The Velvet Underground – The Velvet Underground & Nico

, por Alexandre Matias

Resenha que fiz do disco pro Rraurl.

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Usada pela primeira vez em público no lançamento mundial do ballet “O Quebra-Nozes” de Tchaikovsky, em 1892, a celesta é uma espécie de xilofone acionado por um teclado, cujo som lembra uma caixinha-de-música. Havia uma no estúdio Mayfair, quando, em novembro de 1966, o Velvet Underground foi gravar a última música para seu disco de estréia. O produtor Tom Wilson – que havia monitorado a célebre gravação de ‘Like a Rolling Stone’, de Bob Dylan, e, depois de ir para a Verve, lançara o primeiro disco de Frank Zappa – queria um single e pediu mais uma música para o grupo, que havia encerrado a gravação de seu primeiro disco há mais de um semestre, em abril de 1966.

Ele também queria a modelo alemã Nico no vocal. Lou Reed até tinha uma música pronta para dar para Nico – não gostava da idéia de ficar em segundo plano em seu próprio show, mas o empresário Andy Warhol gostava dela e ele mesmo se aproveitava da situação -, mas não ia ser no primeiro single de sua banda. E assumiu ele mesmo os vocais de “Sunday Morning”, restando a John Cale, que encontrara a celesta no estúdio, a criar um clima menos tenso e agressivo do que havia sido gravado meses antes.

Com formação erudita e experiência em trabalhar em grupo – após estágios intensos com maestros excêntricos -, Cale havia sido responsável pelas gravações do primeiro disco do grupo, apesar da presença de técnicos de som e do próprio Andy Warhol pairando como produtor. Mas era ele quem dava forma, no estúdio, ao caos proposital que era o Velvet Underground ao vivo. Quando Wilson cogitou uma faixa mais tranqüila, aquilo fez completo sentido para Cale, que transformou uma balada lo-fi de Lou – veríamos várias primas dela no terceiro disco da banda – em um cândido e assustador clima de paranóia e ressaca, criando a melhor introdução para a tensão que viria a seguir.

A celesta cantarola uma melodia mecânica acompanhada por duas notas de baixo, que abrem a canção com cordas ao fundo e, pouco a pouco, a aparição da viola de Cale. Antes disso, Reed tranqüilo sussurra: “Cuidado! O mundo está atrás de você! Sempre haverá alguém por perto que irá chamar – e não é nada demais”, acompanhado por vocais distantes de Nico. Dedilhando um pequeno exercício no instrumento, Cale criou uma introdução leve e barroca que reinventou uma música de bailinho para um ambiente hostil e agressivo – e, de quebra, apresentou o Velvet Underground ao universo das gravações postas à venda (o compacto saiu em dezembro de 1966 com “Femme Fatale” no lado B e, claro, não vendeu nada), como a abertura de um dos discos mais emblemáticos da história da música popular.

The Velvet Underground and Nico é o exemplo definitivo de como uma obra de arte pode dar origem a um culto. Concorrentes nesta categoria não faltam e a maior parte deles não tem nada a ver com música: o séquito de J.R.R. Tolkien e seu Senhor dos Anéis aos fãs de anime e mangá ou de cinema de horror, passando pela mitologia de Jornada nas Estrela e pela literatura beat. Todos eles iniciaram como uma mania de um punhado de malucos e foi crescendo até atingir maneirismos de religião, com dogmas, rituais, palavras de ordem, frases de efeito, vestimentas, hagiografia, templos e lugares sagrados. O que o Velvet vendia não era só um estilo de vida, era a negação de um estilo de vida. Foi quando pela primeira vez um item pop recusou-se a ser tratado como item à venda e em vez de dizer como era seu universo ideal, cogitava a possibilidade de não existir esse tipo de coisa.

Se o rock é um dos melhores exemplos do American Way-of-Life, quando o self-made-man torna-se astro, o rock alternativo, o gênero de artistas aparentemente desconexos, como Cure, Sonic Youth e Beastie Boys, e que nasceu propriamente no disco Velvet Underground and Nico é o culto ao outsider, à decadência européia, à Arte com letra maiúscula.

Em vez de chamar os outros para juntar-se à sua igreja, o grupo nova-iorquino cogitava que cada um fundasse sua própria religião. De repente, sorrisos, músicas de amor e ritmos dançantes deixavam de ser a única opção no mercado de discos.

Claro que isso não é mérito único, uma vez que o Velvet nasceu na mesma geração que transformaria o rock na melhor tradução do espírito coletivo da época, fantasma que nos persegue até hoje. O amadurecimento da fusão de blues e country proposta por Elvis, Chuck Berry e Little Richards foi inaugurado no histórico encontro dos Beatles com Bob Dylan, quando Bob apresentou a maconha para o grupo, selando na forma de um baseado uma troca de experiências que já estava acontecendo em disco: Dylan ficando mais pop, os Beatles ficando mais sérios, ambos se comparando, sempre.

É quando o rock de garagem deixa de ser falta de opção e torna-se estética, quando nascem as primeiras cores da psicodelia californiana e londrina e Jim Morrison funda os Doors. O mítico 1967 teve o dom de mexer profundamente na carreira de qualquer artista vivo naquela época: Caetano, Godard, Beach Boys, Miles Davis, Zappa, Pink Floyd, Coltrane, Antonioni, James Brown, Kubrick, Who, Cream, só pra ficarmos em poucos medalhões. Não é de se estranhar que o estrago que o cinema europeu e o jazz moderno fizeram na história é contemporâneo, e conceitualmente muito próximo deste final dos anos 60. Mas foi o Velvet quem levou adiante o “foda-se” que o rock de garagem começava a dar para as regras do pop a partir de “Louie Louie”.

Tudo no Velvet parecia pronto para se tornar objeto mitológico. Desde as origens de seus dois fundadores: Lou Reed era compositor de aluguel de uma gravadora de fundo de quintal e estudante de literatura, John Cale vinha da música de vanguarda e teve aulas com John Cage e depois formou o grupo de drone Dream Syndicate, com La Monte Young. O primeiro papo dos dois sobre tocar juntos deixa claro que ambos não queriam compromisso com o sucesso e sim fazer o que quisessem.

Lou, nova-iorquino, vivia, e ainda vive, uma cruzada pessoal: fazer rock como se fosse literatura. “Shakespeare e Dostoievski para os discos”, dizia. Queria trazer a realidade das ruas de sua cidade para um veículo que fosse verdadeiramente popular. E sempre foi apaixonado por música pop, de diferentes níveis e vertentes: a ponto de gravar sua primeira canção aos 14 anos e arrumar emprego numa gravadora meia-boca. Antes de chegar à maioridade, foi submetido a tratamentos de choque, uma vez que seus pais queriam reprimir suas tendências homossexuais.

O galês Cale, por outro lado, aproximou-se do rock devido ao ruído. Com pouco mais de 20 anos, já havia experimentado alguns extremos musicais: foi um dos músicos que ajudou Cage a executar sua mais longa obra, uma peça de piano com 18 horas de duração e com o Dream Syndicate, esticava notas inteiras por horas, criando efeitos que remetiam à música oriental de meditação. Ao montar uma banda de rock, queria ir para além da música e extrapolar os limites do som.

Um protótipo de banda já existia antes da entrada de Cale, quando Reed compôs e lançou, pela gravadora em que trabalhava, a minúscula Pickwick, uma “dancinha” pra ver se colava no rádio. “The Ostrich” era algo como “A Dança do Avestruz”. Só que Lou já se mostrava mais que irônico, uma vez que a letra da música falava para você enfiar sua cabeça num buraco e arrumar alguém para pisar em cima dela. A música foi lançada e Reed teve que montar o grupo que tocava a música para fazer alguns shows de lançamento. Os Primitives, uma banda que só existia em estúdio, começariam com a entrada de Cale e de um amigo de Lou na segunda guitarra, o grandalhão Sterling Morrison, e o percussionista Angus MacLise. Trocaram de nomes algumas vezes (The Warlocks, The Falling Spikes) e fizeram alguns shows promovidos por rádio e tocaram para adolescentes que berravam pelo simples fato de estarem vendo uma banda de rock ao vivo – e logo se deram conta da piada que era aquele mundo das paradas de sucesso. E transformaram o avesso desta piada em seu rumo musical.

Logo Lou Reed começaria a compor músicas com temas menos apropriados para o rádio, como drogas pesadas e sexo sadomasoquista. Este último tema havia sido tirado da capa do livro que batizaria a banda com seu nome definitivo. The Velvet Underground era um livro pornô vagabundo, mas sua capa cheia de chicotes, botas e couro, além da palavra “underground” (em voga devido à ascensão da cena de cineastas experimentais nos EUA na década de 50, do chamado cinema underground) no título deram um clique na cabeça de Reed. Era isso: mostrar o lado cru da vida, ser experimental como o cinema alternativo, mas fazendo rock. MacLise saiu da banda e Morrison chamou a irmã de um amigo para assumir a bateria. Maureen “Mo” Tucker logo daria sua contribuição crucial para a banda, além do ritmo preciso e constante (sem firulas, zero solo), ela tocava de pé seu kit de tambores e pratos. Que, para acompanhar o ruído da banda, começou a ter latas de lixo incluídas.

Quando começaram a fazer show no Café Bizarre, um muquifo no Greenwich Village, foram percebidos por alguns poucos perdidos que passavam por ali. O clima era tão fora do normal, tanto em termos toscos, quanto inusitados, que quando Gerard Malanga começou a dançar em frente aos shows do grupo, ninguém achou estranho. Misturando dança moderna e bicho-grilismo com verniz intelectual de araque, as coreografias de Malanga logo se tornaram parte das apresentações, principalmente quando a banda tocava “Venus in Furs” e “Heroin”.

A primeira era uma música cujo título havia saído de um dos principais livros do pai do termo masoquismo, o austríaco Leopold von Sacher-Masoch, Vênus de Peles, e descrevia situações clássicas de relações sexuais que uniam dor e prazer, enumerando os clichês do gênero. Sem uma mudança de acorde sequer, a faixa era ponteada pela viola aguda de Cale, marcando o tempo da música como um misto de relógio e aparelho de tortura. “Heroin”, o primeiro grande conto de Lou Reed, não tinha meios-termos. Começava provocativa desde o título e tentava traduzir em palavras o que acontece na cabeça de um viciado em heroína (“Eu… Não Sei… Onde estou indo…”). “Heroína… é minha vida, minha esposa”, balbuciava Lou Reed depois da banda despencar de uma jam session de barulho ensurdecedor, alternando dois míseros acordes.

Em outras faixas tiravam o glamour das drogas, colocando-as na rotina mundana de qualquer periferia. Tanto “Run Run Run” quanto “I’m Waiting for the Man” (com seu piano martelando os dois acordes sem parar, batendo na cabeça do ouvinte) falavam da rua e da noite – e sua relação com o tráfico de drogas rumo ao consumidor final, seja em pós ou pílulas. A obsessão pelo sintético era traduzida no som, que ainda era uma banda de rock, mas tocando uma mesma estrutura rítmica sem parar, insistentemente. Nestas canções, o grupo se entregava em jam session que passavam dos dez minutos em cima de um mesmo tema, sem parar.

Um dos perdidos que percebeu a banda foi Paul Morrissey, cineasta nova-iorquino e compadre do artista plástico Andy Warhol. Ele acionou o parceiro na hora, sabendo que este procurava expandir sua noção de arte para outras mídias. Já havia causado nas artes plásticas ao mostrar telas com produtos expostos no supermercado e fotos de divulgação coloridas manualmente. Colidia os conceitos de arte e mercado de forma provocativa, sempre perguntando para a crítica e para o público se aquilo era arte e como dizer que aquilo não era arte. Foi um dos caras que inventou o conceito de hype consciente e, depois dos museus e salas de cinema (fazia filmes intermináveis em que nada acontecia pois achava que a sala de cinema ainda era inexplorada como espaço de convívio social), queria abraçar o mundo da música pop.

Andy Warhol e o Velvet Underground foram feitos um para o outro. A banda caiu nos braços do artista, que brincava de ser empresário de banda de rock pela primeira vez e transformou o show da banda em um espetáculo com sua assinatura. E o show do Velvet logo se transformaria em um espetáculo multimídia chamado Andy Warhol Uptight!. Andy trazia toda a trupe da Factory (seu estúdio-base) para continuar o choque de sentidos que imaginava ser um show de rock. Acrescentou à dança a principal musa de seus filmes, Edie Sedgwick, que agora fazia dupla com Malanga. Sobre o grupo, rolavam projeções de filmes de Warhol e Morrissey, enquanto Danny Williams cuidava do sistema de iluminação, Nat Finkelstein tirava fotos dos espectadores sem se anunciar e Bárbara Rubin filmava o público e fazia perguntas constrangedoras para registrar reações tortas.

Era a versão nova-iorquina para o que já vinha acontecendo em San Francisco (nas festas de Ki-Suco Elétrico promovidas por Ken Kesey ao som do Grateful Dead) e em Londres (nas noitadas intermináveis do povo do jornal International Times, ao som do Pink Floyd). Mas se na Califórnia essa combinação parecia um monte de vagabundos chapados e na Inglaterra abria conexões improváveis com a cultura pagã e a era vitoriana, em Nova York ela era oferecida cínica e cinza.

E para criar o contraponto para uma banda que se apresentava de preto e de óculos escuros, Andy chamou uma modelo e atriz que andava ao seu redor. Nico já havia participado de alguns filmes de Warhol e tinha um pequeno currículo invejável: uma ponta em La Dolce Vita, de Fellini, um filho que dizia ser de Alain Delon, uma música de Dylan composta para ela (“I’ll Keep It With Mine”), um compacto lançado pela gravadora do empresário dos Stones e uma gravação com Serge Gainsbourg. Sua presença gelada e sotaque carregado ajudavam a abrir portas – ninguém resistia ao tamanho da mulher. Nem Andy Warhol, que a colocou sob um holofote branco e na frente do Velvet, fazendo Reed entregar algumas composições para ela.

Para Nico, Lou Reed passou “All Tomorrow’s Parties”, que ganhou o tom solene com sua voz. “Mo” segurava o ritmo constante, monótono, alternando bumbo e pandeiro, enquanto Cale novamente criava uma base repetitiva a partir de um exercício de piano clássico. O clima de estranheza era acrescido da guitarra de Reed, com todas as cordas afinadas em ré. Por cima de tudo, Nico sobrevoava como uma sombra gigantesca, anoitecendo as tais festas de amanhã com um vocal quase robótico.

As outras duas músicas de Nico haviam sido compostas para ela: a bossa-novinha “Femme Fatale” chegava a ser óbvia e era claramente um elogio a seus dotes “artisticos” e um agrado para Andy Warhol, enquanto uma das mais belas canções de Reed, “I’ll Be Your Mirror”, sugere até que, em algum momento, o próprio Lou havia cedido aos encantos de Nico. A banda não gostou da ingerência, mas ela não era parte do grupo, e sim de um novo espetáculo multimídia que Andy Warhol estava montando. E o Uptight!, que aconteceu na Cinematheque nova-iorquina em fevereiro de 1966, com mais cara de performance do que de show, era só o ensaio para o novo projeto do papa da picaretagem.

O Exploding Plastic Inevitable (o nome do novo espetáculo havia sido pinçado por Morrissey de palavras escolhidas aleatoriamente na contracapa do disco Bringing it All Back Home, de Bob Dylan, que traz Rubin na capa, ao lado de Dylan) rodou os Estados Unidos durante em 1966 sob vaias e trapalhadas. A completa inexperiência de Warhol em gerir uma banda era o melhor contraponto para uma banda que afrontava o público fora de Nova York. Junkies branquelos gays do mundo da moda e das artes plásticas, mesmo para os timidamente freaks anos 60, era muito pra cabeça das pessoas. Mas todo o barulho ajudava a lenda da banda crescer. Na Califórnia, se tretaram com os fãs do Grateful Dead e de Frank Zappa, mas chamaram a atenção de Marshall McLuhan. O nome de Warhol atraía um outro tipo de público para os shows de rock e a colisão entre pop e maturidade proposta no encontro dos Beatles com Bob Dylan ganhava contornos radicais e caricatos.

Mas toda a confusão era pequena perto do impacto sonoro do grupo. Explorando fronteiras do ruído inéditas para a música pop, o Velvet embarcava em jam sessions intermináveis ou em canções curtas e diretas, que aos poucos surgiam no repertório para tomar espaço de covers dos anos 50, como “There She Goes Again”. Mas ainda havia improvisos insuportáveis como “Black Angel’s Death Song” e “European Son”, que eram feitas para incomodar o público. Era uma continuação natural da negação de Dylan ao tornar-se elétrico, só que os limites da eletricidade eram muito mais amplos.

Quando a banda gravou o disco em abril de 1966, a relação entre o circo original já estava desgastada. Não havia previsão de lançamento do disco e a banda gravou sem ter um produtor de fato. Apesar da lenda manter que a produção do disco é de Andy, havia só uma pessoa com o mínimo de noção de gravação no estúdio Scepter (o técnico John Licata), o que forçou o executivo Norman Dolph a dar uma mão para a banda durante os registros. No fim, John Cale foi quem soube traduzir o espírito do grupo para o estúdio, embora Lou Reed nunca tenha dado o braço a torcer e prefira dar crédito a Warhol, que mesmo que não tivesse produzido o disco de fato, foi quem propiciou sua existência. O Exploding Plastic Inevitable se apresentaria pela última vez naquele mesmo mês – e o Velvet continuaria esperando notícias sobre o lançamento do disco.

Em novembro de 1966, voltaram mais uma vez para o estúdio, o Mayfair, para gravar mais uma faixa (“Sunday Morning”), pois o disco seria lançado em 1967. E assim foi, em março, com a clássica capa com a banana estilizada por Andy Warhol e o nome da banda antecendendo o nome da vocalista, em mais uma negação dos valores estabelecidos. A contracapa, no entanto, causou problemas para o grupo, pois havia uma foto em que o rosto do ator Eric Emerson aparecia projetado sobre a banda em um filme de Andy (Chelsea Girls). Correndo o risco de tomar processo, a gravadora MGM recolheu o disco das lojas na semana em que as resenhas começaram a aparecer nos jornais e revistas. Mesmo quem quisesse saber o que era o grupo não conseguia encontrá-lo.

O disco só voltou às lojas dois meses depois – e sem conseguir tocar no rádio (basicamente devido aos temas), o Velvet iniciava sua carreira cult ao nunca figurar na parada dos 100 discos mais vendidos da semana, dando origem à clássica frase atribuída a Brian Eno: “Poucas pessoas compraram Velvet Underground & Nico. Mas quem comprou, montou uma banda”.