The Singles Collection – Kinks
Os Kinks costumam ser menosprezados pela história. Sua importância iguala-se à de grupos como Who e Rolling Stones, mas seu hermetismo inglês e a dificuldade em lidar com os padrões do showbusiness (tema recorrente de algumas de suas melhores faixas), o colocaram no segundo escalão do rock britânico dos anos 60. Injustiça: a banda formada pelos irmãos Ray (guitarra e vocal) e Dave Davies (guitarra e vocal), Mick Avory (bateria) e Pete Quaife (baixista, depois substituído por John “Nobbly” Dalton) não é apenas uma das principais bandas de rock do período, como Ray Davies é um dos melhores compositores pop da segunda metade do século. Aliando os diferentes e complementares lados da moeda, os Kinks têm a melhor fase de sua carreira revista nesta ótima coletânea.
As duas primeiras faixas de Singles Collection mostram exatamente o que eram os Kinks em seus primeiros dias. Tanto a versão para “Long Tall Sally”, de Little Richard, quanto a original “You Still Want Me” revelam que o grupo dos irmãos Davies tinha mais garra e disposição do que talento propriamente dito. As coisas passam a mudar com “You Really Got Me”. Eleita pelo lendário crítico Lester Bangs como o elo perdido entre “La Bamba”, de Ritchie Havens, e “No Fun”, dos Stooges (que, por sua vez, faria a ponte com “Blitzkrieg Bop”, dos Ramones), o terceiro single dos Kinks trazia a energia de uma banda juvenil, graças ao riff primitivo e ao esfuziante solo de guitarra (que a lenda reza ser de Jimmy Page, fato negado com veemência por qualquer Kink) com o primeiro espasmo de senso melódico do líder do grupo, enunciado pelas sutis mudanças de tom no meio da canção.
As coisas começavam a dar certo para o grupo. “All Day and All of the Night” seguia a fórmula do compacto anterior: um frase de guitarra repetida por toda a canção martelando o ritmo ao lado da bateria, solo tocado a todo gás e vocais balbuciados sem compromisso. A batida primitiva da canção e seu vocal acompanhando o riff foram surrupiados mais tarde pelos Doors em “Hello I Love You”. A balada “Tired of Waiting of You” muda a equação do sucesso para manter-se no topo. “Sabia que para sobreviver, tínhamos de mudar. Não podíamos repetir a mesma fórmula”, explica Ray no encarte do disco, “este foi um fator contínuo em nossa carreira”. Ao reduzir a marcha do ímpeto adolescente, Ray Davies aos poucos retornava para os dias anteriores aos Kinks, quando se apresentava ao lado do irmão cantando canções convencionais – e a parte central da canção mostra que este rumo seria seguido. Este seria o desafio proposto pelos Kinks: juntar o vigor do rock’n’roll com a perfeição estrutural do cancioneiro do século 20. Tudo parecia dar certo, mas ainda faltava um elemento.
O grupo passou a testar diferentes possibilidades durante o ano de 1965: ritmo (“Everybody’s Gonna Be Happy”), progressões de acordes (“Set Me Free”), técnicas de gravação (“See My Friends”) e potencial radiofônico (“Till the End of the Day”). Com “Where Have All the Good Times Gone?”, involuntariamente imitando Bob Dylan (como John Lennon fazia ao mesmo tempo nos Beatles), Davies descobriu a chave para reunir as qualidades do grupo. Tornou-se um crítico social com o humor ácido que logo se tornaria tipicamente inglês com a exportação dos jovens comediantes do Monty Python.
“Dedicated Follower of Fashion” inaugura o ano de 1966 com uma pequena pérola do repertório dos Kinks. Era a primeira canção a criticar vários estereótipos da vida urbana inglesa, ganhando imediato contato com o público britânico. Ray Davies passa a descrever o dia-a-dia londrino com muita propriedade, mesclando elementos de rock’n’roll à musicalidade de carrossel da capital inglesa. Resgatando as melodias metronômicas da Inglaterra vitoriana, ele atualiza a Londres tradicional para os dias de Swinging London, se tornando uma referência até mesmo entre seus contemporâneos – vide Paul McCartney, que sempre dedicou alguma faixa em seus discos pós-1966 a jazzinhos vaudeville como “Your Mother Should Know”, “Honey Pie” e “When I’m 64”. Com “Dedicated…”, os Kinks iniciavam uma fase de crítica social e humor contemporâneo, criando os ares típicos de sua época. É impossível pensar na Londres psicodélica sem esbarrarmos nas composições sarcásticas e deliciosas do grupo.
Depois viriam “Well Respected Man”, a preguiçosa “Sunny Afternoon” (“Eu gosto de viver tão prazeirosamente/ Viver esta vida de luxo/ Espreguiçando-se numa tarde ensolarada/ No verão”), “Dead End Street” e o ápice de sua carreira de singles, a perfeita “Waterloo Sunset”. Ao mesmo tempo em que aprimorava a forma de descrever a vida diária na Inglaterra do fim dos anos 60 (reflexo de um exílio forçado nos Estados Unidos), Ray Davies revelava-se um compositor versátil e de extremo bom gosto, liderando sua banda como um maestro moderno, um Brian Wilson inglês. Enquanto todos seus contemporâneos de Invasão Britânica cantavam a expansão da consciência em referências alheias e psicodélicas, Ray olhava para seu país e seu povo, observando a classe média britânica como poucos colunistas de costumes. Sua viagem era interior e outras jóias – como “Autumn Almanac” e “David Watts” (regravada pelo Jam nos anos 70) – ajudam-nos a compreender seu ponto de vista. Ao mesmo tempo, seu irmão Dave optava por um lado mais pop, com suas próprias canções, como a bela pero enfadonha “Death of a Clown” e “Suzanah’s Still Alive”.
No final dos anos 60, o grupo passou a dedicar-se a óperas rock, como Village Green Preservation Society e Arthur, caricaturas grotescas do status quo inglês em canções que orgulhariam qualquer integrante da família real – não fossem as letras. Enfatizando os álbuns, os Kinks desandaram nos singles, deixando-os para canções menores como “Wonderboy” e “Days”. Duas exceções à fase são pontos altos do grupo: a ácida e envolvente “Victoria” (regravada nos anos 80 pelo Fall) e “Lola” (a primeira canção sobre um travesti). A coleção termina a fase da gravadora Pye (representada nos EUA pela Reprise) com a heterodoxa e divertida “Apeman”, onde dançando ao sabor de ritmos latinos, Ray Davies celebra a vida natural do homem das cavernas.
A coletânea não faz apenas jus à reputação do grupo como é uma excelente porta de entrada para o universo dos Kinks, soterrado pela história devido ao tamanho de grupos como Beatles, Stones, Led Zeppelin, Cream e Who. Influência declarada de todo o britpop e até de brasileiros como Jupiter Apple e Grenade, os Kinks têm sua primeira e melhor fase tratada com dignidade e classe. Só é de se lamentar a ausência do segundo disco da compilação, que conta com dois volumes na edição inglesa (com takes inéditos, demos e novos tratamentos de estúdio de algumas das melhores faixas do grupo).
1. Long Tall Sally
2. You Still Want Me
3. You Really Got Me
4. All Day and All of the Night
5. Tired of Waiting for You
6. Everybody’s Gonna Be Happy
7. Set Me Free
8. See my friends
9. Till the End of the Day
10. Where Have All the Good Times Gone?
11. Dedicated Follower of Fashion
12. Well Respected Man
13. Sunny Afternoon
14. Dead End Street
15. Waterloo Sunset
16. Death of a clown
17. Autumn Almanac
18. David Watts
19. Susannah’s still alive
20. Wonderboy
21. Days
22. Plastic Gun
23. Victoria
24. Lola
25. Apeman