ao mesmo tempo, na Jamaica, uma nova cultura começava a se desenvolver. Músicos e cantores da ilha caribenha, inspirados pelo início da música pop nos anos 50, começaram a fazer suas versões para a soul music que vinha dos Estados Unidos, fundido-a com suas tradições africanas e latinas, presentes ali há séculos. Essa mistura deu origens a gêneros musicais novíssimos, como ska e o rocksteady e aos poucos o mento jamaicano, eletrificado, deu origem ao reggae. Em comum com a cultura baiana havia não apenas a massiva quantidade gerações de herdeiros de africanos expatriados mas também o fato de ter sua cultura musical difundida através de enormes sistemas de som que disputavam a audiência do público.

Os soundsystem eram versões jamaicanas dos trios elétricos e podiam ou não ser montados sobre veículos, mas, como os trios baianos, ostentavas amplificadores e caixas de som para chamar atenção do público transeunte. Os soundsystem faziam as vezes de emissoras de rádio e festas ambulantes, se tornando plataformas para o lançamento de novos artistas. A diferena crucial entre a experiência jamaicana e a baiana da cultura de rua elétrica dizia a respeito da voz e dos instrumentos musicais. Enquanto na Bahia o trio era formado por uma banda instrumental sem nenhum cantor, os soundsystems jamaicanos não tinham banda e apenas tocavam discos de vinil, mas sempre possuíam um vocalista (ou toaster, no linguajar local) que apresentava as músicas, falava por sobre bases instrumentais, fazia propaganda do próprio sistema de som e eventualmente cantava. Não por acaso os soundsystems jamaicanos são considerados precursores do hip hop, criando as figuras do DJ e do MC bem antes das gangues da periferia de Nova York cairem no som.

Em Salvador, no entanto, na mesma época em que o hip hop começava a acontecer nos guetos de Nova York, uma outra transformação acontecia: o guitarrista Armandinho, filho de Osmar, e um verdadeiro guitar hero da guitarra baiana, resolve levar a estética do rock para o trio elétrico e chama sua banda, os Novos Baianos, para subir sobre o carro de som no 25° aniversário da dupla Dodô e Osmar, no carnaval de 1975. Foi ali que, pela primeira vez, ouviu-se uma voz vindo de um trio – era Moraes Moreira cantando a importância dos pioneiros que homenageava. No ano seguinte, os Novos Baianos saíram com seu próprio trio elétrico e Baby Consuelo foi a primeira voz feminina a puxar um trio elétrico em Salvador. Os trios deixavam de ser instrumentais e começava uma mudança crucial na história do carnaval baiano que culminaria com a consagração nacional e internacional da axé music, quase vinte anos depois.

O BaianaSystem, desde seu nome, guarda as características destas duas tradições – os soundsystems e a guitarra baiana – e conclama pela retomada da rua como velho palco. Ele vai de encontro à indústria da axé music, que pasteurizou diferentes gêneros locais (do samba reggae ao pagode baiano) para criar um modelo de negócios que transformava Salvador em uma ilha da fantasia, ao separar os foliões de rua daqueles que compraram o abadá para pular nos camarotes ou na segurança da corda. O trio do Baiana é avesso à concepção da corda e é aberto a todos – e a cada carnaval aumenta sua audiência à medida em que a indústria do axé patina em um formato datado.

O carnaval de 2016 já mostrou que o grupo dominou Salvador. Agora em março lançam seu segundo disco, ainda sem nome, produzido por Daniel “Ganjaman” Takara. E vão começar aos poucos dominar o Brasil.

Imagina no carnaval de 2017…