Picassos Falsos e os 25 anos do Supercarioca

PicassosFalsos-2014

Um dos discos mais subestimados do rock brasileiro dos anos 80, o segundo disco dos Picassos Falsos, Supercarioca, pode ter uma sobrevida graças a um documentário que voltou àquele período pós-Fausto Fawcett e pré-funk carioca da cidade maravilhosa. O grupo diluía o inevitável pós-punk daqueles dias com uma reinvenção do samba com um pé no rock clássico – citando riffs de Jimi Hendrix, suingando funk dos anos 70 e versos de samba tradicional cinco anos antes do Planet Hemp começar a fazer isso. Supercarioca é um disco sobre um Rio de Janeiro em mutação, quando Copacabana já tinha deixado de ser a princesinha do mar, a bossa nova ganhava tons sépia e os restos da Dancing Days e do rock de bermudas começaram a se metamorfosear num malandro arrogante, o protagonista dessa saga.

25 anos depois o grupo voltou a se reunir para tocar o disco ao vivo na íntegra pois parecia que uma fase da carreira da banda, que nem sequer existia mais. A volta rendeu alguns shows e, agora, o lançamento deste material digitalmente, via iTunes.

O show do disco foi recriado em estúdio e filmado em vídeo, que pode ser visto abaixo.

E troquei uma idéia com o Humberto Effe por email sobre esta nova fase da banda.

Como surgiu a ideia de revisitar Supercarioca na íntegra?
Já estávamos fazendo alguns shows tocando o Supercarioca inteiro em sua ordem original. Em um desses shows, no Circo Voador, abrindo para o Lobão, o Rafael Ramos, diretor da Deck, que já era fã da banda, chapou com o show e na sequência imediata nos contactou para fazermos aquele mesmo show nos estúdios da gravadora. Gravamos vários takes diretos durante um dia inteiro, com uma filmagem espetacular que depois foi muito bem editada.
O resultado foi esse especial no Canal Brasil e que agora está disponível no YouTube, iTunes e vários outros meios na web.

Qual a importância deste disco para o Picassos Falsos?
No primeiro disco de 1987, já mostrávamos uma proximidade com a musica brasileira chamada “tradicional”, era um afoxé em “Contrastes”, um quase xaxado em “Bater a Porta”, uma citação de Ismael Silva em “Carne e Osso”. O Supercarioca foi a evolução disso, onde fomos mais fundo nessa relação, que para nós sempre foi espontânea. Foi parte mesmo da nossa formação musical. Sabíamos que a gravadora achava o disco ousado demais e que, na verdade, queriam uma outra “Carne e Osso”, uma outra “Quadrinhos”, mas resolvemos seguir nosso caminho pagando alguns preços na época, mas o resultado esta aí.

Como foi revisitar o disco 25 anos depois?
Para nós, ele sempre soou muito atual. É como se ainda não tivéssemos trabalhado muito esse repertório. Ainda faltava rodar mais, ainda falta ser mais conhecido. E não a nada melhor que uma nova gravação, ao vivo, com uma pegada, um som mais de hoje. Apesar de não gostarmos de revivals, para nós essa releitura é quase como se estivéssemos reapresentando o Supercarioca.

Vocês têm planos de fazer shows?
Sim, já temos alguns marcados, como agora no dia 4 de outubro em Realengo, no Rio, na Arena Cultural Arlindo Cruz. Em breve, até o fim do ano, acreditamos que estaremos lançando um novo single também. Aguardem!

Picassos Falsos – Supercarioca

Procurei nos meus arquivos online e vi que não tinha publicado aqui no Trabalho Sujo um texto que escrevi sobre o Supercarioca em 1994, num jornalzinho que eu fazia com uns amigos quando estudava na Unicamp. O texto foi republicado na coluna que tive no Gafieiras, na década passada, site do Ricardo Tacioli com quem eu dividia apartamento nos tempos da Unicamp – e era um dos amigos com quem eu fazia o tal jornal (chamado O Leopoldo, hahaha). Mas ainda não tinha aparecido aqui neste site – até agora. Dei uma editada e releve o fato de ele ter sido escrito quando eu tinha apenas 19 anos…

supercarioca-picassosfalsos

Picassos Falsos – Supercarioca

Mesmo com uma curta existência, poucos grupos de rock nacional foram tão felizes quanto o Picassos Falsos. Enquanto grande parte da produção brasileira sempre limitou-se a copiar o que vinha de fora – às vezes do jeito mais tosco possível –, o quarteto carioca mostrava criatividade, inventividade e, principalmente, orgulho de ser brasileiro. Formado por Humberto Effe (vocais e letras), Luiz Gustavo (guitarra e violões), Zé Henrique (baixo, que seria substituído no segundo disco pelo Luiz Henrique Romanholli – é, o jornalista d’O Globo), e Abílio Azambuja (bateria e percussão), o conjunto pode ser colocado ao lado dos Mutantes, sem muita dificuldade, quando nos referimos a rock com cara de Brasil.

Formado em meados dos anos de 1980, o grupo pode ser definido como uma banda de rock afeita ao samba e funk (não confunda com o samba-rock, que é o caminho de volta). Gravaram seu primeiro disco (homônimo em 87) pelo selo Plug, da gravadora BMG, que não era nada mais do que um grande pau-de-sebo para encontrar um artista que vendesse bem e apostar tudo nele. Ao lado do Picassos, estavam no Plug nomes como De Falla, Violeta de Outono, Nenhum de Nós, Hojerizah e TNT, mais dez outros grupos. O escolhido foi o trio gaúcho Engenheiros do Hawaii, que até hoje figura nas paradas de sucesso, para a infelicidade do bom gosto.

O Picassos até teve uma certa repercussão com seu primeiro disco, principalmente com as faixas “Carne e osso”, “Quadrinhos” e “Que horas são?”. A primeira, provavelmente a mais conhecida do grupo, ficou famosa por seu refrão hipnótico com referências sexistas (“O meu coração / Preso nestas celas / Abre as pernas / da tua paixão”) e citações de Ismael Silva (“Se você jurar”) e Tim Maia (“Cristina”). Essas duas citações, aliás, serviam de referencial para o som do grupo: velha guarda do samba carioca e soul/funk brasileiros.

Mas o primeiro disco ainda estava perdido entre a necessidade de se mostrar culto e a poesia pseudo-intelectual de Humberto Effe. Aliás, Picassos Falsos, o disco, vale mais pela parte sonora – conduzida pela grande guitarra de Luiz Gustavo – do que lírica. Mas uma faixa – a última do lado A, chamada “Últimos carnavais” – dava pistas de que a tendência era melhorar. Seu segundo e último é sua obra-prima. Supercarioca foi lançado em 1988 e retomava aquilo que o grupo prometia na faixa citada acima: samba e rock em todos os sentidos.

Supercarioca deixa claro, desde a capa, suas intenções. Uma tomada geral no bairro de Santa Tereza é tão sutil quanto esclarecedora, afinal o bairro é famoso por sua população de malucos. Um morro sem favela, habitado por doidos é o cenário perfeito para o casamento do rock com o samba, que apesar de diferentes são gêneros primos – o samba surgiu da tristeza dos escravos africanos por terem sido arrancados de sua terra natal, a mesma do blues, que surgiu da mesma forma e que é o pai do rock’n’roll.

O disco começa com “Retinas”, que abre com a percussão marcando ritmo de capoeira para a entrada de Humberto, que faz com que o ouvinte se sinta como alguém indo comprar algo em um lugar que não conhece, sentindo-se acuado. A entrada do baixo e da bateria dão aos poucos um ar de selva e o vocalista assume uma postura de chefe de quadrilha que ameaça o visitante com palavras, mas que ao mesmo tempo que ameaça, se faz parecer amigável: é a essência do malandro, a dicotomia bondade-maldade na mesma pessoa e ela está presente em todo o disco, de diversas formas. A guitarra de “Retinas” é microfonia gemida constante, forjando o caos da cidade moderna, bem distante da Lapa e da boemia dos anos 20. O malandro ainda é o mesmo, mas os tempos são outros.

“Bolero” continua cantando o amor e a cidade, contrastando os perigos de ambos, enquanto a música cavalga num baixo repetitivo e cita Jimi Hendrix (“3rd stone from the sun”). O disco continua com “Marlene”, um samba-balada com citações à Noel Rosa (“Último desejo”), e “Verões” continua falando em amor e cidade, desta vez do calor de ambos e como é amar num país tropical, numa cidade do terceiro mundo, que não terá chance de chegar ao primeiro. “Wolverine” fecha o lado A (o disco ainda não foi lançado em CD), um funk rock à Hendrix, guitarras cheias de wah-wah. Pela primeira vez no disco, o grupo cita a festa que é fundamental no desenrolar do conceito de Supercarioca: o carnaval, descrevendo a relação da festa com a pobreza – “A felicidade existe quando todo mundo pula assim”. A música começa com violões com cordas de aço tocados com força, outra característica do disco.

O lado B é mais conceitual que o A e “Sangue” retoma o carnaval (“Quando fevereiro chegar / Vamos pra rua dançar / É pouco tempo pra tanta ilusão”) e aproxima o samba do rock, compensando um com o outro (“Mas se meu samba morrer… / Yeah, yeah, yeah”). A frase do início do funk-samba (“Estarei presente no final dos dias / Cantando, quem sabe, novas melodias”) retoma o malandro do início que aos poucos se metamorfoseia no Supercarioca do título – um malandro perfeito, adequado aos novos tempos, sem medo de enfrentar o fim de tudo e que tem o rock como trilha sonora.

“O homem que não vendeu sua alma” sai um pouco do disco, levando um rhythm’n’blues sobre vida urbana e honestidade. O disco ganha mais suingue de “Fevereiro” em diante. Esta faixa profetiza que o fim do Rio de Janeiro acontecerá durante o carnaval (“Já que hoje o morro não desce mais / Desaba no meio da rua / Mostrando da maneira mais sutil / Quem faz o mais belo carnaval do planeta”). “Fevereiro 2” faz referências musicais à Bahia, ao Caribe, ao pagode e ao samba de breque, falando de violência e crime passional. “Rio de Janeiro” traz de volta o malandro, tratado como “herói”, “trapo humano”, “corpo estranho” e “deus” e com uma descrição tropicalista do Rio (“Ferragens e palmeiras”, “Avenida e lama”, “Monumentos fardados”, “Papagaios e burgueses”) e constatando o caos carioca, cidade que atinge “dias de paz só durante o temporal”. A faixa-título, um rock pesado, resume o disco e o Rio, e merece citação integral.

“O Supercarioca chegou com seus emblemas culturais
Samba, praia, bola e tantas coisas mais
O Supercarioca chegou esquecendo a vida entre copos de cerveja
Quando se chutam latas sempre se faz mais que um gol

O Supercarioca chegou no alto da montanha, entre pulseiras de prata
Mostrando quem manda na grande cidade

O Supercarioca chegou
Era mais um corpo crivado de balas perto do Cristo Redentor
Entre fotos e manchetes de jornais cobertas de sangue
O Supercarioca chegou
O Supercarioca
Supercarioca”

Picassos Falsos 2013

supercarioca

Nem sabia que os Picassos Falsos tinham voltado à ativa e estão tocando ao vivo seu clássico Supercarioca, um dos grandes discos brasileiros dos anos 80 que muito pouca gente ouviu – quem me deu esse toque foi o Rafael, que tá cuidando do lançamento de um documentário sobre essa volta. Foda.