“Se cada um fizer o que quiser, você vai fazer o quê?”
Lá pelo final da entrevista perguntei pro Gabriel Guerra, o Guerrinha, mais conhecido como ex-integrante do Dorgas, qual bebida ele escolheria para tomar enquanto ouve o novo disco de sua banda, Séculos Apaixonados. “Nós sempre fomos uma banda que bebe conhaque. Como é um disco feito de forma barata, então é digno que você beba algo não muito caro. Então se você quiser respeitar a banda, você pode ouvir o disco e tomar um Dreher com uma bala Halls extraforte dentro. Porém, a musica do Arthurzinho no disco, ‘Troianas a Go-Go’, menciona Tanqueray, então acho justo misturar gim com Brasilberg e ver os problemas que isso levará a sua vida”, teoriza.
A escolha faz sentido também esteticamente: em seu segundo disco, batizado de O Ministério da Colocação, o carioca Séculos Apaixonados se aprofunda ainda mais naquela estética de FM dos anos 80 que misturava a vontade de atingir um grande público com uma narrativa romântica, sem se prender a um refrão pegajoso, um riff repetitivo ou uma frase de efeito. E por mais que Guerrinha cite Tears for Fears e Bruce Springsteen, o resultado é indefectivelmente brasileiro, com ecos de Zero, Finnis Africae e das baladas do primeiro disco do Capital Inicial – uma tentativa de levar a sofisticação pós-punk para as massas. A banda antecipa o disco em primeira mão para o Trabalho Sujo, com a faixa “Dedo em Riste”, o soul tocado em teclado DX7, abaixo.
A capa do disco e o título das faixas vem logo após o bom papo com o Guerrinha, que fala sobre composição, gravação e como 2016 se parece com 1986, mesmo que ele ainda não tivesse nascido. O disco inteiro será lançado no dia 26 deste mês pela Balaclava Records.
Por que tenho a impressão de que esse é o primeiro disco de vocês? Olhando os dois discos em perspectiva, o primeiro, Roupa Linda parece mais uma demo, um rascunho, um exercício, do que um primeiro disco de fato. Deve ter a ver com o tempo que a banda está junto, claro, mas vocês têm essa impressão?
Eu tenho a mesma impressão e pelo mesmo motivo. Por mais que todo mundo toque a algum tempo em outros projetos,
todo o processo do Roupa Linda era muito inédito para gente. Em termos de banda mesmo, nós nunca tinhamos tocado ao vivo antes de fazer as musicas do primeiro disco, o que as vezes parece não ter grande efeito, mas se você não tem a dinâmica, você não tem uma noção das limitações da banda. Para mim, foi mais loucura ainda, eu nunca tinha escrito, no sentido tradicional da palavra, uma canção sozinho antes do Séculos. E por mais que você possa adentrar certas referências ou tentar seguir certos caminhos, se você não tem a disciplina da coisa, é dificil você sair com o resultado esperado, o que não significa uma coisa ruim. Mas resiliência sempre foi o meu unico metodo de aprendizado, eu não sou uma daquelas pessoas que conseguem fazer algo e abstrair depois, eu preciso fazer varios até pegar em uma posição mais confortavel com o troço.
Há uma presença muito forte de São Paulo no disco, mesmo sem o sotaque. O quanto vocês buscaram referências na cena pós-punk paulistana que deu ao pop brasileiro dos anos 80 figuras como Guilherme Isnard, Paulo Ricardo e Alex Antunes? E no pop pré-rock dos anos 80 de artistas como Zizi Possi, Jane Duboc e Roupa Nova?
Hmmmmmm, existem grandes discos dessa época as eu não sei se sinceramente posso afirmar que algum deles foi algo de estrita influência para o disco. O 40% Foda/Maneirissimo lançou um vinil do Akira S em janeiro desse ano, então eu e Lucas tivemos que ficar algum tempo ouvindo o próprio durante o ano passado. Mas eu creio que existe um ponto no pop e rock paulistano dos anos 80 – se é que é justo fazer essa generalização – que talvez se assemelhe ao nosso: A força motiva da música esta em passar um sentimento ao ouvinte e não servir de fidelidade ao gosto do ouvinte. Nós nunca quisemos e simplesmente nos voltamos contra a ideia de fazer um branding de banda. Se a música tem um saxofone ou uma orquestra de 20 cabeças ou uma guitarra que parece ter sido retirada de um disco do Satriani, tanto faz, entra o que esta valendo para a emoção final, e não para o estilo. Acho que grande parte dos discos feitos por essas bandas nos anos 80 reflete o mesmo: Ninguém estava muito encucado em como podia ser identificado o som e sim qual era o sentimento que ele passava. Quero dizer, se você pegar o produtor do disco do Garotas Que Erraram, o Luis Carlos Calanca, você vai perceber que ele produziu bandas da mesma época que tinham som dispares, de Harppia até Fellini. Eles eram ingênuos e estavam mais afim de ver “no que dava” do que conferir do que ver “qual era o som de teclado da banda X no disco Y” ou “vamos fazer A para acontecer B”. Quando você aponta para algo maior do que apenas uma referência sonora e deixa suas idiossincracias rolarem, os resultados são sempre mais interessantes. No começo, muitas pessoas – e eu acho que até a gente – caiu na armadilha de ser muito referencial, e isso foi algo que a gente queria quebrar com o tempo, e eu espero que esse disco mostre isso para o ouvinte.
Há uma lacuna entre a produção pop daquela época e a atual. O que aconteceu nos últimos 30 anos que o pop sofisticado perdeu o vínculo com a música popular? Quem você acha que ajuda a reinventar o cenário atual nesse sentido?
A disciplina das pessoas que fazem a musica popular hoje em dia é grotescamente diferente das de 30 anos atras, e não só pelo fato do barateamento da musica, mas tambem pela diminuição do numero de pessoas trabalhando em um disco. A propria expressão “produtor de quarto/bedroom producer” se tornou uma redundância porque a ética dos produtores de discos hoje em dia – até mesmo de super stars como Beyoncé e Rihanna – é a de quarto: Grande parte dos caras que fazem estes discos estavam fazendo batidas para algum rapper antes de entrarem nesse meio. E de certa forma, a ausência de cabeças com diferentes backgrounds tambem trazem efeitos de hoje em dia pois as questões que transformam uma musica super vendida tem mais a ver com o som do que com o arranjo, basta ver quanta gente tocava nos discos que seu pais gostavam. Em 2011-2012 eu trabalhei em um estúdio que era muito grande nos anos 80 e 90 e que até 2001 tinha como obrigação o gaitista de samba Rildo Hora fazer arranjo e escrever a partitura pros tecladistas – incluso bandas de rock – e ai de quem falasse ‘não’ para ele! É impossivel diminuir o impacto que é você ter alguem “nada a ver” fazendo as coisas PARA você… Digo, não foi o Michael Jackson ou algum cara nos seus 20-e-alguma-coisa que produziu o Thriller, foi o Quincy Jones, que era o que? 80 anos mais velho que MJ? Alem do mais, talvez seja hora de requalificarmos a palavra sofisticado. Até porque, se o Bob Clearmountain ou o Rhett Davis escutassem o nosso disco eles provavelmente iam falar que aquilo era a coisa mais lixo lo-fi que eles ja ouviram na vida. E nos tempos atuais não tem escolha: Ser independente é a unica saida. E uma observação: música hoje em dia é tão boa quanto a de 30 anos atras.
Que obras (discos, filmes, livros, programas de TV) que vocês tiveram contato durante a composição e gravação do disco que influenciaram no resultado?
Das viagens de carro que nós fizemos para shows e ensaio, me lembro de ouvir albuns como There And Back do Jeff Beck, Flesh And Blood do Roxy Music, Born In The USA do Bruce Springsteen, Afterburner do ZZ Top e quase todo o catalogo do Tears For Fears (aka Greatest Hits). O que não significa que nós pegamos inspirações concisas nestes para fazer o nosso, mas acho que bem ou mal nós acabamos por parar em uma atmosfera parecida a desses albuns, que são densos na sua instrumentação/produção mas que são divertidos por dentro. Isso somado ao fato da gente estar tocando mais e Lucas Freire – uma pessoa que sabe se divertir – ter começado a tocar direto com a banda acabou servindo como um motivo para nós não termos medo em tocarmos rapidos e assumir canções mais pesadas, não a toa, o disco não tem baladas. “Dedo em Riste” especificamente foi uma música com uma historia diferente, pois fiz com Zeca Veloso em que ele queria tocar um piano tipo Michael McDonald e eu acabei produzindo a musica de uma forma muito menos orgânica. De literatura, tirando a óbvia referência a Darwin em Origem das Espécies é muito difícil admitir que eu li livros para me inspirar para as letras porque eu passei grande parte do ano passado lendo para fazer minha monografia – eu acabei de me formar em Ciências Politicas – eram trabalhos de um vocabulário mais técnico, então eu acabei me influenciando para as letras por temas e ocasiões que pudessem ter a ver com o cotidiano da vida adulta. “Medo da Cidade Quando Chove” veio de uma conversa com um taxista em setembro de 2015 quando houveram as promessas de ter um toró no Rio de Janeiro. “Uma Vida Toda Planejada” só teve esse nome porque um belo dia eu tive que pagar uma conta atrasada e o banco diminuiu o meu limite total pois os meus gastos eram referentes a uma vida não-planejada. Enfim, é um disco que fala sobre questões urgentes e deixa um pouco reflexões ou devaneios de canto. Nós ainda colocamos em prática a idéia de que refletir é inutil.
As músicas começam a partir dos timbres desenterrados ou vão sendo compostas como canção e aos poucos ganham a roupagem de época? Quem dá as cartas na hora da composição, o teclado ou a guitarra? Ela surge coletiva ou individualmente?
As músicas sempre começam a partir de uma canção feita antes, Lucas escreve no piano, eu no violão e nós arranjamos para gravar e depois rearranjamos para a banda ao vivo. É claro que nós não somos fundamentais com a ideia inicial. Existem questões de produções que afetam totalmente o clima da música a ponto de a linha entre produção, arranjo e composição já não existir. Não à toa existem diversas musicas do Séculos que são absolutamente diferentes ao vivo do que no disco. Apesar disso, sempre fora precioso a idéia de canção para o Séculos. A idéia de que existe um esqueleto estrutural para a musica transforma na produção dela uma pratica muito mais prazerosa.
O título e os temas do disco conversam com o clima tenso – não apenas político – do Brasil de 2016? O quanto somos próximos e distantes do Brasil de 1986?
Sim. Para mim, o ponto de tomar responsabilidade politicas tem mais a ver com admitir as tensões da vida adulta do que necessariamente investigar a politica institucionalizada por si só. A não ser que você seja o Dado Dollabella ou alguem da familia Orleans e Bragança – e olhe lá -, é impossivel você não ter mais de 20 anos e não se relacionar com algo politicamente. Você simplesmente começa a configurar pequenas coisas do cotidiano – ir ao supermercado por exemplo – como propensas a uma discussão maior e tendo certeza que esta mesma pode conectar ou desconectar pessoas e grupos. E é um sentimento muito gratificante aceitar isso pois ao mesmo tempo que é uma situação totalmente alem do controle do indivíduo, cabe ao próprio regular no que isso afeta. Ela é feita de dissenso e isso tem de ser abraçado por tudo e todos, nem que pra isso você tenha que perder alguns amigos.
Fica muito claro que em 2016 o pensar-politico ainda tem um impacto efetivo. Digo, a polarização de hoje em dia me parece mais uma palavra de ordem do que propriamente uma simples consequência do espectro político, as pessoas não são só politizadas por causa de um tema, elas querem ser isso custe o que custar porque tem a ver com a identidade delas. Não estava vivo em 1986, mas vejo em discursos de familiares e amigos mais velhos um tom recheado de petulância estratégica, e sinceramente, pra mim tem que deixar o pessoal aprender na pele mesmo, que nem os velhos aprenderam. A nivel de sistemas políticos, é justo dizer que todas gerações passaram, passam e vão passar pelo momento em que elas vão ter dizer pra elas mesmas que a democracia não dá os confortos que elas esperavam para seus anseios, até mesmo Platão admite o poder da tirania naquela bíblia republicana que ele escreveu lá a séculos atrás. Quero dizer, hoje em dia existem paginas de memes com Stalin, quem é jovem não tem tempo para ser muito precioso com os bastiões da política passada porque eles querem presenciar as tensões políticas que são figurativas do seu tempo.
E sobre o processo de gravação, ele aconteceu de uma vez só? Onde o disco foi gravado?
Foi tudo pingado, grande parte foi gravado no meu quarto entre 2015 e inicio de 2016. Algumas canções ficaram meses borbulhando no meu HD como “A Origem das Espécies” e “Disfarçando Riquezas na Triagem” e outras como “Troianas a Go-Go” e “Dedo Em Riste” não demoraram mais do que 2 ou 3 sessões de gravação.
Quais são os próximos passos do novo disco? Shows? Clipes? Turnê?
Hmmmmmm. Shows! a gente vai marcando shows durante todo mês, Belo Horizonte, Juiz de Fora, Rio de Janeiro e São Paulo sempre rola por questões de proximidade. Existe a grande chance da gente fazer shows em Brasilia e Salvador em novembro, mas nada concreto ainda. Clipe… eu e Arthurzinho estamos programando algum, mas a gente ainda quer ter uma boa/grande sacada, senão não vale a pena – não tem nada pior do que ver uma banda gastando muita grana com um clipe desinteressante hoje em dia.
“Disfarçando Riquezas na Triagem”
“Medo da Cidade Quando Chove”
“Ele Também Foi Para São Paulo”
“Dedo Em Riste”
“Troianas a Go-Go”
“Uma Vida Toda Planejada”
“A Origem das Espécies”
“Contas Internacionais”