A íntegra do discurso de Slavoj Žižek no OccupyWallStreet

Publiquei, com esforço coletivo de tradução dos leitores do Sujo, o discurso do Žižek no Zuccotti Park, onde tá rolando o OccupyWallStreet. E agora a editora Boitempo, que publica seus livros no país, descolou a íntegra do mesmo discurso, traduzida por Rogério Bettoni. Lá vai:

Não se apaixonem por si mesmos, nem pelo momento agradável que estamos tendo aqui. Carnavais custam muito pouco – o verdadeiro teste de seu valor é o que permanece no dia seguinte, ou a maneira como nossa vida normal e cotidiana será modificada. Apaixone-se pelo trabalho duro e paciente – somos o início, não o fim. Nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas. Há um longo caminho pela frente, e em pouco tempo teremos de enfrentar questões realmente difíceis – questões não sobre aquilo que não queremos, mas sobre aquilo que QUEREMOS. Qual organização social pode substituir o capitalismo vigente? De quais tipos de líderes nós precisamos? As alternativas do século XX obviamente não servem.

Então não culpe o povo e suas atitudes: o problema não é a corrupção ou a ganância, mas o sistema que nos incita a sermos corruptos. A solução não é o lema “Main Street, not Wall Street”, mas sim mudar o sistema em que a Main Street não funciona sem o Wall Street. Tenham cuidado não só com os inimigos, mas também com falsos amigos que fingem nos apoiar e já fazem de tudo para diluir nosso protesto. Da mesma maneira que compramos café sem cafeína, cerveja sem álcool e sorvete sem gordura, eles tentarão transformar isto aqui em um protesto moral inofensivo. Mas a razão de estarmos reunidos é o fato de já termos tido o bastante de um mundo onde reciclar latas de Coca-Cola, dar alguns dólares para a caridade ou comprar um cappuccino da Starbucks que tem 1% da renda revertida para problemas do Terceiro Mundo é o suficiente para nos fazer sentir bem. Depois de terceirizar o trabalho, depois de terceirizar a tortura, depois que as agências matrimoniais começaram a terceirizar até nossos encontros, é que percebemos que, há muito tempo, também permitimos que nossos engajamentos políticos sejam terceirizados – mas agora nós os queremos de volta.

Dirão que somos “não americanos”. Mas quando fundamentalistas conservadores nos disserem que os Estados Unidos são uma nação cristã, lembrem-se do que é o Cristianismo: o Espírito Santo, a comunidade livre e igualitária de fiéis unidos pelo amor. Nós, aqui, somos o Espírito Santo, enquanto em Wall Street eles são pagãos que adoram falsos ídolos.

Dirão que somos violentos, que nossa linguagem é violenta, referindo-se à ocupação e assim por diante. Sim, somos violentos, mas somente no mesmo sentido em que Mahatma Gandhi foi violento. Somos violentos porque queremos dar um basta no modo como as coisas andam – mas o que significa essa violência puramente simbólica quando comparada à violência necessária para sustentar o funcionamento constante do sistema capitalista global?

Seremos chamados de perdedores – mas os verdadeiros perdedores não estariam lá em Wall Street, os que se safaram com a ajuda de centenas de bilhões do nosso dinheiro? Vocês são chamados de socialistas, mas nos Estados Unidos já existe o socialismo para os ricos. Eles dirão que vocês não respeitam a propriedade privada, mas as especulações de Wall Street que levaram à queda de 2008 foram mais responsáveis pela extinção de propriedades privadas obtidas a duras penas do que se estivéssemos destruindo-as agora, dia e noite – pense nas centenas de casas hipotecadas…

Nós não somos comunistas, se o comunismo significa o sistema que merecidamente entrou em colapso em 1990 – e lembrem-se de que os comunistas que ainda detêm o poder atualmente governam o mais implacável dos capitalismos (na China). O sucesso do capitalismo chinês liderado pelo comunismo é um sinal abominável de que o casamento entre o capitalismo e a democracia está próximo do divórcio. Nós somos comunistas em um sentido apenas: nós nos importamos com os bens comuns – os da natureza, do conhecimento – que estão ameaçados pelo sistema.

Eles dirão que vocês estão sonhando, mas os verdadeiros sonhadores são os que pensam que as coisas podem continuar sendo o que são por um tempo indefinido, assim como ocorre com as mudanças cosméticas. Nós não estamos sonhando; nós acordamos de um sonho que está se transformando em pesadelo. Não estamos destruindo nada; somos apenas testemunhas de como o sistema está gradualmente destruindo a si próprio. Todos nós conhecemos a cena clássica dos desenhos animados: o gato chega à beira do precipício e continua caminhando, ignorando o fato de que não há chão sob suas patas; ele só começa a cair quando olha para baixo e vê o abismo. O que estamos fazendo é simplesmente levar os que estão no poder a olhar para baixo…

Então, a mudança é realmente possível? Hoje, o possível e o impossível são dispostos de maneira estranha. Nos domínios da liberdade pessoal e da tecnologia científica, o impossível está se tornando cada vez mais possível (ou pelo menos é o que nos dizem): “nada é impossível”, podemos ter sexo em suas mais perversas variações; arquivos inteiros de músicas, filmes e seriados de TV estão disponíveis para download; a viagem espacial está à venda para quem tiver dinheiro; podemos melhorar nossas habilidades físicas e psíquicas por meio de intervenções no genoma, e até mesmo realizar o sonho tecnognóstico de atingir a imortalidade transformando nossa identidade em um programa de computador. Por outro lado, no domínio das relações econômicas e sociais, somos bombardeados o tempo todo por um discurso do “você não pode” se envolver em atos políticos coletivos (que necessariamente terminam no terror totalitário), ou aderir ao antigo Estado de bem-estar social (ele nos transforma em não competitivos e leva à crise econômica), ou se isolar do mercado global etc. Quando medidas de austeridade são impostas, dizem-nos repetidas vezes que se trata apenas do que tem de ser feito. Quem sabe não chegou a hora de inverter as coordenadas do que é possível e impossível? Quem sabe não podemos ter mais solidariedade e assistência médica, já que não somos imortais?

Em meados de abril de 2011, a mídia revelou que o governo chinês havia proibido a exibição, em cinemas e na TV, de filmes que falassem de viagens no tempo e histórias paralelas, argumentando que elas trazem frivolidade para questões históricas sérias – até mesmo a fuga fictícia para uma realidade alternativa é considerada perigosa demais. Nós, do mundo Ocidental liberal, não precisamos de uma proibição tão explícita: a ideologia exerce poder material suficiente para evitar que narrativas históricas alternativas sejam interpretadas com o mínimo de seriedade. Para nós é fácil imaginar o fim do mundo – vide os inúmeros filmes apocalípticos –, mas não o fim do capitalismo.

Em uma velha piada da antiga República Democrática Alemã, um trabalhador alemão consegue um emprego na Sibéria; sabendo que todas as suas correspondências serão lidas pelos censores, ele diz para os amigos: “Vamos combinar um código: se vocês receberem uma carta minha escrita com tinta azul, ela é verdadeira; se a tinta for vermelha, é falsa”. Depois de um mês, os amigos receberam a primeira carta, escrita em azul: “Tudo é uma maravilha por aqui: os estoques estão cheios, a comida é abundante, os apartamentos são amplos e aquecidos, os cinemas exibem filmes ocidentais, há mulheres lindas prontas para um romance – a única coisa que não temos é tinta vermelha.” E essa situação, não é a mesma que vivemos até hoje? Temos toda a liberdade que desejamos – a única coisa que falta é a “tinta vermelha”: nós nos “sentimos livres” porque somos desprovidos da linguagem para articular nossa falta de liberdade. O que a falta de tinta vermelha significa é que, hoje, todos os principais termos que usamos para designar o conflito atual – “guerra ao terror”, “democracia e liberdade”, “direitos humanos” etc. etc. – são termos FALSOS que mistificam nossa percepção da situação em vez de permitir que pensemos nela. Você, que está aqui presente, está dando a todos nós tinta vermelha.

O video com o discurso segue abaixo:

 

Slavoj Zizek @ OccupyWallStreet

Ouça o que ele tem a dizer (e, de novo, se alguém se dispuser a traduzir, reproduzo aqui) e agradeça a tradução feita pela Mariana, pelo Fred e pelo Daniel. Valeu mesmo, guys:

[…] “[Eles estão dizendo] que nós somos perdedores, mas os verdadeiros perdedores estão lá em Wall Street. Eles foram afiançados por bilhões do nosso dinheiro. Nós somos chamados de socialistas, entretanto, aqui há, de fato, socialismo – para o rico. Eles dizem que nós não respeitamos a propriedade privada. Mas na crise de 2008, mais propriedades obtidas através de trabalho duro foram destruídas do que todos nós estamos estamos aqui para destruir, noite e dia, por semanas. Eles te dizem que nós somos sonhadores; os verdadeiros sonhadores são aqueles que pensam que as coisas podem ir adiante indefinidamente da forma em que estão. Nós não somos sonhadores; nós estamos acordando do sonho que está se transformando em pesadelo. Nós não estamos destruindo nada; nós estamos apenas testemunhando como o sistema destrói a si próprio. Nós todos sabemos [inaudível] de desenhos animados. O gato alcança o precipício, mas continua caminhando, ignorando o fato de que não há nada abaixo de seu chão. Só quando ele olha pra baixo e percebe isso, ele cai. Isso é o que nós estamos fazendo aqui. Nós estamos dizendo para os caras lá em Wall Street, ‘Hey, olhem pra baixo!’

[inaudível] “…Em 2011, o Governo Chinês proibiu, na TV, em filmes e novelas, todas as histórias [inaudível – algo sobre realidades alternativas ou viagem no tempo]. Esse é um bom sinal para a China; isso significa que as pessoas continuam a sonhar com alternativas, ainda que atacados e proibidos, continuam sonhando. Aqui nós não pensamos em proibições, porque [inaudível – “a história”?] oprimiu nossa capacidade de sonhar. Olhem para os filmes que nós vemos a todo o tempo. É fácil imaginar o fim do mundo – um asteróide destruindo toda a vida, e assim por diante – mas nós não podemos imaginar o fim do capitalismo. Então, o que é que estamos fazendo aqui? Deixe me contar a vocês uma velha piada, dos tempos do Comunismo. Um cara foi enviado para trabalhar no leste alemão, vindo da Sibéria. Ele sabia que suas cartas seriam lidas pelos censores, então ele disse a seus amigos: “Vamos estabelecer um código. Se a carta que eu enviar etiver escrita em caneta azul, é verdade o que eu digo; se estiver escrita em caneta vermelha, é falso.” Depois de um mês, seus amigos receberam a primeira carta. Tudo estava escrito em azul. Dizia a carta: “Tudo é maravilhoso aqui. As lojas estão cheias de boa comida, os cinemas passam bons filmes do oeste, os apartamentos são grandes e luxuosos. A única coisa que não se pode encontrar é uma caneta vermelha.” É assim que nós vivemos. Nós temos todas as liberdades que queremos, mas o que está nos faltando é uma caneta vermelha: a linguagem para articular nossa não-liberdade. A forma como somos ensinados a falar sobre liberdade, ‘guerra ao terror’, e assim por diante, falsifica a liberdade. E isso é o que vocês estão fazendo aqui: Vocês estão dando a todos nós uma caneta vermelha.

Há um perigo: Não se apaixonem por si mesmos. Nós temos um momento lindo aqui. Mas se lembrem: Carnavais vêm facilmente. O que importa é o dia seguinte, quando nós temos que retornar à vida normal. Haverá mudanças, então? Eu não quero me lembrar desses dias, você sabe, como ‘Oh, nós éramos jovens, aquilo foi lindo…’ Lembrem-se que a nossa mensagem básica é, ‘Nos é permitido pensar sobre alternativas’ Um tabu é quebrado. Nós não vivemos no melhor mundo possível. Mas ainda há uma longa estrada. Existem questões realmente difíceis, que nos confrontam. Nós sabemos o que nós não queremos, mas o que nós queremos? Que organização social pode substituir o capitalismo? Que tipo de novos líderes nós queremos? Lembram-se: O problema não é a corrupção ou a ganância; o problema é o sistema que te empurra para a corrupção. Tema não só os seus inimigos, mas também seus amigos que estão trabalhando para diluir esse processo, da mesma forma que você toma café sem cafeína, cerveja sem álcool, sorvete sem gordura. Eles tentarão transformar isso em um protesto moralmente inofensivo, um protesto descafeinado. Mas a razão pela qual nós estamos aqui é que nós temos o suficiente do mundo para reciclar garrafas de Coca Cola para dar dois dólares para caridade, ou comprar um capuccino da Starbucks, do qual 1% vai para as crianças famintas do Terceiro Mundo pra nos sentirmos bem. Depois da terceirização do trabalho e da tortura [inaudível – chama por “mic check”] …Nós podemos ver isso por um longo tempo, nós permitimos que nosso engajamento político também seja terceirizado. Nós o queremos de volta.

“Nós não somos Comunistas, se Comunismo significar o sistema que entrou em colapso em 1990. Lembrem-se que hoje, aqueles Comunistas são os mais eficientes, implacáveis capitalistas. Na China, hoje, nós temos um capitalismo que é ainda mais dinâmico que o seu capitalismo norte-americano, porém, não precisa de democracia, o que quer dizer, quando vocês criticam o capitalismo, não permitam que insinuem que vocês são “contra a democracia”. O casamento entre capitalismo e democracia acabou. Uma mudança é possível.”

“Agora, que nós consideramos possível hoje – apenas siga a mídia. Em uma mão há a tecnologia e a sexualidade – tudo parece ser possível. Você pode viajar para a Lua, você pode se tornar imortal pela biogenética, você pode ter sexo com animais, ou qualquer outra coisa. Mas olhem para o campo da economia – lá, quase tudo é considerado impossível. Você quer aumentar um pouco os impostos para os ricos, eles te dizem que é impossível. Nós perdemos competitividade. Você quer dinheiro pra cuidados com a saúde, eles te dizem “Impossível!” Isso significa um Estado Totalitário.’ Há algo errado com o mundo, onde lhe é prometido ser imortal, mas eles não podem gastar um pouco mais com a saúde? Talvez nós tenhamos que configurar nossas prioridades direito. Nós não queremos padrões de vida mais altos; nós queremos melhores padrões de vida. O único sentido no qual nós somos Comunistas é porque nós nos importamos com os comuns; os comuns da natureza, os comuns do que é privatizado pela propriedade intelectual dos biogeneticistas. Para isso, e só para isso, nós devemos lutar.

O Comunismo falhou em absoluto; mas os problemas dos comuns estão aqui. Eles estão nos dizendo que você não é americano aqui, mas os fundamentalistas conservadores, que se intitulam os ‘verdadeiros’ americanos têm de ser lembrados de algo: O que é Cristianismo? É o Espírito Santo. O que é o Espírito Santo? É uma comunidade igualitária de crentes, que são unidos pelo amor que tem uns pelos outros e só possuem sua liberdade e a responsabilidade de fazer isso. Nesse sentido, o Espírito Santo está aqui agora, e lá em Wall Street tem milhões [?] que estão adorando ídolos blasfêmicos. Então, tudo o que precisamos é de paciência.

“A única coisa da qual eu tenho medo é de que nós, algum dia, apenas voltaremos para nossas casas, e então nos encontrem uma vez por ano, bebamos cerveja e nostalgicamente lembremos o quão lindo foi o momento que vivemos aqui. Prometamos a nós mesmos, que isso não será perseguido. Vocês sabem que as pessoas frequentemente desejam algo, mas não querem aquilo de fato. Não tenham medo de querer aquilo que vocês desejam.”

A transcrição saiu daqui, de uma dica da Sereia.

Slavoj Zizek e David Lynch