“Viver é a maior fonte, sem fim, de alegria e de prazer”: ouvir Hermeto Pascoal, do alto de seus 88 anos, dizer isso no meio de mais uma de suas apresentações catárticas com mais de uma hora e meia de duração, é daquelas inspirações motivacionais que renovam a energia vital de qualquer indivíduo que sinta seu coração bater no peito. Mesmo com um breve momento fora de circulação para resolver questões de saúde, incidente felizmente já resolvido e que parece tê-lo reenergizado, o maior nome vivo do jazz brasileiro está encerrando um 2024 de ouro ao lançar o belíssimo Para Você, Ilza (disco réquiem sobre a presença sentimental da eterna companheira que batiza o disco, falecida no início do século, que fez o maestro ganhar um Grammy Latino), seguir em turnê pelo Brasil e pelo exterior e assistir ao relançamento em vinil de alguns de seus clássicos, como Em Som Maior (1965), lançado com o trio que tinha com by Humberto Clayber e Airto Moreira, o Sambrasa Trio, e Lagoa da Canoa Município de Arapiraca (1983). E antes de encerrar o ano passou pelo Sesc Pompeia para três apresentações neste fim de semana com sua Big Band, regida pelo tecladista de seu conjunto habitual, André Marques, e que ainda conta com dois integrantes daquele grupo, o saxofonista Jota P. e o filho de Hermeto, o percussionista Fábio Pascoal. Liderando um grupo que contava com baixo, guitarra, bateria, percussão, piano, teclado e quinze integrantes na metaleira (cinco trombonistas, cinco trompetistas e cinco saxofonistas e flautistas), o repertório da noite é centrado no disco Natureza Universal, que gravou com essa formação em 2017. E Hermeto praticamente não encosta no teclado à sua frente, emanando frequências que se traduzem em música em instrumentos improvisados (como a clássica chaleira com bocal de trompete no pico e um reles copo d’água), o próprio canto inventando palavras, momentos de filosofia musical pura em alguns intervalos e apenas sua própria presença magnética, regendo aquele ambiente de sonoridade universal em que a adoração pela musicalidade se mistura com um otimismo radiante que nos faz perceber a beleza da vida, extraindo toneladas de tensão dos ombros do público que lotou o teatro nessa sexta – e vai lotar sábado e domingo, que já têm ingressos esgotados. Um ótimo jeito de amaciar o peso deste fim de 2024.
Brutal e envolvente: assim foi o lançamento de Colinho, segundo disco solo de Maria Beraldo, que aconteceu nesta quarta-feira no teatro do Sesc Pompeia. Acompanhada apenas pelo baterista Sérgio Machado e pelo baixista Fábio Sá, ela trouxe sua nova safra de canções para o palco mostrando como o registro fonográfico tem uma outra vida para além da música ao vivo, trazendo maciez e aspereza que o disco parecia apenas insinuar. A compositora também enfatizava o movimento do álbum ao espalhar-se pelo palco em direção aos instrumentos, por vezes ia ao piano de cauda, outras ia para o violão, que ficava em frente à bateria de Serginho, outras para a guitarra, que ficava próxima ao piano, enquanto Fabinho fazia o mesmo, indo para o piano, para o synth, para o contrabaixo acústico ou elétrico, enquanto o baterista disparava ruídos e fazia vocais de apoio. O movimento também estava (óbvio) nos gêneros e o show fluía entre a ambiguidade da música eletrônica, a fritação do free jazz, a doçura do canto brasileiro ou a estridência da experimentação sônica. Reforçando sempre o aspecto espartano da noite, sem cenário, sem bis e sem papo, Maria foi cumprimentar o público lá pela quinta música e abriu poucos momentos não-musicais, quando como apresentou seus parceiros de palco ou quando explicou a relação dos livros Mar Morto de Jorge Amado e O Quarto de Giovanni de James Baldwin que originou a faixa “Guma”. Com direção de Felipe Hirsch, o espetáculo ainda contou com mais uma soberba condução de luzes feita por Olivia Munhoz, que preferiu trabalhar com a alternância entre sombra e penumbra com beats fortes de luz na cara do público, entre o mistério e o atordoo, conversando com os silêncios e esporros do som. Beraldo mostrou o disco inteirinho e quase na ordem original, com poucas exceções que funcionaram lindamente, como a abertura do show com a última música do disco (“Minha Missão”, de João Nogueira) em que cantou sozinha ou ao intercalar músicas do disco novo com as de seu disco de estreia, Cavala, emendando “I Can’t Stand My Father Anymore” com “Amor Verdade”, “Maria” com “Crying Now” e “Da Menor Importância” com “Matagal”. Ela ainda visitou Djavan com a sintomática “Nobreza” e trouxe “Truco” quase para o final da noite, que encerrou-se com uma versão tocante para “Ivy” do Frank Ocean. Um dos grandes shows do ano, sem dúvida.
Lindo o show que Gui Amabis fez nesta quinta-feira no Sesc Pompeia para mostrar, em grande estilo, o seu ótimo quinto disco, lançado no primeiro semestre deste ano, Contrapangeia. Escudado por dois velhos compadres cada um a seu um lado no palco – o violonista Regis Damasceno e o tecladista Zé Ruivo – ele foi acompanhado por um orquestra de câmara de 18 músicos e transpôs ao vivo o disco na íntegra, incluindo as participações de Manu Julian e Juçara Marçal, que encerrou a apresentação com a bela “Nesse Meio Tempo”, que também encerra o disco. Gui aproveitou a oportunidade única para reler naquela formação algumas músicas de discos anteriores (como “O Deus Que Mata Também Cura” de seu disco de estreia, Memórias Luso-Africanas, de 2011; e “Pena Mais Que Perfeita”, esta com Juçara, que a regravou em seu disco de estreia, e “Merece Quem Aceita”, do disco seguinte, Trabalhos Carnívoros, de 2012) e encerrou com um bis com uma versão deslumbrante para “Graxa e Sal”, de seu terceiro álbum, Ruivo em Sangue, de 2015, e fez todo mundo sair flutuando.
Nesta quarta-feira o Sesc Pompeia assistiu à mais um reencontro do mitológico grupo pós-punk paulistano Voluntários da Pátria, com a mesma formação que gravou seu único disco, que completa quatro décadas neste 2024. A apresentação reuniu mais uma vez os guitar heroes Miguel Barella e Giuseppe “Frippi” Lenti, o baixista Ricardo Gaspa, o baterista Thomas Pappon e o vocalista Nasi na primeira vez em que o grupo tocou ao vivo as duas músicas que gravaram, à distância, durante o período pandêmico, “Ainda Estamos Juntos” e “O Voluntário”. Mesmo entrando na sexta década de vida, seus integrantes mantém o pulso firme dos bons tempos, à exceção do vocalista, que parece menos dedicado ao retorno que os outros quatro, mas que fez um show melhor do que o que assistimos em 2019, quando o grupo tocou pela última vez, quando era curador do Centro Cultural São Paulo. E sempre que um evento desse porte acontece é uma oportunidade ótima para cruzar com diferentes ícones da cena paulistana de diversas épocas, todos vindo saudar o legado de uma banda única no rock brasileiro – além de Pappon ter revelado quem é o homenageado na música “O Homem Que Eu Amo” – quem foi, sabe.
Apesar de conhecido e reconhecido como um dos grandes nomes da cena musical brasileira deste século, Curumin ainda é um talento a ser descoberto. Por mais que tenha hits tatuados no inconsciente coletivo da noite paulistana, ele ainda não é reverenciado como o gênio que é – e por caprichos próprios, que prefere cultivar amizades e a conexão com o público do que fazer o jogo do mercado da música ou dançar conforme o algoritmo das plataformas. Seu Pedra de Selva, um dos grandes discos de 2024 e talvez seu melhor disco, foi lançado quase na surdina há pouco mais de um mês e, mesmo sendo seu primeiro trabalho lançado em sete anos, é mais um exemplo da forma como conduz sua carreira. Como fez em outros álbuns antes, prefere construir uma coleção de canções que conversa entre si do que a ceder para eventuais apelos pop. E os dois shows que fez neste fim de semana no Sesc Pompeia foram ótimas amostras de sua grandeza. Num palco psicodélico-vegetal (cenário maravilhoso de Rodrigo Bueno, iluminado lindamente por Cris Souto), criou uma versão tropical do assalto dos sentidos do Funkadelic com uma banda transnacional da pesada, que reunia os pernambucanos Jessica Caitano e Maurício Badé, a baiana Aline Falcã, a mineira Josy.Anne (dona da irresistível “Mexerica Mineira”), o paraense Saulo Duarte e os paulistas Fred Prince, Funk Buia, Iara Rennó, Arlete Salles e Lelena Anhaia. Pilotando essa usina sonora com sua bateria em primeiro plano, o músico, cantor e compositor hipnotizou o público com pedradas hipnóticas (“Pira”, “Pisa”, “Água Fria em Pedra Quente”, “Meu Benni” e a deliciosa “Estado de Choque”) e levadas macias (“Paixão Faixa Preta”, “Jacarandá”, “Flecha do Dedo”, “Cigana Cigarra”, “Tempo de Sal” e a já citada “Mexerica..”) num show composto quase unicamente pelo disco novo, reforçando a magia deste encontro recente. Abriu exceção para três de suas pérolas imortais: “Selvage”, “Mistério Stereo” (que puxou no bis sozinho à guitarra, sendo acompanhado pelo tamborim de Prince) e “Samba Japa”, esta última fundida com “Não Adianta” do Trio Mocotó (em reverência ao recém-falecido Fritz Escovão), estas últimas cantadas em uníssono pelo público extasiado pela força da natureza que é este band leader. Eu acho é pouco! Vem mais!
Um dos projetos mais importantes do Sesc está de volta: o Prata da Casa, que desde o início do século revela novos talentos da cena musical brasileira no palco da antiga choperia – hoje comedoria – do Sesc Pompéia volta à ativa neste mês de outubro. Depois de descontinuado na miúda em 2016, ele até tentou uma sobrevida em 2019, quando, como quase tudo, foi atropelado pela pandemia e voltou para a hibernação. Mas felizmente o projeto volta a respirar em 2024 ainda que de forma tímida. A princípio são apenas quatro apresentações anunciadas, que acontecerão às quintas-feiras, mais uma vez no mesmo palco. A primeira atração é a paulista Anná (dia 10), seguida da banda carioca Zé Bigode Orquestra (dia 17), passando pela dupla pernambucana Barbarize (dia 24) e encerrando com a mineira Josy.Anne (dia 31). Todas as noites serão apresentadas pela DJ Odara Kadiegi. Ao contrário de sua fase clássica, em que curadores eram convidados para selecionar os artistas – fui curador no ano de 2012, veja a playlist com os shows que realizei abaixo), a escolha dos artistas desta vez ficou a cargo da própria curadoria de música do Sesc Pompéia – e, como sempre, os shows serão gratuitos, com ingressos distribuídos uma hora antes. Ótima notícia!
Assista abaixo os shows que pautei quando fui curador do Prata em 2012:
Há um tempo venho falando que há uma nova geração na cena musical brasileira que está vindo com tudo. Uma molecada de parcos 20 anos que escuta todo tipo de música, vai atrás das referências, quer saber mais e mete a mão na massa, sem medo de quebrar a cara – afinal as coisas só acontecem quando elas são feitas. E nesta quinta-feira pudemos assistir a uma apresentação exemplar que não apenas mostra que essa geração não está para brincadeira, como estabeleceu um novo padrão de excelência. Quando Thalin, VCR Slim, Cravinhos, Pirlo e iloveyoulangelo subiram no palco do teatro do Sesc Pompeia para mostrar ao vivo aquele que é um dos principais discos de 2024, eles extrapolaram todas as expectativas e não apenas fizeram o melhor show do ano como elevaram o disco a um outro patamar. Podendo exibir no palco o disco Maria Esmeralda como o que ele realmente é – uma obra conceitual, com começo, meio e fim, que mistura referências gringas e brasileiras para contar uma história de perda, dor, sofrimento e redenção. E fizeram isso não apenas chamando quase todos os convidados do disco (Doncesão, Servo, Yung Vegan, Quiriku e Rubi – só Tchelo Rodrigues ficou de fora), como criando toda uma ambientação para apresentar tudo de forma espetacular: do cenário minimalista que criava uma sala de estar com sofá e poltrona, às projeções que misturavam cenas em preto e branco gravadas previamente com imagens captadas durante o próprio show, à luz de Olivia Munhoz e um roteiro redondo e fechado como um filme (com direito a créditos finais e sem bis), num show enxuto de menos de uma hora em que todos puderam brilhar sem perder o compromisso com o todo. Desde as bases disparadas por VCR Slim e Pirlo, aos vocais de Iloveyouangelo, Cravinhos (que também tocou lindamente violão e guitarra) e, em especial, a força que é Thalin, um MC único, de flow interminável, carisma natural e diferentes personagens em sua voz, a grande estrela da noite. Mas mesmo o brilho inacreditável dele não tirou o foco da história que estava sendo contada, que não pode ter a presença de Marília Medalha (escalada para a apresentação, não se sentiu bem para subir no palco, mas passa bem), mas teve duas faixas inéditas, participação de Matheus Coringa e fez o quinteto atingir um novo padrão de excelência tanto para os artistas de sua geração para os das anteriores. Parabéns ao Sesc Pompeia, que peitou uma ideia ousada de jovens que estão com sangue nos olhos e mostram os novos horizontes que estão despontando. A lua cheia no final só consolidou uma noite perfeita. O bom da música, já disseram, é que quando ela bate não dó.
Conheço Pérola de outros carnavais, quando ela ainda estava nos corres de produção no Recife e tenho acompanhado sua evolução como curadora musical nos últimos anos, especificamente o trabalho que fez quando estava à frente da agenda de música do Sesc Pinheiros, quando transformou aquela unidade em uma das mais intensas na área de música no ano passado. Agora ela foi para o Sesc Pompeia e segue fazendo bonito como parte da equipe de programação de música de lá, mas confesso que senti um misto de orgulho e ousadia quando soube que ia rolar o primeiro show do disco Maria Esmeralda no teatro desenhado por Lina Bo Bardi. O Maria Esmeralda é uma das gratas surpresas de 2024 ao consolidar uma ideia que o rapper Thalin – que também é baterista d’Os Fonsecas e toca com outros artistas, como Eiras e Beiras e Nina Maia – vem desenvolvendo há alguns anos com seus amigos produtores VCR Slim, Cravinhos, Pirlo e Iloveyoulangelo. Puxei o Thalin pra conversar logo que o disco saiu porque tinha curiosidade pra saber como aquele disco se materializaria no palco e ele falou de ideias grandiosas que achava que não iria realizar naquele primeiro momento. Mas qual a surpresa quando descobri que ia rolar nesta quinta-feira, 19, no teatro do Sesc Pompeia e, ao comentar sobre isso com ela, ela me disse que havia rascunhado algumas linhas sobre o impacto que o disco teve nela. Pedi para ler e segue abaixo o devaneio urbano e crítico de uma curadora de música sobre um dos discos mais importantes deste ano – e o show, que terá a participação da cantora Marília Medalha, que abraçou a temática do disco e esteve na faixa de abertura, já está esgotado, mesmo que eu tenha insistido com o Thalin de abrir a segunda parte do teatro pra dividir a noite com mais gente, mas ele preferiu manter assim, porque tem uma visão. Fala Pérola:
Excelente a primeira apresentação que Caxtrinho fez de seu recém-lançado disco de estreia, Queda Livre, em São Paulo, quando o jovem sambista experimental participou da programação do evento Periferias Afro-Experimentais, realizado no Sesc Pompeia. Apresentando-se no discreto espaço cênico da unidade mais conhecida do Sesc em São Paulo, ele veio acompanhado de uma banda que só acentuou sua musicalidade distorcida, composta pelos dois guitarristas e produtores do álbum Vovô Bebê e Eduardo Manso (que também disparava efeitos com uma camiseta que decretava, em inglês, “dedicado a ninguém, graças a ninguém, a arte acabou”), pelo baixista João Luiz Lourenço e pelo baterista Kalebe, este último recém-chegado à formação (embora completamente entrosado ao grupo). Mas apesar das presenças de peso na banda, parte forte do núcleo torto do Rio de Janeiro atual (que marca presença no disco graças às participações de Negro Leo, Kau, Marcos Campello, Thomas Harres, Ana Frango Elétrico e dos cariocas honorários Bruno Schiavo e Tori), o holofote da noite não sai de Caxtrinho, showman nato – mesmo reforçando continuamente seu nervosismo – e músico brilhante. Seu violão é um show à parte, samba dissonante tocado de forma percussiva, regendo o ritmo e as harmonias tortas para seu conjunto sem precisar da eletricidade e distorção das guitarras, mas ele também se garante no gogó, com sua voz macia e seu canto falado, que surpreende e dribla o ouvinte ao sair por tangentes improváveis, cantando letras de cunho político e tecendo críticas ao estado das coisas em 2024, em letras que dão a tônica a partir do título: “Cria de Bel” (sufixo de sua região no Rio, Belford Roxo), “Brankkkos”, “Merecedores”, “Samba Errado” (esta em parceria com Rômulo Froes) e “Branca de Trança”, entre outras. Não o perca de vista: Queda Livre é um discão e ao vivo melhora ainda mais.
Depois de ter visto o BK’ no palco ao lado de outros artistas como MC convidado finalmente pude vê-lo ao vivo apresentando seu show na primeira ds duas datas esgotadas que fez no Sesc Pompeia. E faz jus por merecer o título de um dos melhores rappers do Brasil atualmente: movimenta-se de forma contida no palco e conversa pouco com o público, pois tudo que precisa fazer está em suas letras e suas rimas, que passeiam por diferentes sentimentos e sensações, descrevendo situações que acontecem dentro e fora de qualquer um e tirando as conclusões a partir destas sobreposições. Seu flow é impressionante: ao mesmo tempo em que entregar versos gigantes num mesmo fôlego, o faz como quem tivesse dando um conselho, um toque, uma consideração, rimando naturalmente, como quem conversa. Auxiliado de um DJ, um MC e um trio de backing vocals impressionante, ele passou por músicas de seus quatro grandes discos (Castelos & Ruínas, Gigantes, O Líder em Movimento e Icarus) e chamou toda a responsa pra si mesmo, segurando a apresentação inteira sem sair do holofote central, fazendo todo mundo cantar letras quilométricas juntos em canções relativamente curtas. Pesado.