Na “Fun House” dos anos 90

Wylde-Ratttz

Quando quis recriar a cena glam rock norte-americana do começo dos anos 70 em seu controverso filme Velvet Goldmine, de 1997, o diretor Todd Haynes convidou o guitarrista Don Fleming, da banda Gumball, para criar uma versão fictícia dos Stooges para o filme. Fleming arregimentou um time que, além dele mesmo, ainda incluía dois integrantes do Sonic Youth (Thurston Moore e Steve Shelley), o vocalista do Mudhoney Mark Arm, o baixista do Minutemen Mike Watt, Sean Lennon (pois é!) e um stooge original (o guitarrista Ron Asheton). Batizados de Wylde Rattz, este supergrupo gravou um disco inteiro na época, além de uma versão insana para “Fun House” dos Stooges – que só vieram à tona nesta quarentena. Sente só essa versão do clássico dos Stooges, que conta apenas com Thurston Moore, Steve Shelley, Mark Arm, Mike Watt e Ron Asheton:

E esse disco inteirinho então? Olha só que pesado!

Rapaz…

Um trio com Steve Shelley

kishimoto-shelley-valerio

Lee Ranaldo passou por São Paulo com o eterno baterista do Sonic Youth, Steve Shelley, a tiracolo, mas Shelley preferiu esticar mais uns dias e nesta quarta dedica-se a uma jam session ao lado do Guilherme Valério (do Hab) e o do Fabio Kishimoto, ali na Associação Cultural Cecília, em Santa Cecília. “São músicas minhas, algumas inéditas e outras não. Arranjei essas faixas junto com o Kishimoto e fizemos três ensaios antes de ensaiar com o Steve. Metade das músicas foram compostas na guitarra e a outra metade na kalimba”, me explicou Valério por email. “Eu conheci o Steve da primeira vez que ele veio tocar em SP com o Lee Ranaldo, em 2013, acho. Eu estava trabalhando na produção desse show com a Desmonta Discos e quando ele foi embora me deu um cartão e disse ‘if you need a drummer, call me’. Coloquei aquele cartão na geladeira e ficava olhando e sonhando com aquilo, haha. Dessa vez, quando soube que eles viriam novamente, sugeri pro meu irmão, Luciano, que é produtor executivo da Desmonta, de tentarmos esse projeto. Ele topou na hora e sugeriu o Kishimoto, por saber que ele e Steve eram amigos de longa data. E foi isso, nossa única reunião pra tocar foi ontem e hoje nos apresentaremos.” O show vai ser registrado e pode ser lançado futuramente: “O que posso te adiantar é que o trio funcionou super bem e a ideia é levar esse projeto adiante.” O show começa cedo (às 21h) e a entrada na casa fica sujeita à sua lotação. Maiores informações na página do evento no Facebook.

Como foi o show do Thurston Moore em São Paulo

thurstonmoore-sp

Thurston Moore montou um mini-Sonic Youth para gravar seu novo disco solo, The Best Day. Primeiro veio o próprio Steve Shelley na batera, velho escudeiro de discos anteriores. Para o baixo chamou uma mulher (ninguém menos que que Debbie Googe, ex-My Bloody Valentine) tão experimetalista em seu instrumento quanto sua ex-mulher, Kim Gordon. E para a outra guitarra chamou um clone inglês de Lee Ranaldo, o inglês James Sedwards, um instrumentista educado no rock clássico (o glam era evidente em certos trechos de seu instrumento), mas completamente inserido no contexto de noise e microfonia proposto pelo velho indie.

Mas em sua recente apresentação em São Paulo, esse formato foi quebrado devido a um problema de saúde – Steve Shelley descobriu, no Brasil, que havia descolado a retina e por isso tinha de se afastar das baquetas. E o quanto antes, tanto que nem pode subir no palco do Cine Jóia. Em vez dele a produção chamou o baterista que acompanha Jair Naves, Babalu, que foi pego de surpresa com o convite e recebeu aulas de bateria do próprio Steve Shelley durante o ensaio (que deveria ser apenas uma passagem de som). O Lucio, que organizou o show, conta como foi a saga sônica de um baterista desconhecido para o palco com um dos grandes nomes do underground mundial.

Babalu entrou completamente em sintonia com o trio e, apesar do (natural) ar de insegurança no início do show, não comprometeu em nenhum momento, seguindo a cartilha que havia aprendido na mesma tarde à risca. Profissa. À sua frente, três veteranos das cordas elétricas duelavam-se entre espasmos de ruído e delicados dedilhados. O fio condutor foi basicamente o Best Day que Thurston acaba de lançar – a única fuga deste script foram “Pretty Bad” e “Ono Soul”, de seu primeiro disco solo, Psychic Hearts, a última também a única música de outro disco que ele tocou quando trouxe seu Demolished Thoughts ao mesmo palco paulistano há dois anos e meio (além de “It’s Only Rock’n’roll (But I Like It)”, dos Rolling Stones).

Thurston e sua guitarra já são um só faz muito tempo, então ele nem sequer precisa pensar para levá-la de um extremo a outro – é sua assinatura de palco, ao lado de seu grave vocal quase balbuciado e seu ar de criança de dois metros de altura. Esticando músicas do disco desse ano para além dos 10 minutos, ele inevitavelmente caía em breaks instrumentais em que desafiava os outros músicos a sair do formato canção, por mais bruta que fosse sua versão, quebrando-se em tsunamis de microfonia e marolinhas ambient, regendo seus músicos com o braço de seu instrumento. Um show catártico, conciso, intenso e reconfortável, uma vez que sempre podemos reconhecer os mesmos traços que desenharam a discografia de um grupo tão importante para aquele meio quanto o Sonic Youth. Venha mais, Thurston!

Abaixo os vídeos que fiz do show:

O primeiro show do Hallogallo 2010

E pra quem quiser ouvir como foi o show de estréia do projeto de Rother em agosto desse ano, em Nova York, é só dar uma sacada no link abaixo, agilizado pelo povo da rádio WNYC. Foi um show mais curto do que esse de São Paulo.

Kraut São Paulo

Hallogallo 2010
Sesc Vila Mariana @ São Paulo
Terça-feira, 26 de novembro de 2010


“Hallogallo”

Durou quase uma hora e meia, mas pareceu menos de um segundo ou uma eternidade. Ao encarnar o robótico motorik no palco do Sesc Vila Mariana na terça-feira passada, o alemão Michael Rother parecia que iria levar o público para os anos 70 do krautrock, o influente rock psicodélico alemão de bandas como Can e Faust. Um dos protagonistas daquela cena, Rother era metade do Neu!, a dupla alemã que completava o Kraftwerk original no início daquela década, mas que, após romper com o núcleo-duro dos pais da eletrônica moderna (Ralf Hutter e Florian Schneider), resolveu seguir uma carreira própria. Formada apenas por Michael na guitarra e efeitos e Klaus Dinger na bateria, o Neu! não foi apenas uma das principais bandas deste período alemão como sintetizava sua essência rítmica em peças intermináveis que insistiam no mesmo ritmo, metronomômico, que seria associado eternamente ao gênero. E o pulso preciso e quadrado do krautrock, personificado essencialmente no Neu!, mas presente em todas as bandas deste período, talvez seja a principal contribuição musical daquela cena – o ritmo industrial e monótono como base para criações sonoras abstratas. É como se alguém tivesse tirado uma chapa do pulmão musical do século 20 e expusesse aqueles estranhos, mas calmos, padrões repetitivos como um mesmo fluxo sonoro – que pode ser alinhado ao próprio ritmo da vida…


“Karussell”

O problema é que o Neu! não durou muito tempo e gravou apenas três discos, no meio dos anos 70. Rother e Dinger tentaram uma volta nos anos 80, mas novas brigas fizeram o disco da segunda vinda ser arquivado e posteriormente pirateado. Desde então Rother insiste em voltar ou relançar o catálogo da banda, mas Dinger era categórico em não querer saber de nada do Neu!. O máximo que concedeu foi a autorização para o relançamento dos discos da banda, mas nada fora do que havia sido lançado originalmente, como Rother insistia.


“Neutronics 98”

Mas Dinger morreu há dois anos e Rother finalmente pode revirar a tumba do Neu!. A expedição arqueológica não apenas garantiu o relançamento de todo o catálogo do grupo em uma caixa cheia de extras, como garantiu a reencarnação ao vivo das músicas gravadas com o grupo. Para isso chamou o engenheiro de som Aaron Mullan, com quem trabalhou em uma apresentação de outra reencarnação vivida por Rother, o trio Harmonia, do qual fez parte após terminar o Neu!. Mullan também trabalhava com o Sonic Youth e imediatamente fez a conexão entre Rother e Steve Shelley, um baterista à altura do legado de Dinger, e assim os três deram vida ao projeto Hallogallo 2010, dedicado à obra de Rother no Neu!.


“Delux”

Há uma certa nobreza de Rother em não colocar seu nome no título da banda ao mesmo tempo em não querer dizer que o novo trio é uma reencarnação do Neu!. O grupo é batizado com o nome de uma das faixas mais emblemáticas do repertório associado à mitologia do original alemão, que batizou dois discos com o ano de seus lançamentos após o próprio nome. Mas ao mesmo tempo há um recorte específico sobre a obra do Neu! (nem todas as músicas são da banda, algumas são de seus discos com o Harmonia, umas de seus discos solo), pois foram escolhidos temas em que o baixo e a bateria seguram o ritmo de forma incessante, submetendo o público (repleto de artistas de música experimental da cidade) a um transe abstrato mas vivo, de fazer bater o pé ou balançar a cabeça. E isso era apenas um dos elementos do Neu! – a outra metade eram experimentações com velocidades de rotação e texturas sonoras, muitas delas com vocais. Esta segunda parte do Neu! ficou completamente de fora do show de terça passada.

Assim, o show em São Paulo primou pela presença dos convidados, uma cozinha segura e pesada, o baixo de Mullan sendo lentamente transformado em ritmo enquanto a bateria de Shelley alternava entre os pratos tocados com baquetas de ponta de feltro e o ritmo motorizado que logo mais conduzia as faixas. Quase todas elas começavam com Rother nos efeitos sonoros, manipulando texturas e microfonias até chegar a um ciclo específico de som, que dava margem para Shelley e Mullan determinarem o compasso dos próximos dez minutos. Dez minutos que pareciam ser meia hora ou um som eterno, que bate no pulsar da vida do planeta e que, por alguns instantes na semana passada, foram sintonizados eletricamente por dois nova-iorquinos e um alemão.


“Negativland”

Leia mais:
Neu!
Krautrock
Kraftwerk

On the run 67: Daily Session with Steve Shelley

Ainda continuando no clima Nova York, chamo o caçula do Sonic Youth (que mané Jim O’Rourke, esse é só um fã), convocado pelo Daily Session para assumir um setzinho para o site e o cara me sai com essa sequência inacreditável de Darondo com Scott Walker, “Canto de Ossanha” com “Vampire Blues”, Jamaicans com Gainsbourg, Alex Chilton com B.B. King… Muito mestre.

Daily Session with Steve Shelley (MP3)

Gil Scott Heron – I’m New Here
The Monkees – Porpoise Song
Darondo – Didn’t I
Brenda Holloway – Every Little Bit Hurts
Stranger Cole & Patsy Tood – Down The Trainline
The Jamaicans – Baba Boom (Ba Ba Boom Time)
Vivian Stanshall – Calypso To Colapso
Serge Gainsbourg – Pauvre Lola
Olatunji – Kiyakiya (Why Do You Run Away?)
Serge Gainsbourg – Joanna
Chuck Berry – Thirteen Question Method
De Baden e Vinicius – Canto De Ossanha
Jimmy Lewis – The Girls From Texas
Scott Walker – Jackie
Alex Chiton – My Rival
Neil Young – Vampire Blues
Harmonia – Deluxe ( Immer Wieder)
Dan Penn – Nobody’s Fool
Suzie Higgie&Conway Savage – The Letter
The Triffids – Tender Is The Night
Jack Kerouak – On The Road
Dan Penn – Skin
Nina Simone – Tell Me More And More and Then Some
Gil Scott Heron – NewYork Is Killing Me
JIm James&Colexico – Goin’ To Acapulco
Bob Dylan – Wigwam
David Crosby – Traction In The Rain
Fleetwood Mac – Albatross
Big Maybelle – Gabbin’ Blues
Wynonie Harris – Wasn’t That Good
Jimmy Liggins – I Ain’t Drunk
William Devaughn – Be Thankful What You Got
Jimmy Nelson – T99 Blues
Bobby Bland – Share Your Love With Me
BB King – Please Love Me
Tom Waits – Danny Says
Gil Scott Heron – On Coming From A Broken Home (Part 1)
Gil Scott Heron – Me And The Devil

HermetoKraut

Ainda sobre o Steve Shelley, ele é o baterista da atual encarnação de uma das metades do Neu!, o mítico e hermético quinto elemento, ao lado do Kraftwerk, do Faust, do Tangerine Dream e do Can, da fundação do pop alemão como o conhecemos hoje. Michael Rother é a metade que comanda o Hallogallo 2010 e convidou o baterista do Sonic Youth para assumir o motorik nas músicas do Neu!, que são a base do repertório do grupo. E a primeira aparição do Hallogallo 2010 do lado de cá do Atlântico acontece em agosto, na cidade-natal de Shelley, quando o grupo toca no Lincoln Center, em Nova York, dividindo o palco com ninguém menos que Hermeto Pascoal. Shelley comemorou a coincidência blipando a incrível “Música da Lagoa”, do velho mago.

Se você estiver por lá nessa época, não perca.