Trance quem puder

, por Alexandre Matias

Outra materinha pra Bizz, que saiu na edição do mês passado, sobre trance…

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Comunidade planetária

O trance é um dos gêneros mais populares do mundo e do Brasil, mesmo que você não saiba o que seja, não conheça seus principais nomes e finja que não está cercado por ele

Se você, como eu e um número cada vez maior de pessoas (discotecar é o passo mais recente do DIY, não sei se você já se ligou), já se arriscou a botar som em uma festa que não seja exclusivamente freqüentada por amigos e conhecidos, provavelmente já se foi interpelado pela versão DJ do pedido “Toca Raul” que até hoje assola – mesmo que ironicamente – shows de bandas de rock Brasil afora.

“Toca psy!”, pede, cada vez mais, uma multidão formada por dezenas de milhares de brasileiros siderados por um dos gêneros mais populares do país. Caracterizado pela repetição de ciclos sintetizados derivada de uma fusão improvável entre um ambient mais experimental e uma house menos afetada e mais acelerada, o trance e sua versão mais populista, o psy-trance, movimentam cada vez mais gente não só no Brasil, mas no mundo todo.

O trance talvez seja um dos primeiros gêneros de música eletrônica pós-acid house a pisar em solo nacional. “As primeiras festas rolaram na Bahia e eram feitas por gringos que vinham passar o verão aqui em 93, 94”, conta Rafael Dahan, DJ residente e um dos organizadores de uma das maiores raves do Brasil, a Tribe. “Eu ainda destaco as atividades da Daime Tribe, como o festival Celebra Brasil no ano 2000, os festivais Trancendance em Alto Paraíso (Goiás) e os festivais Solaris de 2003 e 2005. Eles foram divisores de águas na cena e marcaram momentos de profissionalização e de desenvolvimento do gênero no Brasil”.

Além da Tribe, que recebe mais de 60 mil pessoas por ano em suas festas (em São Paulo, os eventos chegam até a 12 mil pagantes), outra festa tradicional é a XXXperience, liderada por um dos pioneiros do gênero no Brasil, o DJ Rica Amaral, que a fundou há dez anos, e que deve fechar 2006 com um público geral de 150 mil pessoas, que pagam entre 30 e 70 reais para passar horas e horas dançando sem parar. Isso sem que seja preciso trazer nomes conhecidos do público leigo ou fazer publicidade nos meios tradicionais, como guias de programação noturna, revistas ou cartazes pela cidade. Suas principais ferramentas de promoção são flyers, a internet e o boca-a-boca.

Mas ao contrário do que pode parecer, o trance não é um gênero esnobe e cultista onde termos em inglês como “cool”, “hype” e “fashion” pululam como onomatopéias do velho seriado do Batman. Aliás, o estilo musical está distante das colunas sociais dos (de)formadores de opinião noturna do país, onde é visto como um universo completamente à parte, às vezes cafona, às vezes ripongo. Altamente populista, o trance musical não é elitista e prega a tolerância e o espírito gregário, o que fez os cenários de suas festas aos poucos abandonarem galpões e clubinhos para ganhar parques, praias e serras Brasil afora – e seu público ser rotulado, rasteiramente, em uma personalidade eqüidistante entre as caricaturas do hippie e do playboy. O “trancêro” é visto de forma generalizada como um filhinho-de-papai que gosta de se embrenhar no mato, um maconheiro elite branca. Mas isso é tão correto quanto relativizar que quem gosta de rap é maloqueiro, que só dá pra ouvir música eletrônica tomando ecstasy ou quem gosta de Smiths é, no fundo, gay. Em uma palavra: burrice.

O trance está tão presente na sua vida quanto a axé music ou o hip hop – você pode até não gostar e fingir que isso não faz parte da sua rotina, mas com certeza conhece alguns bons amigos, parentes ou colegas de trabalho adeptos desta tribo enorme, que, além de migrar em massa para a Chapada dos Veadeiros (onde acontece a megarave Trancendance) ou para o sul da Bahia (onde Trancoso, há anos, já ganhou o apelido de “Trançoso” e raves como a Universo Paralello, que acontece na praia de Pratigi, em Ituberá, dão a tônica da região), ainda atrai estrangeiros da cena mundial para o Brasil.

Outro motivo para o trance parecer ausente do dia-a-dia dos que estão fora da comunidade é a inexistência de nomes de apelo popular e a dificuldade em se trabalhar comercialmente, para o grande público, um gênero musical que quase não tem vocais e cuja sonoridade é agressiva e repetitiva. Mas o gênero, que é musicalmente tão complexo, rudimentar e ruidoso quanto vertentes extremas do hardcore ou do heavy metal, aos poucos começa a ganhar os holofotes e DJs diretamente ligados ao gênero, como Tiesto, Infected Mushroom e Skazi freqüentam a lista de melhores do mundo da revista DJ Mag, a mais respeitada e celebrada votação eletrônica entre as publicações impressas.

“As pessoas geralmente nao entendem a construção da música, dizem que é muito barulhenta”, explica o DJ Feio, parceiro de Rica na XXXperience, “eu concordo, mas elas não sabem que dá um trabalho pra fazer um bom barulho”. “Pra mim, quem fala mal de trance é porque não conhece a fundo”, emenda Du Serena, também da Tribe, concluindo no espírito tolerante da nova tribo, “porém, gosto é gosto”.

Do Pink Floyd ao new trance

Embora seja possível traçar a origem do gênero em algum lugar entre “On the Run” do disco Dark Side of the Moon do Pink Floyd e o experimentalista alemão Klaus Schulze (trilheiro de filmes como “Síndrome de Andrômeda” e “Duna”, que, nos anos 80, lançou discos chamados Trancefer, de 1981, e En=Trance, de 1988), o trance começa como uma variante da acid house que, após um período de popularidade no final dos anos 80 (graças a hits da dupla de gênios-picaretas KLF, que juntou os elementos básicos do gênero), migrou para Frankfurt, na Alemanha, onde realmente nasceu como o conhecemos hoje.

O trance utiliza da repetição de oscilações musicais na mesma levada do techno ou da house, só que com uma velocidade de batidas por minuto muito mais alta. Aos poucos, e com a entrada do psy como sua vertente ainda mais popular, o gênero assume o posto que um dia foi do breakcore, do grime, do gabba e do jungle – música eletrônica para dançar extremamente barulhenta, usando os ruídos sintéticos no limite da tolerância auditiva repetidamente, criando o tal estado de transe que o batiza. A diferença básica entre os gêneros anteriores e o trance vem do fato deste não ser fruto de uma cultura de rua com referências de música negra, como os rótulos citados anteriormente. Sem batidas quebradas e com suíngue marcial, o trance é fruto específico do senso rítmico germânico. E a Love Parade em Berlim, evento que reúne um milhão de pessoas, cuja trilha sonora regula principalmente ao redor do trance, é o mais próximo de um carnaval brasileiro que pode acontecer em terras alemãs.

Mas o trance ainda é um gênero em formação e seus pioneiros estão atingindo a maturidade musical agora, justamente no momento em que os adeptos se reproduzem aos milhares. Junto com esta boa maré, surge mais uma “renovação” genérica do estilo que, diferente de suas vertentes populares, desperta o interesse cult que movimenta parte da música eletrônica para dançar. O new trance usa características e timbres do trance, mas sua cadência é mais lenta e sua estética, minimal, sem os excessos da cena mais roots. “É o antigo eurotrance repaginado e mais popularizado”, explica o DJ Feio, citando nomes do novo braço da comunidade planetária: Air Hustlers, Perry O’Neil, Cosmix One, Super 8 & DJ Tab e Hiver & Hammer.

Conhece? Nem eu. Ainda.