Depois de uma estreia de tirar o fòlego em 2023 (com nada menos que o show que João Gilberto fez na inauguração do Sesc Vila Mariana, em 1998), a coleção Relicário, que reúne gravações ao vivo realizados em apresentações musicais nas unidades paulistanas do Serviço Social do Comércio, vem reunindo uma coleção de joias de diferentes épocas e escolas musicais que além de fazer jus ao seu título, também são amostras da importância que o serviço tem na cultura brasileira da virada do século 20 para o século 21. E depois de números com Dona Ivone Lara (também no Vila Mariana, em 1999), João Bosco, Renato Teixeira (ambos em shows próprios no Consolação, em 1978), Adoniran Barbosa (também no Consolação, em 1980) e Zélia Duncan (no Sesc Pompeia, em 1997), o Selo Sesc traz não apenas um registro de um grande nome da música brasileira, mas um momento anterior ao nascimento fonográfico desse ícone, quando ouvimos Arrigo Barnabé reger sua banda com a ópera dodecafônica que lançou sua carreira meses antes de ela ser lançada em disco, provando que sua maturidade musical havia começado antes mesmo de sua discografia. Relicário: Arrigo Barnabé & Banda Sabor de Veneno (ao vivo no Sesc 1980) traz Clara Crocodilo tocada quase idêntica no dia 29 de junho de 1980 no Sesc Consolação, quase um semestre antes de seu lançamento em novembro daquele mesmo ano. A principal mudança é a faixa de abertura, a quase instrumental “Lástima”, que não entrou no disco, substituída por “Acapulco Drive-In”, algumas mudanças na letra de “Diversões Eletrônicas” e a ausência do trombonista Ronei Stella, o responsável pelo figurino da banda, que vestia-se de presidiários a partir de um bloco de carnaval que o músico conseguiu com amigos. O resto da obra é idêntica tanto ao disco lançado em seguida, quanto às apresentações que Arrigo faz até hoje, provando que a saga que assiste a desilusão de um office-boy na cidade grande transformar-se em um monstro mutante inventado num laboratório foi visionária ao antever um futuro alegórico muito parecido com o mundo em que vivemos hoje, sua narrativa picotada que mistura quadrinhos e rádio-jornal muito próxima ao excesso de informações que vivemos via redes sociais. A banda Sabor de Veneno reunida para este show era praticamente a mesma que gravou o disco. Além de Arrigo no vocal principal e no piano, a banda ainda tinha Bozo Barretti (sintetizador e teclados), Chico Guedes (sax tenor), Felix Wagner (clarinete), Gilson Gibson (guitarra), Mané Silveira (sax soprano), o irmão de Arrigo, Paulo Barnabé (bateria), Regina Porto (piano elétrico), Rogério Benatti (percussão), Suzana Salles e Vânia Bastos (vozes), Tavinho Fialho (baixo) e Ubaldo Versolato (sax alto). As únicas ausências que não estão neste show e só apenas no disco são os vocais convidados de Tetê Espíndola, Eliana Estevão, Passoca e Gilberto Mifune, o clarinete de Marcelo Galberti e o cello de Mario Manga. O disco é uma joia irrepreensível, que mostra tanto a importância do Sesc para a realização de apresentações deste tipo quanto a genialidade precoce do autor paranaense, com uma obra intacta como se tivesse sido composta 45 anos depois, em 2025. Muito foda.
O sertanista erudito Elomar apresentou-se neste fim de semana no Sesc Consolação ao lado de sua Tropa Encantada e pude assistir à primeira apresentação, em que a produção do artista exigiu que não houvesse registro – talvez pelo fato de, debilitado por ter contraído covid, não tocar mais violão nem ter o alcance vocal que tinha, além de, talvez pelo mesmo motivo, não ficar no palco o tempo todo, sendo constantemente tirado de cena e deixando apenas sua ótima Tropa em cena. Esta era conduzida pelo filho de Elomar, o violonista João Omar ao violão, que era acompanhada perlo violoncelo de Daniel Silva e pela flauta de João Liberato, além de contar com as vozes das sopranos Luciana Monteiro e Gabriela Almeida, esta última filha do violonista, e, portanto, neta do autor. A apresentação preservou o tom de câmara romântica para as dramáticas árias tiradas das óperas de Elomar, numa noite de rigor e beleza. Só achei estranho quando ele veio com um papo que era monarquista e saudou um herdeiro de Dom Pedro II que estava na plateia. Eu hein…
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Enquanto a chuva desabava sobre São Paulo neste sábado, Arrigo Barnabé reuniu-se mais uma vez com seu Trisca – o trio formado por três ex-integrantes do grupo Isca de Polícia, o guitarrista Jean Trad, o baixista Paulo Lepetit e o baterista Marco da Costa – para celebrar seu saudoso compadre Itamar Assumpção no Sesc Consolação. O show Tristes Trópicos costura clássicos do velho Ita com outros de outros sambistas dantanho, como Nelson Cavaquinho (cuja eterna “Quando Eu Me Chamar Saudade” abriu a noite) e Ataulfo Alves (presente em “Errei… Erramos” e “Na Cadência do Samba”) e convulsão entre funk, blues e samba que pairava sobre a obra de Assumpção dava o tom da apresentação, que começou com Arrigo em máquina de escrever, conversando com Itamar ao mesmo tempo em que sua voz regravada repetia-se no palco (em uma possível referência a Walter Franco). E entre hinos como “Fico Louco”, “Noite Torta”, “Oh! Maldição”, “Mal menor” e “Já Deu pra Sentir”, Arrigo ainda embrenhou duas canções próprias que conversam com a obra – e a vida – de Itamar: “Cidade Oculta” e “Clara Crocodilo”, que misturou com “Nego Dito”. Mas um dos grandes momentos da apresentação foi quando contrabandeou o “Relógio do Rosário” de Carlos Drummond de Andrade no meio da clássica “Dor Elegante”: “O amor não nos explica. E nada basta, nada é de natureza assim tão casta que não macule ou perca sua essênci ao contato furioso da existência”, puxou Arrigo de improviso, “Nem existir é mais que um exercício de pesquisar de vida um vago indício, a provar a nós mesmos que, vivendo, estamos para doer, estamos doendo.”
A minha Virada Cultural de 2023 ficou reduzida a um único show, um dos três que a Céu fez no Sesc Consolação, finalmente levando aos palcos seu disco acústico, lançado no segundo ano da pandemia “com a intenção de trabalhar, de ver um horizonte, de voltar a cantar e fazer música”, como ela explicou ao público da segunda sessão de suas apresentações. Gravado em um único dia ao lado de seu velho compadre Lucas Martins (que a acompanha desde a adolescência – e que para este projeto deixou o baixo de lado para abraçar o violão acústico), o disco preparou a chegada de seu disco de intérprete Um Gosto de Sol, lançado no final daquele 2021, indo para o caminho oposto: só músicas autorais da cantora paulistana em arranjos enxutos e precisos, com o violão de Lucas partindo de lugares menos óbvios para o formato voz e violão do que o samba ou a bossa nova. Retomado no palco, o disco funciona como uma versão minimalistas para o novo show da cantora, Fênix do Amor, em que prefere dedicar-se ao seu próprio repertório do que a um disco mais específico, com o agravante de deixar Céu ainda mais à vontade para contar histórias e causos e brincar com a longa amizade com o amigo músico. No meio do caminho, lembrou que fez “Coreto” para Gal Costa cantar, mas tomou-a de volta quando percebeu que o refrão (que canta “Alpha by night” em homenagem à versão clássica rádio de sala de espera paulistana) a conectava com o universo do karaokê, que é adepta, rindo sem graça quando lembrou que cantou uma música sua num destes estabelecimentos e ganhou a pior pontuação. Lembrou também de Rita Lee, quando tocou “Menino Bonito” logo após tocar sua “Malemolência”, cujo refrão repete o título da clássica da rainha do rock brasileiro com o grupo Tutti Frutti. Um domingo maravilha.