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Precisamos conversar sobre True Detective

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A nova série da HBO, True Detective, caminha para se tornar um dos principais acontecimentos culturais de 2014 – e desde que eu comentei seus quatro primeiros episódios, muita água já rolou por baixo da ponte: as teorias, referências e coincidências que surgem na série vêm sendo dissecadas à exaustão, dando origem a leituras paralelas que parecem ampliar ainda mais o alcance de uma série que só tem dois episódios antes do fim. Estou reunindo essas informações num texto que publico até o fim de semana. Enquanto isso, fiquem com uma versão da abertura da série feita com gatos (dica da Érika, valeu!), o que prova que o seriado já entrou no imaginário coletivo de vez:

Por que True Detective é a melhor série de 2014 até agora

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Se você não está vendo True Detective, a nova série da HBO que estreou no início do ano, pare o que está fazendo e corra para tentar acompanhá-la. A série, cuja primeira temporada conta com apenas oito episódios, está exatamente na metade de sua história e seus primeiros quatro capítulos foram fodas o suficiente para deixar o nível de expectativa altíssimo. História, elenco, direção, fotografia, trilha sonora – tudo contribui para tornar o clima denso e surreal. E desde o primeiro episódio sabemos que não estamos assistindo a uma série policial qualquer.

Acompanhamos dois momentos na vida de dois investigadores – Rustin “Rust” Cohle e Martin Hart (interpretados respectivamente por Matthew McConaughey e Woody Harrelson). Os dois seguem um padrão manjado de qualquer série policial – dois detetives que acabaram de começar a atuar como uma dupla, dois extremos opostos que têm de aprender a conviver com as excentricidades alheias para concluir uma investigação. Durante toda a série assistimos aos dois começando a puxar o fio da meada de um crime bizarro acontecido em 1995 e retomando-o através da memória em uma série de depoimentos dados em 2012.

Rust e Marty são parceiros improváveis. O policial vivido por Harrelson é conservador e tradicional, pai de família, religioso e correto, enquanto o de McConaughey é pragmático e pessimista, um solitário que saiu cético e desolado de um casamento destruído por uma tragédia familiar. Mas na medida em que os acompanhamos pela série vemos que essa dualidade não é tão maniqueísta assim. Por trás da fachada de bom moço de Marty, descobrimos um adulto infantilizado, irracional, emotivo e com surtos de agressividade. Enquanto Rust, um profeta niilista que demole qualquer esperança com um ponto de vista frio e racional demais, aos poucos mostra que é mais do que simplesmente um psicótico em trajes policiais.

O personagem de McConaughey é um dos principais pilares temáticos da série. Sua filosofia de vida considera a consciência humana um acaso da evolução e todo o sentido da vida torna-se um mero auto-engano para que possamos suportá-la. A cada fala de Rust, os parâmetros em que nos seguramos emocionalmente para garantir nossa sanidade mental são um a um destruídos: religião, família, relacionamentos, sentimentos e até a própria noção da morte. Rust afunda-se num existencialismo inevitável e denso, atraindo uma carga psicológica desagradável que infesta todo o seriado. O personagem ganha uma profundidade ainda maior pelo fato de ser interpretado por McConaughey neste exato momento de sua virada de carreira (assista a Killer Joe, Dallas Buyers Club e à sua ponta em O Lobo de Wall Street e perceba que ele deixou de ser o galã de comédia romântica que estávamos habituados a assistir). Woody Harrelson também não deixa por menos em um personagem avesso à caricatura do doidão que sempre acompanhou a biografia do ator. Seu Marty é um ser humano incompleto, instável e emotivo, que, aos poucos, começa a deixar sua máscara cair.

Os dois investigam um assassinato de uma garota, Dora Lange, encontrada morta nua no meio de uma fazenda, vítima do que parece ser um estranho ritual – chifres fincados em sua cabeça como uma coroa, corpo cheio de inscrições misteriosas. Rust, de cara, suspeita que aquele crime não é um simples assassinato, mas mais um dentro de uma série de mortes bizarras e começa uma investigação pessoal em torno dessa possibilidade, descobrindo pistas que tornam, pouco a pouco, o crime cada vez mais complexo e estranho.

Corta para 2012 e os dois investigadores estão sendo interrogados sobre o crime de 1995. Marty, já careca, de terno e gravata, trabalha com segurança particular. Rust, de cabelos compridos e bigode, rosto magro e olhar ainda mais perturbado, parece ter abandonado a polícia de acordo com sua lógica hiperrealista. Mas não sabemos muito sobre o que acontece em 2012. Por que eles estão dando aqueles depoimentos? Aparentemente, há um novo crime que parece ter ligação com aquele anterior, mas poucas pistas nos são dadas. Não sabemos por que os depoimentos são tomados em separado nem o porquê de uma possível ruptura entre os antigos parceiros.

Suas camadas de entendimento vão para além das falas existencialistas de Rust ou das paisagens desoladas de Louisiana e mexem com temas mais pesados, ainda que não tenha se aprofundado neles. A série tirou seu título da mais clássica publicação pulp policial dos Estados Unidos nos anos 20 e faz referência, em diferentes trechos, à coleção de contos The King In Yellow, escrita por Robert W. Chambers, em 1895, e que serviu de inspiração para autores como Raymond Chandler, Robert Heinlein, Neil Gaiman e, principalmente, H.P. Lovecraft. Os contos deste livro fazem referência a uma peça chamada The King In Yellow, que fala sobre uma cidade chamada Carcosa governada por uma entidade maligna chamada Hastur, o rei amarelo. Não sabemos de mais nada sobre essa peça além disso (e que os nomes Carcosa e Hastur apareceram primeiro nos trabalhos de Ambrose Bierce, autor do Dicionário do Diabo, que desapareceu durante a guerra entre México e Estados Unidos, no início do século passado) e sobre sua influência em seus leitores – os personagens do livro de Chambers que leem The King in Yellow simplesmente enlouquecem. As palavras “carcosa” e “Yellow king” aparecem em um diário encontrado em dado momento em True Detective, mas a citação não foi além disso.

Talvez seja apenas a dica inicial de que não estamos, de forma alguma, assistindo a uma série policial. A investigação da morte de Dora Lange pode ser só o ponto de partida para algo maior e mais bizarro, talvez sobrenatural. Afinal o pessimismo filosófico de Rust também pode ser entendido como a tétrica constatação que permeia toda a obra de H.P. Lovecraft – de que somos cobaias na mão de um deus perverso e que a humanidade apenas nasceu para sentir dor e desespero. O programa também faz citações a outro clássico da desesperança, Apocalypse Now de Francis Ford Coppola, quando somos apresentados ao vilão da série no final do terceiro episódio (que cita nominalmente o Vietnã) e quando Rust parte, num bote movido por hélice, rumo ao desconhecido, perto da espetacular sequência final do quarto episódio. Há uma caça a um coronel Kurtz em andamento e é claro que ele já viu “o horror”. A inspiração de Coppola, o livro Coração das Trevas, de Joseph Conrad, aprofunda as comparações com o niilismo de Rust, que também encontra eco em outro clássico da literatura, Crime e Castigo, de Dostoiévski.

Escrita apenas pelo criador da série – Nic Pizzolatto – e dirigida por apenas uma pessoa – Cary Joji Fukunaga, em seu primeiro trabalho na TV -, True Detective é um longo filme de oito horas, cuja ambientação dura e sufocante às vezes ganha ares de sonho ou alucinação. Sua segunda temporada contará outra história, com outro elenco e personagens. Esta que assistimos agora termina daqui a quatro capítulos e o quinto deles será exibido ainda hoje, nos EUA (e retransmitido pela HBO brasileira na meianoite do domingo para a segunda).

Sexo, drogas, violência e rock lúgubre e pesado (com toques de country music, cortesia de T Bone Burnett, que já tocou colocou Captain Beefheart, Lucinda Williams, Black Angels e Grinderman pra tocar no programa) dão a tônica de um seriado ímpar, que já é a melhor coisa na televisão em 2014 e tem tudo para se tornar uma forte referência para a TV do futuro, implodindo ainda mais os limites entre cinema e televisão. Só a cena final do quarto episódio – um take de seis minutos de tirar o fôlego até de Alfonso Cuarón – já mostra que estamos assistindo a um outro nível de série. Acompanhe enquanto é tempo, pois cada episódio pede para ver e ser revisto ao menos duas vezes. E descubra que não é preciso cogitar duelos entre casas reais de um passado fictício ou a tensão zumbi de um futuro apocalíptico para trazer o horror para a televisão – ele pode estar à espreita, na esquina.