A capa da Galileu deste mês já havia sido pautada bem antes do clima de paranóia e tensão invadir as ruas das capitais brasileiras – convidei o Carlos Orsi para escreve-la ainda em maio. Além da capa sobre conspirações, a revista ainda traz um dossiê escrito por Salvador Nogueira sobre as dificuldades que a pesquisa científica encontra no Brasil, uma matéria do Tiago Cordeiro sobre desmanches de navios no Oceano Índico, um panorama sobre o uso de armas de fogo – e suas conseqüências – pelo Brasil, uma entrevista que o Tiago Mali fez com o Louis Ignarro, vencedor do Nobel que hoje é garoto-propaganda da Herbalife, a incursão de Rafael Tonon pelo mundo da microbiologia na cozinha e como chefs estão usando cada vez mais o microscópio em busca do ponto de putrefação perfeito, a trágica e estranha decadência de John McAfee – que de programador prodígio e criador de um dos antivírus mais populares do mundo, tornou-se obcecado com remédios para performance sexual, foragido da polícia e acusado de assassinato na América Central -, cidades ocidentais clonadas na China, por que congelar óvulos, confecções brasileiras e trabalho escravo, o novo filme do Cavaleiro Solitário e games que nivelam a dificuldade para facilitar a socialização. Mas não podia fugir ao assunto da capa em minha Carta ao Leitor, que reproduzo abaixo.
PARANOIA É PRECAUÇÃO: O autor norte-americano Philip K. Dick consagrou-se ao criar personagens que vivem em alerta
Em uma entrevista dada em 1974, um dos meus escritores prediletos, Philip K. Dick, explicou o motivo de suas obras serem sempre cercadas de uma sensação de que algo vem sendo orquestrado por baixo dos panos, longe de nossas atenções. Dizia ele que “a paranoia é um desenvolvimento moderno de uma sensação antiga, arcaica, que os animais ainda possuem, um sentimento permanente que tínhamos há muito tempo, quando éramos — nossos ancestrais — muito vuneráveis a predadores”, explicando que seus personagens “vivem como estes novos ancestrais. Quer dizer, o equipamento é do futuro, o cenário é o futuro, mas as situações, na verdade, são do passado”.
Como toda boa ficção científica, a obra de Philip K. Dick não era sobre ETs, robôs, planetas remotos, tecnologias fictícias ou futuros distantes, embora estes elementos fizessem parte da maioria de seus livros. Sua bibliografia reflete medos e paranoias de quem viveu a caça às bruxas dos anos McCarthy, a paranoia nuclear da Guerra Fria e a ascensão do estado frio e terceirizado das gestões Reagan-Thatcher. Morreu em 1982, o mesmo ano em que uma de suas obras (Blade Runner) virou filme pela primeira vez, e foi pelo cinema que ele ganhou popularidade, já que sua reputação nos livros não era suficiente para pagar as contas. Por mais que o reconhecimento tivesse sido tardio, ele veio para encaixar K. Dick no panteão dos grandes autores do século passado, que inclui outros nomes (como Don DeLillo e Thomas Pynchon) que também lidavam com esta mesma sensação estranha que é um dos principais traços da nossa época.
Teorias da conspiração, portanto, funcionam como um alerta para um instinto primitivo e também fazem parte do tecido cultural dos séculos 20 e 21. Gosto de acompanhá-las com curiosidade, como sistemas de constante alerta, mas ao pautarmos este assunto para a capa de GALILEU tivemos a preocupação de analisar seu impacto sobre a sociedade — que não é nada curioso e tende a ser mais maléfico que construtivo, como mostra o jornalista Carlos Orsi, convidado para dissecar esta pauta.
Orsi, que trabalha na Unicamp, é um dos jornalistas que cobrem ciência que mais acompanho o trabalho e acaba de lançar um livro que, como nossa capa, também se presta a desvendar histórias mal contadas — só que seu Pura Picaretagem (Leya, coescrito com Daniel Bezerra) ataca a forma como a física quântica é usada superficialmente pelo mercado de livros de autoajuda. O que quer dizer que ele está bem escolado neste tema. Vamos lá!
Alexandre Matias
Diretor de Redação
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