Trabalho Sujo - Home

Thiago França, seu saxofone e só

Foto: José de Holanda

Foto: José de Holanda

Mais que o pulmão do Metá Metá, Thiago França está intimamente ligado ao sistema circulatório da música em São Paulo, seja capitaneando sua Espetacular Charanga ou tocando com gente de todas as vertentes musicais, do improviso livre ao choro, da gafieira ao free jazz, da marchinha de carnaval ao rap, do samba rock à música de terreiro. Mestre do sopro, interliga saxes, flauta e pedais para criar climas tensos, atmosferas bucólicas, melodias familiares, ataques frontais, mas pôs-se ao desafio de torear seu próprio instrumento num disco dedicado apenas a ele, gravado todo em takes únicos e sem outros instrumentos ou efeitos de pós-produção.

O resultado é Kd Vcs, um disco que soa ao mesmo tempo ermo e populoso, contemplativo e agressivo, abstrato e pé no chão. Embora o lançamento do disco em abril já estivesse na agenda de Thiago desde o final do ano passado, o disco afina em vários níveis com a estranha sensação que estamos passando nestes dias de isolamento social. E não é apenas o título que remete a esta sensação solitária, pela extensão de menos de meia hora das sete canções, o instrumentista nos conduz a uma paisagem alienígena para que possamos olhar para dentro e nos reconhecer, como se o Doutor Manhattan de Watchmen pudesse levar cada um de nós para Marte e poder ver o que estamos fazendo com nosso planeta – e, portanto, com nós mesmos. Dá para ouvir ecos de samba, jazz e funk na forma que o saxofonista conduz seu timbre, mas ele abandona rótulos e sensações reconhecíveis numa queda livre em que, várias vezes, perdemos a noção da gravidade. Sem noção de onde é o chão, estamos soltos no espaço profundo explorado por Sun Ra, mas sem nenhum planeta nem a nave-mãe de George Clinton no horizonte, e a flutuação torna-se voo com o norte magnético apontado para o free jazz espiritual. Inspirado no livro Cujo, de Nuno Ramos (que também é autor da imagem da capa do disco), Kd Vcs é um mergulho pra cima em uma densidade desconhecida. O disco pode ser baixado no site do Thiago e eu conversei com ele por email sobre este gesto solitário.

Quando você percebeu que tinha de registrar este momento com seu instrumento e que teria que fazer isso sem outros músicos?
A vontade de ter um formato solo sempre me instigou, pelo quão inusual é prum saxofone, mas não queria que fosse algo só por fazer. Por volta de 2016 eu comecei a fazer as primeiras experiências, ainda como “ato de abertura” de algum show meu com banda. No começo era mais improvisação livre e algumas músicas já do meu repertório, e de cara eu senti que o mais interessante seria compor especificamente pra esse formato, um repertório pra existir assim, que fosse só o saxofone e não ficasse faltando nada, achei um bom desafio. Eliminei também os pedais porque saquei que seria um lance óbvio demais porque eu acabaria por emular a função dos outros instrumentos criando harmonias, padrões rítmicos, etc, e fui me envolvendo cada vez mais com a idéia de estar “nu” no palco. do No final de 2018, senti que tinha chegado nas músicas com o propósito que eu queria, fiz mais alguns shows no começo do ano seguinte e em setembro de 2019 (dia 10) gravei o disco. Mas a primeira centelha de fazer um disco mesmo foi quando eu gravei um solo de tenor na trilha do “Gira”, espetáculo do Grupo Corpo que o Metá fez a trilha.

O disco tem alguma inspiração direta, um disco em que também traga apenas um músico e seu instrumento?
Tem um saxofonista fodão chamado Collin Stetson, que toca sax baixo (que é mais grave ainda que o barítono), e com certeza vai rolar essa associação. Mas o lance do Collin é mais “completão”, ele usa mais camadas, ele canta as notas com a garganta enquanto toca, ele microfona o pescoço, as chaves do instrumento, então você ouve vários sons, tem hora que parece que tem percussão junto. Uma das músicas do meu disco, “Tarrasque”, foi bem inspirada nesses sons do Collin, onde eu também uso esse recurso de cantar com a garganta. Mas fora isso, muita coisa me instigou durante a vida toda. Há uns vinte anos atrás eu ia muito nos shows do Nenê (baterista) e achava incrível quando ele fazia os solos, dum jeito super melódico, uns momentos grandes durante o show. O próprio Hermeto tem sempre uns momentos que fica só ele. Ou mesmo que não fosse uma música inteira só uma pessoa, mas um trecho que tá só um cara tocando, fosse o Roscoe Mitchell, Pharoah Sanders, Eric Dolphy ou o Mingus…

Fale da influência do Nuno Ramos no disco, da capa ao livro Cujo.
Bom, foram uns anos até resolver o repertório, e depois que as músicas estavam todas compostas, os shows já tavam rolando no formato que seria o disco, obviamente me bateu uma nóia: legal, é um disco de saxofone solo, mas porra! é um disco de saxofone solo! eu comecei a achar chato, repetitivo, porque é só o saxofone, é só aquele mesmo som. Tudo bem, tem seus momentos distintos, mas no fim das contas, é só saxofone. E eu lembrei duma passagem do livro do Nuno onde ele descreve os materiais, pedra, argila, terra, e ele diz que dentro da pedra só tem pedra, dentro da terra, por mais que ele cave, só tem terra. A princípio me pareceu monótono, mas depois eu comecei a entender de outra forma, das coisas que são rigorosamente o que são, da beleza e do poder de sustentar uma idéia como profissão de fé, o comprometimento ritualístico com a essência das coisas – a pedra é pedra até o último grão. O mar vai ser sempre o mar e vai estar onde sempre esteve, é maravilhosamente acalentadora essa idéia, essa verdade, que o mar é mar até a última gota, é um porto seguro do nosso imaginário, do nosso sagrado. Num momento onde o mundo está a mentira é uma tática de guerra aceitável (fake news), acho muito essa imagem muito forte. O sax tenor é o meu porto seguro, é o meu “voltar pra casa”. E depois desse giro enorme, fui entrando em paz com a idéia materializar o disco. O nome vem de um disco do saxofonista Peter Brotzman, que em português é: “Eu estou aqui, aonde estão vocês?” e eu realmente “estou aqui”, o disco é um apanhado de idéias de quase 30 anos de saxofone, estou nu, meio que contando aqueles pensamentos mais malucos que a gente só abre quando tá meio bêbado pra quem a gente confia muito.

O disco está muito ligado ao conceito de respiração circular, quando você aprendeu essa técnica e como começou a usá-la?
Em 2001 eu tava na faculdade de música da UFMG – que eu larguei no começo – e o professor de saxofone, Dilson Florêncio, é um verdadeiro monstro, seguramente o saxofonista mais técnico que eu conheço no mundo, nunca ouvi ninguém tocando com a perfeição e excelência dele. E um dos folclores que circulavam na época é que ele tocava o Moto Perpétuo, do Paganinni no sax, originalmente um concerto pra violino que não tem pausa, e o Dilson tocava com respiração circular. E tocava mesmo, eu assisti isso ao vivo, umas das coisas mais impressionantes que eu vi na vida. Então tinha esse dado aí. Ele me explicou como fazia e é uma mecânica bem simples, só leva tempo pra limpar e fazer direitinho. O lance mesmo era o que fazer com isso. O saxofone é um instrumento melódico, é como se imitasse a voz. Imagina conversar com alguém que não para de falar nem pra respirar? Fui começando aos poucos, usando em alguns choros que tinham frases muito longas, só como um auxílio. Tentei tocar alguns choros usando a respiração na música inteira, tipo o “Voo da Mosca” do Jacob do Bandolim, mas no fim das contas ficava chato, me sentia mais executando um truque de mágica do que uma música, um virtuosismo barato. Também usei muito nos arranjos do Metá também, porque eu precisava soprar forte pra equiparar o som da guitarra e do baixo e acabava faltando ar, fui usando só pra completar as idéias. Mas foram quase vinte anos até chegar nessas sete músicas do disco e usar essa técnica aonde realmente tinha um propósito, incorporando a respiração como parte das composições.

Você antecipou o lançamento do disco por conta da pandemia? Como fará para trabalhar este disco nesta época nesta época estranha?
Pior que não. Eu tinha na cabeça que lançaria o disco em abril mesmo, quando baixasse a poeira do carnaval – o disco tá pronto desde novembro, com capa e tudo. O que eu não sabia mesmo era como trabalhar, porque é um show de 25 minutos, eu não seguro uma noite sozinho, sempre que eu faço divido a noite com alguém, e esse formato não-ortodoxo significa procurar lugares fora do roteiro convencional de shows. Tudo bem que é um disco super introspectivo, pra ouvir sozinho em casa mesmo, mas não precisa duma quarentena dessa pra isso, né? Daí quando começou o isolamento eu até pensei em não lançar, pra não ficar parecendo oportunismo nem entrar nessa paranóia de “quarentena de alta performance” que todo mundo se cobra de produzir, fazer mil coisas. Mas depois desencanei, porque convenhamos, mercadologicamente falando nunca é um momento propício pra se lançar um disco esquisito de saxofone solo.

thiagofranca-kdvcs

“Aguiã, Alufã”
“Ngoloxi”
“Dongô”
“Pescoço Curto”
“Tarrasque”
“Maercúria”
“Dentro da Pedra”

Sexta Trabalho Sujo: Março de 2020

sts-marco-2020

Aos poucos a Sexta Trabalho Sujo está firmando público e fazendo o pessoal chegar mais cedo no Estúdio Bixiga pra tomar doses semanais de boa música – e assim seguimos em março. Na primeira sexta do mês, dia 6, recebemos o grupo prog fusion Stratus Luna, começando a preparar seu segundo disco (mais informações aqui). Na sexta 13, é a vez da dupla de folk psicodélico Antiprisma, que apresenta-se no formato banda mostrando músicas do ótimo disco Hemisféiros, que lançaram em 2019 (mais informações aqui). Dia 20 temos um encontro de saxes da pesada, quando o brutal trio de jazz rock Atønito, liderado por Cuca Ferreira, do Bixiga 70, recebe o mestre Thiago França, que começa a trabalhar em seu formato solo (mais informações aqui). E, finalmente, no dia 27, Jonnata Doll e os Garotos Solventes chega puro e sem gelo para derreter seu rock cru no palco, mostrando seu disco Alienígena, um dos melhores do ano passado (mais informações aqui). Um mês de extremos, só show foda.

A hora dos podcasts de música

podcast-ubc

Conversei com Cleber Facchi do Vamos Falar Sobre Música?, Fábio Silveira do Fast Forward, Lucio Ribeiro do Popcast e Thiago França do Sabe Som?, autores de podcasts que abordam diferentes aspectos da produção musical em uma reportagem para a revista da UBC – confere lá no site deles.

Os melhores shows nacionais de 2019

shows-nacionais-2019

Tanto o Guia da Folha quanto o Divirta-se do Estadão me chamaram para votar nos meus shows brasileiros favoritos de 2019 – e o critério que usei foi não incluir os shows que pautei tanto no Centro da Terra quanto no Centro Cultural São Paulo. Assim, cheguei a estes três shows: Alessandra Leão no Auditório Ibirapuera, Thiago França convidando Tony Allen no Sesc Pompéia e Ana Frango Elétrico no Sesc Av. Paulista.

Alessandra Leão @ Auditório Ibirapuera
24 de outubro de 2019

“A percussionista pernambucana nos convida a uma viagem pela hisatória da música brasileira através do terreiro que é seu disco Macumbas e Catimbós.”

Thiago França + Tony Allen @ Sesc Pompeia
22 de março de 2019

Um embate entre dois pesos pesados do groove – um no sax e outro na bateria – que logo se transformou em uma nave espacial para a quinta dimensão.

Ana Frango Elétrico @ Sesc Av. Paulista
18 de outubro de 2019

Mutante hipster vintage bossa nova é o disfarce da vez da poeta, produtora e musicista carioca.

Outra rodada de papo sobre música com Thiago França

sabesom-

Eis a continuação do papo que tive com o compadre Thiago França no segundo episódio de seu podcast Sabe Som?, e, portanto, o terceiro episódio. Ainda nos mantivemos no tema “polêmico” da vez – o conceito de música boa – para dar brechas sobre discussões que envolvem sensibilidade, nostalgia, mercado e contexto – e, mais uma vez, tivemos as participações dos broders GG Albuquerque e Lucas Prata, o Caju.

Conversando sobre música com Thiago França

sabesom

O compadre Thiago França agora tem um podcast chamado Sabe Som? e me convidou para participar do segundo episódio. O tema – “polêmico” – é o conceito de música boa, deixa que aproveitamos para falar sobre diferentes nuances sobre a concepção musical, com as participações gravadas dos manos Lucas Prata, o Caju, e GG Albuquerque.

O papo rendeu bem – e continuará no próximo episódio, daqui a 15 dias.

Marcelo Cabral: Influxo Cabralha

marcelo-cabral-centro-da-terra

Quando Marcelo Cabral avisou que estava voltando da Alemanha para passar um tempo de volta no Brasil, cogitamos rapidammente uma temporada ao redor do universo musical do baixista e de sua recente experiência artística na Alemanha. Próximo à cena de improviso livre de Berlim, Cabral foi descobrindo um método de criação artística que permite fluir por outras linguagens, incluindo literatura, teatro e spoken word e entender como isso influencia diretamente o resultado musical. E assim ele pensou em Influxo Cabralha, uma reunião de amigos e magos da música instrumental que atravessa quatro segundas-feiras de abril no Centro da Terra. Na primeira, dia 8, ele toca ao lado de Mauricio Takara, Thomas Rohrer e Mariá Portugal. No dia 15 ele chama Guilherme Held, Thiago França, Juliana Perdigão e Angélica Freitas. Dia 22 é dia de Kiko Dinucci, Rodrigo Brandão e Juçara Marçal. E a temporada termina no dia 29, com as participações de Thomas Harres, Bella, Patrícia Bergantin, Maria Beraldo e Ná Ozzetti (mais informações aqui). Bati um papo com o Cabral sobre esta safra de shows e a influência de sua estada na Alemanha neste novo projeto.

Tudo Tanto #62: Thiago França e Tony Allen

thiago-tony

O saxofonista Thiago França, uma das forças-motrizes do Metá Metá encontra-se com a lenda viva do afrobeat, o baterista Tony Allen, nesta sexta-feira, dentro da programação do Nublu Jazz Festival, que acontece no Sesc Pompeia – e consolida uma parceria épica que vem sendo fermentada desde 2013 – é o tema da edição desta semana da minha coluna Tudo Tanto no site Reverb, confere lá.

Rodrigo Campos: Qualidades Primordiais

cartaz sem palavras 300518

É com grande satisfação que recebemos no Centro da Terra um dos grandes cantores e compositores da música paulistana do século 21, o grande Rodrigo Campos, como primeiro dono das segundas-feiras de 2019. Em sua temporada Qualidades Primordiais, Rodrigo dividiu suas apresentações em quatro elementos, alquimicamente desdobrando suas temperatura e umidade para dissecar sua própria musicalidade. Em cada uma segunda-feira, ele reúne sensações diferentes de seus sambas a partir de seus convidados, “elas servem como um norteador para escolher as participações na temporada”, ele me explica “uma maneira mais de criar uma atmosfera do que fechar um conceito pra cada show. A ideia é ser um pouco aberto”. Na primeira segunda, dia 4, ele recebe os percussionistas Fumaça, Raphael Moreira e Victória dos Santos na noite Frio e Seco, regida pelo elemento terra. Na outra segunda, dia 11, ele recebe a nova colaboradora Maria Beraldo para a noite Quente e Seco, do elemento fogo. Na terceira segunda, a noite Frio e Úmido, do elemento água, ele conta com a participação de Kiko Dinucci e, finalmente, encerra seus trabalhos com a noite Quente e Úmido, do elemento ar, com Maurício Badê e Thiago França (mais informações aqui). Conversei com ele sobre sua temporada e ele conta o que pensou para seu mês de fevereiro no Centro da Terra.