Trout Mask Replica – Captain Beefheart & His Magic Band

, por Alexandre Matias

Depois do fracasso no festival em Mount Tamalpais, em Los Angeles, tudo ia mal para Captain Beefheart & His Magic Band. Tocando pela última vez com Ry Cooder, o grupo enfrentava seu primeiro grande público, uma preparação para o festival de Monterey, que aconteceria em pouco tempo. Estamos em junho de 1967 e quando a banda entra no meio de “Electricity” e o vocalista Don Van Vliet é acometido de pânico de palco devido a uma viagem de ácido errada: o rosto de uma garota da platéia transformara-se num peixe e começava a soltar bolhas. Por algum motivo estranho, Don teve medo daquela visão bizarra e travou. Não conseguia mais cantar. Olhava pra cima, tentando desviar o olhar da menina, mas só conseguia inclinar-se para trás, andando vagarosamente de costas à medida que se afastava do microfone. Os outros músicos nada entenderam, mas continuaram tocando. Até que notaram pela ausência completa do vocalista. Deitado com as costas no chão atrás do palco, Vliet tremia com os olhos arregalados, sentindo um medo mortal. Depois deste incidente, o imaginário marítimo passa a fazer parte do universo das letras do Captain Beefheart. Depois deste incidente, Trout Mask Replica começou.

Todas as tentativas em transformar a Magic Band numa banda psicodélica que ao menos fosse sucesso de crítica sucumbiam na personalidade forte e controversa de Vliet, que gostava de fazer as coisas ao seu modo, fosse ele qual fosse. Depois do relativo sucesso do disco de estréia, Safe as Milk, a gravadora Buddah resolveu apostar no grupo e lhe deu orçamento para um disco duplo. It Comes to You in a Plain Brown Wrapper começou a ser ensaiado em 1967, mas logo os caras da gravadora perceberam que Don havia ido longe demais. Sua nova mania insistia que os músicos procurassem os limites da música e os ultrapassassem, uma diretriz provavelmente saída de suas viagens de ácido ouvindo discos de free jazz. A forma com que o vocalista conduzia os ensaios passou a irritar os músicos e o guitarrista Doug Moon foi o primeiro a sair, antes mesmo do disco ser lançado. Passaram a tesoura e transformaram-no no amorfo Strictly Personal, um disco abortado às pressas, sem os devidos cuidados finais. Chutados da Buddah, a banda viu-se sem dinheiro e sem perspectiva de carreira. Foi a vez do ex-baterista (e agora na guitarra) Alex Snouffer e do baixista Jerry Handley deixarem a Magic Band.

Os músicos que os substituíram eram devotos do trabalho de Don e seriam a base para o seu novo projeto musical. O baterista John French e o baixista Mark Boston tinham em Don uma espécie de modelo de artista, enquanto o guitarrista Bill Harkleroad havia acabado de sair de um culto de LSD (o único remanescente da antiga Magic Band era o guitarrista Jeff Cotton). Todos tinham a mesma idade, eram um pouco mais novos que Don, e se entendiam musicalmente muito bem. Uma química que iniciou-se entre French e Cotton (meros caçulas para Snouffer, Moon, Handley e Vliet) e se estendeu a Harkleroad e Boston à medida que eles entraram. Assim, Captain Beefheart passava a ter uma aura de líder, uma espécie de chefe comunitário que guiava, sem ter sua autoridade questionada, todo o grupo para um novo horizonte artístico.

Sem empresário nem gravadora, os cinco passavam por maus bocados. Mudaram-se todos para a mesma casa, em Woodland Hills, um subúrbio pacato e classe média de Los Angeles, que tornou-se o caldeirão de onde todas as idéias de Trout Mask Replica ebuliram. A única coisa que tinham a fazer da vida era tocar continuamente, para esquecer que estavam desempregados e sem dinheiro. De vez em quando alguém conseguia comida, que era distribuída de forma racionada e depois dos longos ensaios, para não acabar logo. O consumo de ácido, fácil de conseguir naqueles tempos pré-Woodstock, e a situação precária da banda fizeram com que eles se dedicassem praticamente de forma integral à música. Durante as noites, não era raro sumir um pedaço de pão ou uma parte da manteiga. “Eu cheguei a beber xarope de panqueca”, confessou French.

Diariamente, dedicavam-se a horas a fio tocando as músicas que Don cantava, assobiava ou tocava ao piano. Sem nenhum conhecimento técnico musical, ele imaginava as frases e pedia para que a banda tocasse, gravando os ensaios e empilhando as fitas num canto da casa, ouvindo-as procurando determinados trechos enquanto a banda se matava para encaixar diferentes frases em tempos e tons diferentes que cada instrumento tocava. “Não toco músicas, toco músicos”, gabaria-se mais tarde. Até que um dia o gravador quebrou. O baterista John French sugeriu que, em vez de gravar, eles deveriam escrever as partes musicais em partituras. Se oferecendo para transcrever todas as partes, o jovem e inocente baterista mal sabia a enrascada que estava se metendo.

Pois passaria a transcrever tudo que Beefheart tocava ao piano, além de escrever as partes de cada um dos instrumentos e ensiná-las a cada um dos músicos. Todo este trabalho transformava French no sujeito que mais trabalhava na banda, transcrevendo partituras por pelo menos quatro horas depois dos ensaios acabarem, quando todos já haviam ido dormir. Mas o colocou como peça-chave no processo de composição do álbum: era ele quem arranjava os delírios musicais de Van Vliet para o resto do conjunto.

Os ensaios que ajudaram a compor o disco eram tensos e caóticos. Cada um dos músicos tinha seus dias de sofrimento, quando Don o escolhia para ser crucificado em público, massacrando-o mentalmente até conseguir, graças à raiva injetada, performances terrivelmente apaixonadas. As brigas eram constantes e os ensaios normalmente tinham um intervalo de três horas em que a banda se engalfinhava entre si, todos paranóicos por culpa do excesso de ácido e pela falta de recursos. Usavam a música como terapia, mas eram constantes as crises de choro e as tempestades de emoção pelos corredores da casa na Estrada Drive. Cotton, French e Boston tentaram fugir várias vezes, descobertos em cima da hora por um intimidante Don. Boston escondeu suas roupas num buraco na calçada no fim da rua, para fugir enquanto dava uma escapada, mas foi impedido. French saiu da banda no meio de um ensaio, mas Don o obrigou a escrever todas as suas partes de bateria e percussão antes de deixar o grupo, durante quatro horas seguidas.

Foi quase um ano sob a pressão maníaca exercida pela personalidade de Don Van Vliet e pela obsessão em entrar naquele novo mundo musical. Pouquíssimas pessoas tinham contato com os músicos da banda e a convivência diária os tornou inimigos mortais porém inseparáveis, como piratas num mesmo navio. Entre os poucos que visitaram aquela casa, estava um primo de Vliet, Victor Hayden, que passou a fazer duetos de sax e clarineta com Don, sendo que nenhum dos dois tocava os instrumentos. Hayden foi incluído no grupo e se tornou o favorito de Beefheart, numa clara intenção de deixar os outros músicos enciumados. Outro visitante foi Doug Moon, que tocou uma guitarra base de blues sobre a qual Don improvisou China Pig (na versão que ouvimos no próprio disco). Ao serem perguntados por Don sobre o porquê eles não conseguiam tocar da mesma forma que Moon, um ácido Harkleroad respondeu pelo grupo: “Talvez porque estejamos há nove meses tocando por 12 horas por dia justamente o contrário disso”.

Mas nenhuma presença naquela casa foi tão decisiva quanto a de Frank Zappa. Foi ele quem viu e ouviu o que acontecia naquela casa e decidiu lançar um disco. Contratou a Magic Band em seu novo selo, Straight (“careta”), e deu-lhes carta branca para gravar um disco duplo, registrando todas as músicas que pudessem. Zappa se dispôs a gravar o grupo em casa, registrando, em vários cômodos, a banda tocando como se estivesse filmando um documentário e não produzindo um disco. Estas gravações podem ser ouvidas no terceiro disco da caixa Grow Fins. Mas Beefheart não achou que Frank estivesse produzindo um disco e queria ir para o estúdio. Em quatro horas, tinham todo material gravado. Tudo que se ouve em Trout Mask Replica foi gravado de uma só vez; a banda só fazia um segundo take se por acaso se perdia no meio do caminho. Mas estavam há tanto tempo ensaiando que não precisaram de muito tempo para gravar tudo. O mesmo aconteceu com Beefheart, que dispensou os fones de ouvido para cantar suas letras absurdas, que misturavam clichês de blues com alegorias nonsense inspiradas na poesia beat e em viagens de LSD, todas tirada de seu “saco de letras”, um saco de pano onde guardava guardanapos, pedaços de papel e papelões onde anotava trechos de letras e imagens surrealistas a todo momento. Seu vocal estava mais afiado que nunca, atingindo diferentes oitavas, com um timbre seco e rasgado.

Irritado por ser o único do grupo com um apelido esquisito (que fez o engenheiro de estúdio Dick Kunc o batizar de Beerfart – peido de cerveja), Don colocou um nome em cada um de seus músicos. Assim, Mark Boston tornou-se Rockette Morton; Harkleroad, Zoot Horn Rollo; French, Drumbo; Hayden, The Mascara Snake; e Cotton, Antennae Jimmy Semens, criando uma tradição que reservaria para cada um dos futuros membros da Magic Band. Tiraram as fotos do encarte no enorme quintal da casa em Woodland Hills. Vestidos de forma esdrúxula, pareciam ter assaltado um armário de uma produção de cinema: Don com uma cartola e um sobretudo de pelúcia, Bill usando um poncho e uma calça três números menor que o seu; Cotton de boné e vestido; Drumbo com um enorme boné e um óculos robótico; Boston era o mais comportado, com seu cabelo black power. Para a capa do disco, o fotógrafo Ed Caraeff sugeriu que Don usasse uma cabeça de peixe como a réplica de máscara de truta que sugeria o título. O que vemos na capa é Vliet segurando uma cabeça de carpa (e não de truta) na frente de seu rosto, numa sessão de fotos que durou duas horas e o deixou enjoado com o cheiro do peixe. A audição do disco aconteceu na casa de Zappa, que, em sua autobiografia, lembrou que a banda compareceu à sessão bem vestida, “como se fossem à missa”.

Desde a desconexa “Frownland”, que abre o disco, todas as faixas de Trout Mask Replica são o produto de horas infindáveis de ensaio em condições psicologicamente instáveis e um desejo único de transpor os limites conhecidos da música através do rock. O álbum atravessa por delírios a capella de Van Vliet (“The Dust Blows Forward ‘N The Dust Blows Back”, “Well”, “Orange Claw Hammer”), ataques iconoclastas (“Hobo Chang Ba”, “Neon Meate Dream of a Octafish”, “The Blimp”, “Old Fart at Play”, “Bills Corpse”, “Fallin’ Ditch”, “Steal Softly Thru Snow”), blues surrealistas (“Sugar ‘N Spikes”, “She’s Too Much for My Mirror”, “Moonlight on Vermont”, “Ant Man Bee”, “Dachau Blues”, “China Pig”), boogies tribais (“When Big Joan Sets Up”, “Pachuco Cadaver”, “My Human Gets Me Blues”, “Ella Guru”, “Sweet Sweet Bulbs”, “Hair Pie: Bake 2”), um dueto entre Beefheart e Mascara Snake (“Hair Pie: Bake 1”), desconstruções detalhadas (“Dali’s Car”, “Pena”, “Wild Life”, “Veteran’s Day Poppy”) e outras idiossincrasias. Jeff Cotton assumiu os vocais em duas faixas (“Pena” e “The Blimp”), sendo que esta última foi gravada por Zappa pelo telefone, quando Don ligou desesperado procurando Frank para capturar o momento exato. Zappa topou e gravou, enquanto Art Tripp e Roy Estrada (coincidentemente, dois futuros membros da Magic Band) ensaiavam o groove tenso da faixa Charles Ives, de Zappa. A versão que ouvimos no disco é exatamente o que foi gravado pelo telefone.

Observadas como um todo, as faixas do disco formam um conjunto da música mais desafiadora feita por uma banda de rock. Como o free jazz fez com o jazz e a música de vanguarda erudita fez com a música clássica, Trout Mask Replica mostrou ao rock que não existem limites quando o que está em jogo é a arte, a manifestação individual do espírito através da música. Propositadamente desconfortável, o disco atinge uma atmosfera mágica depois que entramos em sintonia com seu universo, provando que a beleza está no olho de quem vê – e no ouvido de quem ouve.

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