Há décadas, uma promissora banda paulistana se reunia com um produtor gaúcho novato para registrar seu primeiro LP, mas, depois de gravado e mixado, aquelas fitas originais não foram lançadas e desapareceram logo em seguida, fazendo com que o disco fosse dado como perdido por muito tempo. Até que vasculhando o baú do saudoso @minimundomini, Sob o Sol Que Nunca Morre foi reencontrado e finalmente vê a luz do dia trinta e três anos após sua gravação. E os 3 Hombres remanescentes, Daniel Benevides, Jair Marcos e Thomas Pappon, se reúnem pela primeira vez em décadas nesta terça-feira no Centro da Terra, a partir das 20h, para celebrar as músicas deste disco, que está sendo lançado pela primeira em vinil, e os vinte anos da passagem de um de seus integrantes original, o lendário Celso “Minho K” Pucci. A noite promete! Os ingressos podem ser comprados aqui.
Na edição desta semana do meu programa sobre música brasileira, converso com um dos pilares do pós-punk paulistano, o multiinstrumentista Thomas Pappon que, a partir da Inglaterra, onde mora há mais de duas décadas, voltar no tempo e lembrar suas histórias com bandas clássicas como Voluntários da Pátria, Smack, Fellini, 3 Hombres e The Gilbertos, também falando sobre sua carreira paralela como jornalista e como ela acabou moldando parte de seus rumos musicais. E ele ainda traz notícias sobre duas de suas antigas bandas, que lançarão novidades em 2022.
Outro dia, Thomas Pappon lembrou em sua página no Facebook sobre a primeira vinda de Nick Cave para o Brasil, no final dos anos 80:
“Um belo dia, tipo no final de 1988, soubemos que Nick Cave & The Bad Seeds viriam, pela primeira vez, ao Brasil. Eu trabalhava na ‘gravadora deles’ no país, a Stiletto, tinha escrito os press-releases dos dois discos lançados ali (Kicking Against the Pricks e Tender Prey) e falava bem inglês. Logo, fui dos primeiros a conhecê-los, num hotel no Rio de Janeiro; conduzi a primeira coletiva, nesse hotel. Lembro que fiz um erro de tradução: o título do romance de estreia do Cave, ‘And the Ass Saw the Angel’, traduzi como ‘E a Bunda viu o Anjo’. Gênio! Mas, no dia seguinte, tomando caipirinha na Barra da Tijuca, onde os Bad Seeds finalmente puderam entrar no mar (levados pelo querido Jose Roberto Mahr), o Blixa Bargeld (guitarrista alemão, líder dos Einstuerzende Neubauten) gentilmente me corrigiu: É ‘E o Burro Viu o Anjo’, uma citação bíblica. Valeu, Blixa. Foi mal.
Eles fizeram dois shows: em 12/04/1989 no Scala (Rio), e em 15/04 no Projeto SP (São Paulo). E hoje, tive a dupla surpresa de ver que o show em SP foi filmado, e que foi bom mesmo, como eu lembrava. PS: Cheguei em cima do show, vindo de BH, onde fui visitar minha namorada. Quando o empresário deles, o Rayner, me viu, disse: ‘Pô, onde você estava? Tentamos te achar. Queríamos que tua banda (o Fellini) abrisse o show!'”
E tá aí o show que Thomas comentou, em toda sua glória em baixa resolução no YouTube, tirado de um VHS que gravou o programa que cobriu o show na época para a TV aberta (pois é…):
“From Her To Eternity”
“Deanna”
“City Of Refuge”
“The Mercy Seat”
“500 Miles”
“Jack’s Shadow”
“Sugar Sugar Sugar”
“Black Betty”
“Train-Long Suffering”
“Muddy Waters”
“Saint Huck”
“New Morning”
Neste show, Cave conheceu Viviane Carneiro, sua futura namorada e mãe de seu filho brasileiro Luke, e passou a morar em São Paulo, até 1993 (a foto na Mercearia, que ilustra o post, foi pinçada de um especial que o UOL fez sobre esta temporada paulistana do cantor).
Ambos no hemifério norte, cada qual em um continente, Cadão Volpato e Thomas Pappon criam seu primeiro projeto conjunto pós-Fellini, batizado apenas com seus sobrenomes. Volpato & Pappon começou há cinco anos com Thomas, que já está em Londres há quase três décadas, brincando com samples e os dividindo com Cadão, que ainda morava em São Paulo, num processo parecido com o do disco mais recente do Fellini, Amanhã é Tarde, de 2002. De lá para cá, compuseram cinco canções e nesse meio tempo, Cadão mudou-se para Nova York, tornando a dupla central do clássico grupo indie paulistano ausente de seu país no momento mais bizarro de sua história. E é assim, exilados do Brasil, que lançam, nas plataformas digitais, seu primeiro EP, batizado ironicamente com o título de uma das faixas, “Eles Ressuscitarão”. Bati um papo com os dois por email sobre este novo projeto.
Como este Volpato & Pappon começou?
Cadão – Acho que foi em 2015. A ideia do Thomas era fazer algo diferente do Fellini, mais experimental.
Thomas – Há 4 anos, voltei a fazer música aqui em casa, em Londres, comecei a brincar com um sample do Quarteto em Cy. Achei que podia servir para algo tipo Fellini, e o Cadão topou fazer letra e voz. Ele estava em Sao Paulo. Mandei a música, ele fez a letra, gravou a voz num iPhone ouvindo a música no fone de ouvido, e me mandou a voz. Eu mixei, acrescentei umas coisas.
Cadão – Começamos com… “Dinheiro” – claro, tudo foi sempre uma mera questão de…. Ele me mandou a música, eu fiz a letra e gravei no celular. Mandei de volta e ele fez o trabalho todo. Simples assim.
Thomas – Fizemos quatro canções em quatro anos. Nesse ano, achei que estava na hora de lançar isso de algum jeito, e que, para um EP, precisávamos de mais uma música.
Cadão – Lembro que a sensação foi sempre mais ou menos a mesma ao receber as músicas ao longo dos anos – a última, “Tudo tem seu tempo”, chegou aqui em Nova York em maio de 2019, e foi a que mais demorou para sair – e é a de que gosto mais no momento -: espanto. O Thomas sempre me surpreende.
Thomas – Insisti com o Cadão, que nesse meio tempo se mudara para Nova York, para retomar uma musica que a gente havia abandonado. Assim, rolou ‘Tudo Tem Seu Tempo’. Et voilà.
Cadão – Acho que os arranjos que ele fez para as cinco músicas são notáveis, estão em outro patamar da evolução de um talento que sempre admirei muito. E ele também sabe ser engraçado e devotado à ideia, toques naturais do Fellini.
A composição remota inspirou a criação?
Thomas – Acho que sim. O ‘Amanhã é Tarde’ foi criado assim, funcionou bem. A diferença é que, naquela vez, o Cadão veio a Londres pra gravar as vozes aqui em casa. Dessa vez foi tudo remoto.
Cadão – Não a distância, mas a composição em si. Porque sempre foi assim: a música primeiro, depois a letra. A música dita o que ela quer – e às vezes ela é uma tirana. O importante é que o barato de compor em dupla continua intacto.
O fato de vocês serem brasileiros exilados deste Brasil do final dos anos 10 influenciou no projeto?
Thomas – Difícil ser categórico nessa resposta. Será que a distância influencia? No caso do Cadão, o ‘exílio’ foi recente. Eu estou há 28 anos fora do Brasil, mas tenho fortes laços emocionais e culturais com o país. E em música, tudo o que faço é pensado como MPB. É onde enquadro Fellini, The Gilbertos e Pappon & Volpato. Por outro lado, sim, os dois ouvem bandas e artistas de fora. O Cadão curte Patti Smith, Bob Dylan, adora os poetas beat – deve ter sido uma das razões para curtir a ideia de morar em Nova York. E tudo isso tá no EP.
Cadão – Bom, eu estou em Nova York há dez meses, o Thomas já perdeu a conta do tempo em que está na Europa. Mas para mim o tempo tem passado como um jato – “O tempo envelhece depressa”, segundo o Antonio Tabucchi. Minha impressão é de estar longe há anos. Então, acho que “exílio” pode ser um definidor, porque muita coisa ficou para trás, incluindo um país. Note que uma das músicas já fala de Nova York. Outra (“Dinheiro”), parece não ter um país. Outra (“Eles Ressuscitarão”), recorda velhos verões. Outra diz: “Eu sempre estive longe”. E assim por diante. Tudo é muito sincero, podes crer.
Há planos de fazer shows?
Cadão – Não me parece que eles ressuscitarão. No entanto, quem sabe o cara não vem a Nova York e a gente arruma alguma coisa aqui, na raça, como fizemos em 1990 – e como está na música “Nova York 90”? Amanhã nunca se sabe.
Thomas – Não pra tocar essas musicas, elas são meio ‘intocáveis’. Mas outro dia consideramos— e curtimos — a ideia de fazer um show numa livraria em Nova York, e outro num cafe aqui em Londres. Em duo: voz e violão. Tocando musicas do Fellini. O saco é ter de ir atrás para agitar essas coisas.
A lendária banda Smack, fundada do falecido guitarrista Pamps ressurge no palco da Sala Adoniran Barbosa do Centro Cultural São Paulo nesta quinta-feira, com a formação original quase completa, com Edgard Scandurra (do Ira!) na guitarra, Sandra Coutinho (das Mercenárias) no baixo e Thomas Pappon (do Fellini) na bateria, com Fábio Golfetti (do Violeta de Outono) como convidado especial. O show começa às 21h (mais informações aqui).
Um dos nomes mais ativos da cena pós-punk paulistana dos anos 80, Thomas Pappon foi guitarrista do Fellini, baterista do Smack e dos Voluntários da Pátria, além de diretor artístico da gravadora Stilleto e produtor dos discos de estreia de bandas como Pin Ups e Black Future. Mas é no grupo The Gilbertos, projeto solo que assume formações diferentes à medida em que o tempo passa, em que ele consegue lapidar aquilo que mais gosta de fazer: compor canções. A cada fase, o grupo de um homem só, que já tem quatro discos lançados, assume musicalidade e estética diferentes, de acordo com o astral de seu autor e tenho a enorme satisfação de trazê-lo para palco do Centro da Terra nesta terça-feira (mais informações aqui), onde apresenta diferentes fases do repertório da banda ao lado do baixista Ricardo Salvagni e do baterista Lauro Lellis, ambos com passagens por diferentes fases de sua principal banda, o Fellini. Em mais um de seus raros shows – é o sexto na história da banda -, Pappon promete um show pesado com ênfase no rock progressivo alemão e no glam rock, duas de suas maiores paixões. Bati um papo com ele sobre o que nos aguarda nesta noite de terça.
O músico e jornalista Thomas Pappon assistiu a um bate-papo com o produtor Joe Boyd em Londres e não esperava ser surpreendido por uma bomba intercontinental: Nick Drake teria se inspirado em João Gilberto para buscar sua própria sonoridade, uma das assinaturas musicais mais fortes da música britânica, mesmo que registrada em parcos três discos e gravações esparsas. Ele contou brevemente a história em seu perfil no Facebook e pedi para que ele compartilhasse sua descoberta aqui no Trabalho Sujo. Valeu Thomas!
Trilhas da Hammer e cocktail jazz: a conexão Nick Drake – João Gilberto
O que era para ser um programinha bacana num fim de tarde chuvoso de domingo trouxe uma bomba, pelo menos para os jornalistas de música: Nick Drake, o trágico bardo depressivo que morreu no ostracismo para ser redescoberto nos anos 80 e influenciar deus e o mundo – de Robert Smith a Renato Russo – passava horas no quarto ouvindo João Gilberto.
Pelo menos é o que sugeriu Joe Boyd, o produtor americano que descobriu Drake na Grã-Bretanha e produziu seus dois primeiros álbuns, num evento no bar/restaurante audiófilo Spiritland, em Londres.
Boyd participou de uma conversa sobre Nick Drake, respondendo a perguntas feitas pelo jornalista Peter Paphides e, ao final, de membros do público.
Ele contou como conheceu Drake: através de um bilhete de Ashley Hutchings, baixista do Fairport Convention, deixado sobre sua mesa com um número de telefone e um nome. Hutchings tinha visto Drake tocar num concerto contra a guerra do Vietnã na noite anterior (uma das raras apresentações ao vivo del, pelo visto) e ficara impressionado.
Boyd ligou, chamou Drake ao escritório, ouviu suas músicas e assim começa a trajetória de três álbuns lançados pela gravadora Island, Five Leaves Left (69), Bryter Layter (71) e Pink Moon (72). Drake morreu em 1974, aos 26 anos, de overdose de antidepressivos (30 comprimidos, o que levou muita gente, inclusive a irmã dele, Gabrielle, a acreditar que foi suicídio).
“Com os anos, fiquei surpreso em ver que muitas pessoas próximas pintavam um quadro de Nick bem diferente do que eu conheci”, disse Boyd. “Diziam que ele era popular na faculdade (Cambridge), que participava de corridas (atletismo)…o Nick que conheci era bashful (Boyd usou essa palavra ao menos duas vezes para descrevê-lo, significa ‘relutante em chamar atenção sobre si, tímido, reservado’).
Boyd deu detalhes sobre as gravações. Falou do fiasco dos arranjos de cordas de Robert Hewson, que tinha trabalhado com James Taylor, e do alívio que Drake sentiu quando soube que Boyd também não tinha gostado. Sobre a tímida indicação de Drake – “tem um amigo meu de Cambridge que conhece minhas músicas” -, Robert Kirby, que acabou cuidando dos arranjos de cordas, parte tão orgânica das canções.
E contou que Kirby se recusara a fazer o arranjo para River Man, talvez música mais conhecida – e reverenciada – do repertório de Drake.
“Kirby era ligado a música barroca. Ela não se sentia à vontade para fazer um arranjo de uma música em (andamento) 5 por 4. Haendel não tinha 5 por 4”, disse Boyd.
“Quem acabou sendo chave nessa história foi o engenheiro de som, John Wood. Wood perguntou a Drake: ‘Que tipo de arranjo de cordas você quer?’ ‘Algo tipo Delius (compositor britânico)’. Wood era o dono do estúdio e estava acostumado a gravar trilhas sonoras de filmes. Ele conhecia um cara que fazia arranjos imitando qualquer compositor. Se você precisa de uma trilha tipo Mahler, ele fazia. Tipo Wagner, ele fazia.”
Esse cara era Harry Robinson, “que compunha trilhas para os filmes de terror da Hammer”.
“Eu e Nick fomos de carro conhecê-lo. Nick levou um violão e um gravador cassete. Ele tocou o cassete com o violão de ‘River Man’ e tocou, junto, a ideia que tinha de arranjo. Portanto Harry Robinson fez o arranjo a partir da ideia de Drake e do pedido de fazer algo ‘tipo Delius’.”
Boyd contou que tudo foi gravado em um só take ao vivo: Nick Drake, voz e violão, e o grupo de cordas executando as partituras de Harry Robinson, ao vivo. “O John Wood diz que a voz de Drake foi gravada depois, ms não é essa a lembrança que tenho”.
Depois, veio a bomba: “A forma como a voz e o violão parecem ter duas vidas próprias segue o estilo do cantor e violonista brasileiro João Gilberto”.
“Isso só me ocorreu mais tarde. Mas um amigo de Drake, da Universidade de Cambridge, me disse que ele ouvia João Gilberto, que tinha discos dele”.
O comentário passou batido, menos para mim e meu amigo, o também jornalista Rogério Simões, fã de longa data de Nick Drake. Não tínhamos ideia…
Na sessão de perguntas do público, o Rogério perguntou por que os discos de Nick Drake não venderam (nem 5 mil cópias cada) na época.
Boyd deu, como pista, uma resenha que tinha saído na época na Melody Maker, do álbum Bryter Layter, que dizia que a música “parece uma mistura esquisita de folk e cocktail jazz”.
E depois, o serviço da casa foi interrompido, para que os pouco mais de 100 presentes pudessem ouvir, à meia-luz em em silêncio total, à mistura esquisita – e mágica – de folk e cocktail jazz do Bryter Layter.”
“Tudo indica que sim”, me responde por email Thomas Pappon, guitarrista fundador do Fellini, sobre a possibilidade do show desta quinta-feira, no Centro Cultural São Paulo (mais informações aqui), ser o último da banda. “É sempre complicado reunir a banda – eu moro em Londres, todo mundo trabalha. Dessa vez só deu certo por causa de um cuidadoso e longo planejamento.”
Pedra fundamental do rock independente brasileiro, o grupo paulistano foi um dos poucos que soube equilibrar experimentalismo e brasilidade numa época em que era preciso escolher entre extremos (familiar?). Assim, influenciou mais de uma geração de novos artistas, tornando possível inclusive sua volta quase dez anos depois do encerramento oficial da carreira, no início dos anos 90 (entrevistei o grupo na época, em 1999 – dá pra ler aqui), que deu uma sobrevida ao grupo, que conseguiu manter sua reputação intacta à medida em que voltaram a gravar novos discos e fazer outros shows esporádicos nos últimos quinze anos. “Poucos nos conheciam nos anos 80”, continua Thomas. “Hoje mais gente conhece – e nos shows a devoção do público hoje é maior. E com site no Facebook, a banda conversa o tempo todo com os fãs diretamente. Aliás foi uma forma de descobrir que temos fãs no país inteiro. E de conhecê-los.”
A volta atual começou há duas semanas e contou com shows no Z Carniceria e no Sesc Belenzinho e termina no Centro Cultural São Paulo, com show gratuito, nesta quinta-feira, a partir das 20h30. Thomas comemoram os dois shows: “Foram sensacionais. Em três lugares diferentes – o terceiro nao rolou ainda, mas tenho certeza que será bom – de certa forma perfeitos para a empreitada, em especial o Sesc. A ideia de tocar o Amor Louco inteiro foi muito boa. A grande mudança foi a participação do Lauro Lellis, um superbaterista, que trouxe firmeza e fluidez ao som.” Além de Thomas, a banda conta com Cadão Volpato nos vocais, Jair Marcos na outra guitarra e Ricardo Salvagni no baixo.
Mesmo que o Fellini termine de vez após o show desta quinta, Thomas não encerra sua produção musical, principalmente com seu projeto solo The Gilbertos: “Gosto demais das três músicas que fiz no ano passado – ‘Cadê Alice?’, ‘Haroldo’ e ‘Baita de um Verão’ – estão no Soundcloud“, lembra. Ele também continua a dupla com Cadão no projeto Pappon & Volpato, que também tem três músicas em uma conta no Soundcloud, além de ajudar na carreira de Andrea Merkel. Sobre o Fellini, ele não descarta shows futuros (“se houver uma boa proposta, quem sabe”), mas queria relançar o último disco da discografia inicial da banda, Amor Louco, em vinil: “É certamente um objetivo. Pena que não dependa apenas da gente”, lamenta. “E pretendo continuar compondo. Mas nunca ouvi tão pouco música como nos últimos meses, isso me preocupa.”
Aproveito a deixa pra ressuscitar uma entrevista que fiz com Cadão, Thomas e Jair na época da primeira volta do Fellini, em 1999. O grupo ainda voltaria de novo para lançar um disco, justamente Amanhâ é Tarde, e fazer outros shows anos depois.
***
Em plenos anos 80, quando as rádios mascavam chiclete, as gravadoras usavam óculos escuros e rock era sinônimo de pop no Brasil, um grupo apareceu para mostrar que existia algo além do clichê rock’n’roll. Compondo sambas quadrados sob guitarras pós-punk, o Fellini era uma banda improvável numa década previsível. Formado por Cadão Volpato, Thomas Pappon, Jair Marcos e Ricardo Savagni, o grupo teve uma carreira marcada por fins e retornos, lançando toda sua discografia apenas por gravadoras independentes – num tempo em que a diferença entre independente e improvisado era nebulosa. Mas o grupo ia contra a corrente e se estabeleceu como um marco no pop brasileiro – a banda mais alternativa do rock nacional (antes mesmo de alternativo ser moda). Lançaram quatro discos (O Adeus de Fellini, Fellini Só Vive Duas Vezes, 3 Lugares Diferentes e Amor Louco), entre 85 e 90, quando pediram as contas. O grupo voltou à ativa no fim do ano passado quando deu três shows (em São Paulo, no Rio e em Brasília) e o Trabalho Sujo aproveitou o gancho para recontar a história do grupo. Pra isso, pedi ajuda a três quartos do grupo (Cadão, Thomas e Jair) em entrevistas separadas via email.
Quem formou o Fellini? Como a banda começou? Houve algum marco inicial da banda?
Cadão – Thomas Pappon e eu. Tocamos pela primeira vez em maio de 1984, acho, num lugar chamado Alpendre, no Bixiga, em São Paulo. Arnaldo Batista, dos Mutantes estava neste show.
Thomas – Num papo de boteco, eu e o Cadão decidimos formar um grupo. Eu queria “compor” e tocar baixo (estava com o saco de cheio de tocar bateria, ficar confinado ao fundão e não ter muitas chances de apresentar idéias para canções). O Cadão queria fazer letras. Depois chamamos o Jair para a guitarra – que tinha tocado com o Cadão num grupo anterior, do qual não lembro o nome. Finalmente, quando ja tínhamos composto umas três músicas, cruzamos com o Ricardo, que estava começando a tocar bateria. E, sim, há um “marco”: por coincidência, nosso primeiro ensaio com a banda completa, foi no dia 18 de maio de 84 na casa do Ricardo. Era o quarto aniversario da morte de Ian Curtis. Nada como nascer cult.
Jair – Eu e o Cadão, tocávamos no grupo Toque de Recolher, punk rock meio militante, em 83. Mas o Stefano, que tocava baixo, detinha 90% da aparelhagem e resolveu acabar com a banda. Tempos depois, o Cadão me ligou, dizendo que tinha encontrado com o Thomas e queria formar um novo grupo. É bom lembrar que anteriormente, em 81, eu (no baixo), o Minho K (na guitar) e o Thomas (bateria) tambem já havíamos formado o The Internationalists. O nome, inclusive, era uma alusão aa 4a. Internacional. Tocávamos de new wave (Talking Heads, B-52’s, Joe Jackson, Pretenders, XTC, etc.) até Rita Lee, Luís Melodia e King Crimson… Animávamos as festas universitárias da USP, PUC, etc.Bem, então em maio de 84 nós nos encontramos numa lanchonete próxima à PUC. Ali acertamos de começaruma nova banda. O Thomas logo se apressou em nos chamar ate a casa dele, no Morumbi, para iniciarmos o primeiro ensaio, na mesma noite. Fomos num fusca azul do Thomas, quando o mesmo sugeriu o nome: “Fellini”. Uau, eu e Cadão aceitamos de imediato. Neste primeiro ensaio saíram riffs de duas ou três músicas, jamais gravadas, pelo que me lembro… Aí, chamamos o Ricardo Salvagni para tocar bateria (nem lembro como ele surgiu, pois não fazia parte da rapaziada que sempre se encontrava). Comecei com a guitarra, o Thomas no baixo e o Cadão cantando e compondo as letras.
Por que Fellini?
Cadão – Fellini foi a primeira sugestão do Thomas. As bandas, nesta época, usavam nomes seriíssimos, pós-punks, como Mercenárias, Número 2, Voluntários da Pátria etc.
Thomas – Nesse mesmo boteco, eu e o Cadão fizemos um rápido brainstorm. Fellini foi um dos primeiros nomes sugeridos. Talvez por causa do nosso amor pelo cinema e por um disco que ouviamos muito na epoca, o Feline dos Stranglers, o nome ficou.
Jair – Bem, quem não gosta do nome? Soa bem, em primeiro lugar. E também todos sempre fomos amantes do cinema. Podemos hoje até considerar como uma homenagem ao Federico Fellini. Também gostavamos de um disco dos Stranglers chamado Feline. O Thomas fez a “salada” e o nome saiu…
O primeiro disco chama-se O Adeus do Fellini, que iniciou uma pequena obsessão sobre o fim do grupo. O que o “fim do Fellini” evocava pra vocês?
Cadão – É uma brincadeira. Havia um disco do Durutti Column chamado The Return of Durutti Column. Achamos engraçado começar pelo fim, mas sempre quisemos acabar mesmo.
Thomas – O Cadão vai dizer que a idéia veio do Return of The Durutti Column, o primeiro disco do Durutti Collumn, mas não me recordo disso. Que me lembre, o Adeus… foi uma especie de gimmick dadaísta, que ironizava a fragilidade e a brevidade das bandas alternativas da época. Como é que um grupo desses poderia vir a fazer mais de um álbum? Também acho que isso foi uma tomada de posição, uma atitude politica mesmo, para deixar claro, desde o comeco: o Fellini nunca seria igual as outras bandas de “rock”.
Jair – Pra mim, encarava o nome do disco como algo surrealista. Particularmente, eu nunca gostaria que o grupo tivesse terminado, especialmente nessa primeira fase. Sim, eu pensava em ganhar dinheiro como fizeram o RPM, os Titãs, etc. Mas a história tomou um outro rumo para a gente, uma espécie de sucesso num “universo paralelo”. O grupo terminou pelo menos umas três vezes pelo que me lembro. Engraçado, o nome do primeiro disco acabou se tornando uma sina pra gente. Porém, eu via o nome apenas como uma brincadeira.
Toda discografia do grupo saiu via independente. Como é olhar pra trás e ver que vcs conseguiram sobreviver num meio que mal existia nos anos 80?
Cadão – Motivo de muito orgulho e sobressalto pela cara-de-pau. A gente era muito ousado.
Thomas – Me lembro bem de como era difícil lançar discos na época. Mas creio que nós soubemos nos aproveitar bem da maior lição do punk, a do faça-você-mesmo. Não tínhamos nada a perder, todos na banda sabiam que jamais poderiamos viver do Fellini. Cada um dos quatro álbuns que lançamos foi como o parto de um filho. Estão entre as melhores lembranças da minha vida.
Jair – Acho realmente incrível. A estranheza que o nosso som causava à primeira impressão acabou virando o mote para o nosso “sucesso”. Muitos até não gostavam do grupo numa primeira ouvida, depois se acostumavam, gostavam e passavam a adorar. Genericamente falando, deve ter acontecido muito disso por ai. Olha, nos 80 havia uma cena interessante, sim. Ouviu falar de um suposto movimento auto-intitulado “Rock Paulista”? Pois é, fazíamos parte disso. Havia muitos shows em Sampa. Existiu um lugar de pouca vida chamado Napalm, onde muita gente começou a se apresentar (diga-se Ira!, Capital, etc.). Ai teve o Madame Satã, o Carbono 14 e o Radar Tantã. No final da decada, surgiu o Espaço Retrô. Todos estes espaços foram palcos de muitos encontros e projetos… E todos sobreviviam de certo modo…
Que tipo de música vocês ouviam nos anos 80? Quem influenciou o Fellini musicalmente?
Cadão – Ouvíamos Stranglers, The Fall, db’s, Velvet. Mas as influências mesmo são de uma certa bossa nova um pouco mais oculta que aquela praticada pelos tops da MPB. De alguma forma eu me deixei influenciar – modestamente, claro – pelos gogós de Lúcio Alves e Serge Gainsbourg e pelas valsinhas dos Stranglers.
Thomas – No começo, apenas bandas européias como as inglesas The Fall, Stranglers, Joy Division, New Order, Gang Of Four, Cure e as alemãs Palais Schaumburg e Fehlfarben “palácios e cores que falham”). De influencia nacional, apenas o Lóki? do Arnaldo Baptista.
Jair – Bem, como narrei acima, com certeza: ouvia tudo de new wave, que acredito ter sido uma das bases da influencia do Fellini. Mas os 80 foram bem longos. Bem no comecinho eu e outra roda de amigos não perdiamos um só show do Colégio Equipe, organizados pelo Serginho Groisman. Na época, cheguei a assistir Adoniran Barbosa & Clementina de Jesus, Raul Seixas, Jorge Mautner… Eu apreciava muito a MPB daqueles idos. Através do Thomas, conheci muita coisa mesmo. O pai dele sempre trazia um grande pacote de encomendas quando voltava de suas costumeiras viagens à Alemanha. Ai, já viu, né? No início, o Fellini teve influências sim, principalmente do rock inglês. Depois enveredamos para um trabalho mais experimental, mais MPB (os sambas eletrônicos…), que acabaram caracterizando bem o estilo do grupo…
Qual o maior legado do Fellini?
Cadão – Independência e senso-de-humor.
Thomas – Duas coisas. Primeiro, a atitude, a postura de anti-banda, como forma de criar um contrapeso ao clichê “roqueiro”, ditado pelas grandes gravadoras e grande maioria das bandas. Nós assimilamos totalmente a imperfeção, o erro, a falta de técnica. Trocamos de instrumentos e quase nunca tocávamos as músicas que as pessoas esperavam ouvir. Com isso tentávamos privilegiar a ironia, a idéia, a leveza, a surpresa e a sensibilidade. Segundo: a nossa música, que era encantadora, sedutora e que revelou um letrista pós-moderno impressionista sem parâmetros no pop nacional. Um gênio.
Jair – Acredito que o reconhecimento de público e críitica seja o maior deles. não existe nada tão gratificante. Ouvi dizer que deixamos muitas pessoas felizes com nossa aparição no fim do ano. Este é o maior legado, na minha opinião, pode crer.
Um marco na carreira do grupo foi empatar com os Titãs como melhor disco do ano na votação da Bizz em 87. Como foi isso?
Cadão – Um barato, pois eles ficaram putos.
Thomas – Um escândalo! Na verdade, era para o Fellini ter sido escolhido sozinho no primeiro lugar. A redação da Bizz alterou a votação para que isso não acontecesse, pois a fúria dos Titãs, das bandas e das gravadoras seria inevitável. O José Augusto Lemos e o Alex Antunes podem confirmar essa história. Repito: Um escândalo!
Jair – Creio que sim, com certeza. Eu, particularmente, não participei deste trabalho. Os caras podem narrar melhor a experiencia vivida.
Qual o melhor disco do Fellini? Por quê?
Cadão – Talvez o terceiro, Três Lugares… Mas o que eu gosto mais, porque é fuleiro e atrevido, é o Fellini Só Vive Duas Vezes. Até um guarda-noturno fortuito aparece nele, pois gravávamos na sala de jantar do Thomas.
Thomas – Eu mesmo me pergunto isso várias vezes, cada dia acho uma coisa. Todos são imperfeitos, mas todos são tão legais… Erm, vejamos, talvez o Amor Louco.
Jair – Eu voto no primeiro e no terceiro. O Adeus de Fellini foi uma das melhores coisas que fiz na vida até aqui. Foi o meu primeiro disco também. O Thomas já tinha gravado com o Voluntários… Tivemos dificuldades técnicas, claro, mas o repertorio foi bem acertado, os efeitos (ruídos de helicóptero, máquina de escrever, sino, galo cantando…) e alguns arranjos (trumpete e cello) formaram a receita de um bolo que deu bastante certo e muita repercurssão. E 3 Lugares Diferentes considero o mais criativo em termos de musicalidade e letras. Mereceu o titulo de 87, com certeza. Mas gosto dos outros também (hoje também me considero um fã, re re).
Fale um pouco sobre a ida do Fellini aos EUA.
Cadão – Tocamos (eu e Thomas, apenas) no Village, em Nova Iorque, num lugar chamado Kenny’s Castaway, onde havia cerca de 30 brasileiros saudosos. Mas o sujeito da Rolling Stone, escrevendo para a Bizz, adorou. Está registrado.
Thomas – Foi apenas um show no Kenny’s Castaways em Nova York, para umas 40 pessoas. Por problemas de visto, fomos apenas eu e o Cadão. Tocamos umas 7 músicas, abrindo para o Ira!. Foi legal. O cara da Rolling Stone adorou.
Jair – Bem, pra mim, foi muito ruim. Eu e outros convidados da banda não conseguimos visto. Muitos músicos de outras bandas também foram barrados no terrível consulado americano. Da banda, somente o Thomas e o Cadão viajaram e se apresentaram numa coisa bem intimista, que parece ter dado certo. Mas, segundo eles, o local não estava muito cheio e a maioria era de brasileiros. Não gosto muito de lembrar do episódio…
Quando, onde e por que o Fellini acabou?
Cadão – A rigor, o Fellini acabou em 1991, quando extinguiu-se o último fôlego. Thomas foi morar na Europa, não tinha mais sentido continuar.
Thomas – O Fellini não acabou, apenas suspendeu suas atividades por causa da minha mudança para a Europa.
Jair – No início dos 90. O grupo apenas se dissolveu, sem traumas.
Quais suas melhores lembranças do tempo do Fellini?
Cadão – A amizade dos camaradas, as letras malucas que ocupavam minha cabeça até durante o sono, as namoradas da época, a sensação (motivada pela boa fé do Thomas) de que seria uma coisa para a posteridade, as músicas ainda cruas, sem as letras (a sensação de tê-las ouvido pela primeira vez). Foi muito legal.
Thomas – Ah, são as lembranças das gravações dos 4 álbuns. Nós tinhamos controle total sobre tudo, o tempo inteiro, e os discos dependiam diretamente do nosso esforço. Quando as gravações estavam prontas, vinha a melhor parte. Passava tardes inteiras sentadas num boteco, imaginando a capa, a ordem das músicas, os créditos, as fotos, tudo. Como isso é legal. Quanto aos shows, minhas lembranças não são muito boas, exceto a do show de lançamento do Adeus de Fellini no Madame Satã em dezembro de 85. Mudei do baixo para a guitarra, toquei sentado, o Ricardo passou da bateria para o teclado e ritmo eletrônico. Foi um show sensacional, as pessoas não acreditaram. Não tocamos uma única música do Adeus de Fellini!
Jair – Várias: o primeiro ensaio na casa do Thomas, o primeiro show num lugar chamado Albergue, aqui em SP, os tempos “malditos” de Madame Satã, a gravação do Adeus…, a entrevista no Rio para a Per Lui italiana, as costumeiras sessões de fotos, um incrível show em Porto Alegre (89), as cervejadas com o Thomas… Enfim.
Você gostou dos shows de volta?
Cadão – Provavelmente foram os melhores que nós já fizemos.
Thomas – Não hesito em dizer que os shows de Brasília e Rio de Janeiro estão entre os 3 melhores que já fizemos.
Jair – Sem comentários, simplesmente maravilhosos.
E o próximo disco? Sai?
Cadão – Não. O Fellini não volta mais.
Thomas – Who knows? Sinceramente, não vejo muitas perspectivas.
Jair – É, meu amigo, pirigas, pirigas. Vamos esperar os ânimos das internas e das externas.
TODO FELLINI (até 99)
O ADEUS DO FELLINI (85)
Definição: Alto astral subliminar.
Uma Letra: “Toda vez que eu ouço falar em cultura/ Saco meu talão de cheques” (Cultura)
Gracinha no vinil: Lados “Ema” e “Siri”.
Instrumento esquisito: Máquina de escrever.
Hit: “Rock Europeu”
FELLINI SÓ VIVE DUAS VEZES (86)
Definição: Transição intransitável.
Uma Letra: “O amor é uma droga/ nem dá barato”(Todos os Dias da Semana)”
Gracinha no vinil: Desenho de um “burro” de escola
Instrumento esquisito: Trumpete vocal.
Hit: “Alguma Coisa Vai Dar”
3 LUGARES DIFERENTES (87)
Definição: Humores diferentes.
Uma Letra: “Mudar de lugar/ Ou mudar o lugar?” (Valsa de La Revolución)
Gracinha no vinil: Um enorme número 3 no rótulo do lado B
Instrumento esquisito: Zumbido.
Hit: “Teu Inglês”
AMOR BARATO (90)
Definição: Samba-eletrônico
Uma Letra: “Cidade perdida/ Joga as cascas pra lá” (Amor Louco)
Gracinha no vinil: Reprodução da capa no rótulo
Instrumento esquisito: Cavaquinho.
Hit: “Chico Buarque Song”