Quando começou a pensar em fazer a primeira temporada de True Detective, o escritor Nic Pizzolatto passou algumas horas vasculhando o resultado das buscas pelas palavras “satanism”, “preschool” e “Louisiana” para ajudar a compor a história central do grande acontecimento de 2014 que foi a série. A equipe da Vice norte-americana também fuçou os resultados dessas buscas e encontrou uma história ainda mais escabrosa do que a inventada por Pizzolatto, contada no minidocumentário abaixo.
E aos poucos começa-se a se desenhar como vai ser a segunda temporada de True Detective – o primeiro nome a ser anunciado foi o de Colin Farrell, depois veio o de Vince Vaughn e agora parece que Keira Knightley irá se juntar ao elenco… Isso sem contar a possibilidade da direção ser do mestre William Friedkin. Pelo visto, essa temporada promete (apesar do chefão da HBO ter dito, em agosto, que o tom da nova safra não deve ser pesado quanto a impressionante prinmeira leva de episódios).
Enquanto estamos esperando pela definição do novo elenco de True Detective, eis que surge uma novidade inesperada no horizonte: um novo diretor – e ninguém menos que William Friedkin! Ou pelo menos foi isso que o mestre que já nos deu O Exorcista, Operação França e Comboio do Medo em entrevista ao blog The Playlist, do site IndieWire:
“Estou considerando a possibilidade. Gosto muito desse autor (Nic Pizzolato). Encontrei com ele, ele é o cara pelo que eu pude perceber. Mas essa nova temporada é completamente diferente, por isso não fechei ainda – a nova temporada não tem nada a ver com a última. Com a exceção dele e de sua sensibilidade, que acho extraordinária. (…) Eu… não posso falar muito por enquanto. Mas eu sou fã do texto dele, mesmo que não seja uma continuação do que foi feito antes com McConaughey e Woody Harrelson. Então o que posso dizer é que sou muito fã do texto dele. Encontrei com ele, gosto dele e gosto do rumo que isso está tomando.”
E antes que você venha com a velha ladainha que o Friedkin perdeu a mão faz tempo, não é mais o mesmo, etc., sugiro que você dê uma olhada no filme mais recente dele, Killer Joe, que só não é o começo dessa nova fase do McConaughey porque pouco antes ele fez um filme com o Richard Linklater (o aparentemente inofensivo Bernie), em que ele já saía do estereótipo de sub-Brad Pitt rumo ao sul dos Estados Unidos. Mas é em Killer Joe que o Friedkin conseguiu fazer que ele soltasse seus bichos…
Adorei o final da saga de Marty e Rust, simples e pensativo como sempre nos provocou a natureza da série. True Detective fechou sua complexa e pesada jornada com as mesmas mãos densas e poéticas que Nic Pizzolato (o autor) e Cary Joji Fukunaga (o diretor) usaram para nos puxar para dentro dela. Ainda estou batendo idéias e só vou escrever depois de reassistir ao episódio nas próximas horas, mas já começo a reunir neste post, abaixo, algumas das referências, citações e impressões relacionadas a este “Form and Void” que colocou a primeira temporada da série no panteão dos melhores programas de TV deste século (o que não é pouco). Por isso, só continue lendo se já tiver visto toda a série, pois lá vêm os spoilers:
Estamos às vésperas de uma conclusão épica de True Detective, que termina hoje sua primeira temporada. A série estrelada por Matthew McConaughey e Woody Harrelson chega ao final de seu primeiro capítulo já anunciando que o segundo terá outra história, outros protagonistas, outros atores. Só o fato de zerar sua própria história a cada nova temporada permite que a série crie outra forma de lidar com suas histórias. True Detective é um tom, um gancho: histórias de detetive que fogem do comum. Como era a própria True Detective original, uma compilação de contos e casos policiais escritos por semianônimos (alguns deles, como Dashiell Hammett, tornaram-se clássicos no tema) publicados na aurora e primeira grande era do gênero policial, um dos principais gêneros do século 20. Assistiremos, portanto, nos próximos anos, pequenas histórias relacionadas a crimes e tentativas de resolvê-los.
E se o nível de envolvimento com o espectador for semelhante a esta primeira temporada, estamos diante de uma longa e importante série, que independe de personagens para continuar sendo importante – não precisamos ver Jack Bauer salvar os EUA pela milionésima vez nem cada detalhe da biografia de personagens densos e complexos em plena transformação (como as sagas de Tony Soprano, Walter White e Don Draper) nem a criação de ecossistemas ficcionais complexos (como os de Game of Thrones, Downton Abbey, The Wire e Battlestar Galactica). Tudo bem que não é a primeira série a cogitar esse formato (American Horror Story sobrevive porque nasceu assim), mas a forma como True Detective se apresentou foi determinante para atingir este patamar. Escrita por apenas uma pessoa (Nic Pizzolatto, não uma equipe liderada por ele) e dirigida por outra (Cary Joji Fukunaga), True Detective não é apenas uma história sobre um crime mal resolvido, mas fala sobre uma nova forma de consumir conteúdo audiovisual – ou o mais perto que a televisão chegou da literatura.
Ao se comprometer a contar uma história em oito capítulos divididos em oito semanas, o quarteto formado por Nic, Cary, Woody e Matthew nos conduziu em uma jornada contada em diferentes camadas. True Detective é sobre a investigação do assassinato de Dora Lange por dois detetives em 1995 e a volta do caso 17 anos depois, com depoimentos que aos poucos vão nos situando sobre quem são aqueles dois investigadores (Harrelson e McConaughey, em atuações brilhantes) e o que eles realmente fizeram no passado. Ao mesmo tempo, a série nos mostra uma série de relações, conexões e coincidências que criam uma mitologia ao redor de personagens recém-apresentados na série (muitos deles apenas um nome, um retrato, uma descrição) e a toda uma genealogia que interliga a história a cânones de literatura policial e de horror, permitindo a construção de uma mitologia em pouquíssimas semanas, viciando um público ávido por interligar dicas e buscar hiperlinks em qualquer palavra, qualquer olhar ou citação. O programa de TV também trata de uma atmosfera, uma tensão silenciosa que paira sobre rituais macabros, crimes inadmissíveis, perversões inconfessas, o Mal propriamente dito. Uma sensação de desconforto e curiosidade que torna True Detective tão irresistível quanto um vício. Junte isso a um texto que, ao mesmo tempo em que confronta a alma white trash americana a contrapõe a uma filosofia existencialista niilista, encarnada no personagem de McConaughey, Rusty Cohle.
True Detective não apenas a prova de que a conversa entre e TV e a internet é um fato – quem viveu buscando significado entre os sete primeiros episódios sempre terá uma sensação bem diferente em relação à série do que quem a assisti-la de uma vez só. Ela mostra que é possível ter sucesso – em diferentes níveis – apostando na inteligência. Sem mirar no entretenimento barato, a série prova que, em oito semanas, reputações sérias podem ser construídas, uma audiência criteriosa pode tornar-se fã instantaneamente e que é existe vida inteligente no público quando se aposta nele.
Tomara que o último episódio confirme isso.
O nível de fanatismo provocado pela série True Detective em meros sete episódios pode ser exemplificado pelo trabalho do designer Nigel Evan Dennis, We keep the Other Bad Men from the Door, criado a partir de detalhes – localizações geográficas, personagens, cenas e diálogos – sobre a série. As artes de Dennis (veja algumas abaixo) estão à venda no próprio site (e pra quem não se ligou, a imagem acima é o mapa da já clássica cena de seis minutos sem cortes do quarto episódio, assista-a final desse post).
Eu sei, eu sei, tou devendo o texto sobre o True Detective antes que a série acabe – e acaba nesse domingo num episódio chamado “Form and Void”. Mas o que vou escrever sobre a série diz muito mais sobre a forma que consumimos cultura do que propriamente sobre as (ótimas) teorias criadas ao redor da narrativa. Pois afinal, depois dessa do vídeo abaixo, o que mais precisa ser dito? Contém spoilers: