Revisitando 2016

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O ano está chegando ao fim e eu aproveitei pra recapitular 2016 a partir de post que fiz no meu blog no UOL durante estes 365 dias.

Não vou tentar resumir tudo que aconteceu em 2016 num único post: vou me ater ao que foi assunto nos últimos doze meses aqui neste blog, que está prestes a completar dois anos aqui no UOL. Em vez de fazer uma relação de melhores discos, filmes ou séries, vou me ater a separar o que achei de melhor e de pior no ano que está chegando ao fim. Entre os piores momentos estão inevitavelmente algumas das mortes que ajudaram a temperar este ano tão complicado, mas que também trouxe grandes momentos para uma cultura em plena transformação. Separei um parágrafo do texto original de cada item escolhido e o título do item linka para o post específico, caso você não o tenha lido quando eu escrevi. De brinde, reuni os textos de 10 discos clássicos que comemoraram aniversário este ano. As três listas seguem o mesmo padrão de contagem regressiva.

Os 10 melhores de 2016

10) Rua Cloverfield, 10

Mary Elizabeth Winstead e John Goodman

Mary Elizabeth Winstead e John Goodman

“Rua Cloverfield, 10 é da escola de filmes de terror que flertam com o pop e experimentalismo cinematográfico ao mesmo tempo, como Psicose, O Despertar dos Mortos, O Massacre da Serra Elétrica, Bruxa de Blair, O Homem de Palha, o espanhol [REC] e A Morte do Demônio – embora não seja propriamente um filme de terror. Não é uma obra-prima com algum dos filmes que citei e chafurda na vulgaridade B da literatura pulp e dos seriados dos anos 60 que tanto encantam J.J. Abrams (sua conclusão é o melhor exemplo disso). Mas suas atuações convencem o espectador e a direção transcende o trivial teatro filmado, com closes fortes e ritmo crescente.”

9) Capitão América – Guerra Civil

De frente

De frente

“A Marvel vai mostrando a cara de sua nova fase. Não é necessariamente um universo mais sombrio e opressor como os sinais dados pelas séries em parceria com o Netflix davam a entender. O novo filme aproxima o universo Marvel da realidade, deixando-o menos infantilizado e mais adulto. Mas isso não quer dizer que o tom seja sério e que não há espaço para o humor – muito pelo contrário. O humor agora não é feito mais para rir e sim para aliviar as cenas de tensão e de ação, dividindo a audiência do filme entre a apreensão calada e a comemoração sorridente. Cenas como a do Visão falando sobre comida, a do Homem Formiga conhecendo os outros heróis ou as piadinhas do Gavião Arqueiro ajudam a quebrar o gelo ao mesmo tempo em que mostram uma outra forma de encarar os super-heróis. Mas nada pode nos preparar para o Homem-Aranha.”

8) House of Cards

F.U.

F.U.

“Em seus dois últimos episódios, a quarta temporada de House of Cards abandona qualquer resquício de fraqueza que havia mostrado nos episódios anteriores e ressurge grandiosa, operática, bélica. O drama shakespereano dá lugar a um mosaico político que faz Maquiavel e Sun Tzu sentarem-se em um xadrez brutalmente tenso, impassível entre bombas, metafóricas ou literais. E o gesto final de Underwood trava a temporada num impasse moral que desnuda completamente o jogo político e pode fazer a próxima temporada ser a última da série (embora ninguém tenha confirmado isso). O fato da temporada começar com uma cena de masturbação em uma cela na cadeia e terminar com um assassinato e uma cena de tortura psicológica coletiva diz muito sobre o tom da temporada.”

7) Novos Baianos e Wilco (empatados)

Imagem: Manuela Scapra /Brazil News

Imagem: Manuela Scapra /Brazil News

“Era claro que a noite era voltada para 1972 e os grandes momentos foram os daquele disco. E se Paulinho brilhou nas delicadas “Mistério do Planeta” e “Swing de Campo Grande”, Baby e Pepeu se reencontravam como um casal musical nos solos rasgados de “A Menina Dança” e “Tinindo Trincando”, como fizeram em seu emocionante reencontro no Rock in Rio do ano passado. O único senão era a voz de Moraes Moreira, que não possui aquele antigo doce timbre e em alguns momentos soa sofrível, chegando quase a estragar “Preta Pretinha”. Felizmente, num dos principais momentos da noite, ele canta num tom abaixo e sua volta por um instante a sintonizar com seu timbre do passado – e a faixa que batiza o álbum clássico foi um dos momentos mais tocantes de toda a noite.”

Imagem: Flávio Florido/UOL

Imagem: Flávio Florido/UOL

“Ao lado de Jeff (Tweedy), o guitarrista Nels Cline é o franco-atirador da banda, que eleva o título de guitar hero a um nível de pós-doutorado. Cline sozinho é um show à parte e seus solos traçam uma conexão clara entre Tom Verlaine e Neil Young, ampliando horizontes a cada nota sangrada no palco. O guitarrista Pat Sansone – outro guitar hero – é uma espécie de arma secreta do grupo, revezando-se entre teclados, guitarra, banjo e vocais de apoio. O pulso firme do baterista Glenn Kotche certifica-se que está tudo sob controle enquanto o tecladista Mikael Jorgensen prepara a atmosfera necessária para cada canção. Isso sem contar o desfile de guitarras (são 70 instrumentos de cordas, entre guitarras, baixos e violões), um deleite para os fãs do instrumento, e o apreço pelo detalhe – se eles quisessem que ouvíssemos o som de uma agulha caindo no palco ouviríamos. O som, outro ponto alto desta pequena turnê, estava tão cristalino quanto no Rio.”

6) Dr. Estranho

Benedict Cumberbatch

Benedict Cumberbatch

“É o filme mais maduro da Marvel até agora e, coincidentemente, sua produção mais psicodélica. Toda aura mística e espiritual do médico que sofre um acidente que o impossibilita de continuar seu trabalho era traduzida em imagens grandiosas e espetaculares nos quadrinhos, publicados principalmente na virada dos anos 60 para os anos 70, auge da experimentação lisérgica da cultura pop. Os autores da Marvel do período – especificamente Steve Dikto, que recebe o crédito de autoria do personagem do novo filme – aproveitavam cores e formas para expandir os limites dos quadrinhos em páginas duplas épicas, cheias de detalhes.”

5) Stranger Things e Coquetel Molotov 2016 (empatados)

Onze e a turma

Onze e a turma

“E esse é o grande segredo da série – não é apenas uma coletânea de referências, é uma história bem contada. Não é uma história nova (qual história é propriamente nova?), mas Stranger Things não cai no erro de Vinyl de achar que basta ambientar bem um período e transformar arquétipos em personagens para que as coisas funcionem sozinhas. A motivação de todos os personagens é bem definida e seus atores estão muito à vontade nestes papéis, mesmos aqueles com menor envolvimento com a trama principal (o núcleo adolescente, por exemplo, mereceria uma série própria). Só o Brenner de Mathew Modine que é mal explorado e um personagem que pode ser tão profundo quanto o Walter Bishop de Fringe vira só um vilão do Scooby-Doo. Talvez tenham guardado seus segredos para uma segunda temporada, que parece inevitável.”

Jaloo (Foto: Beto FIgueiroa/Divulgação)

Jaloo (Foto: Beto FIgueiroa/Divulgação)

“Um quarto de século depois dos primeiros rascunhos do mangue beat, a décima terceira edição do festival pernambucano Coquetel Molotov foi a materialização daquela utopia imaginada no início dos anos 90, quando os primeiros agitadores culturais que criaram aquele movimento hoje histórico começaram a se conhecer. Eles imaginavam uma Recife conectada ao resto do estado, do país e do mundo sem fazer escalas pela ponte Rio-São Paulo, refletindo a atmosfera naturalmente moderna da capital pernambucana em uma conversa internacional e moderna, colocando artistas e público numa sintonia alheia às demandas ou exigências do mercado.”

4) Bowie – ★

A capa do último disco de David Bowie

A capa do último disco de David Bowie

“Todo o simbolismo e o hermetismo que Bowie havia colocado em seu vigésimo quinto álbum foi revelado com a notícia de sua morte na manhã da segunda-feira passada. Soubemos que Bowie já vinha se tratando em relação a um câncer por dezoito meses e que gravou o disco como um testamento para os fãs. Daí a ausência da capa. Eis a estrela negra – a própria morte. Encenada e transformada em arte.”

3) Rogue One

Felicity Jones

Felicity Jones

“É um filme de guerra, com cenas de batalhas espetaculares, mas também um filme sobre um universo em expansão: na primeira meia hora somos apresentados a paisagens e planetas novíssimos, que em breve serão habitados em filmes futuros. Mas também há doses pesadas de emoção – dá pra segurar o choro em pelo menos duas cenas – e a palavra de ordem é esperança. Esperança não apenas para o futuro da história nos filmes (afinal, ele antecede a primeira trilogia, iniciada em 1977), mas também para o rumo que a Lucasfilm está levando sua série. E prepare-se para a terceira parte do filme, que ela é de tirar o fôlego – em vários momentos.”

2) Westworld

Evan Rachel Wood

Evan Rachel Wood

“E a HBO conseguiu mais uma vez. Westworld vem superando todas as expectativas, episódio a episódio, e caminha para se tornar o grande evento da TV em 2016, fazendo a emissora recuperar-se do fiasco que foi a primeira temporada de Vinyl e a promissora mas fria The Night Of. Um enorme quebra-cabeças magistralmente montado em frente aos nossos olhos, intercalando a frieza de máquinas com o calor do velho oeste norte-americano, reinventando completamente uma premissa simples de um filme dos anos 70 para o século 21 e enfileirando monólogos magistrais, atuações impecáveis, cenas intensas, diálogos esclarecedores, teorias complexas e revelações sensacionais.”

1) Radiohead – A Moon Shaped Pool

A enigmática capa do disco mais recente do grupo inglês

A enigmática capa do disco mais recente do grupo inglês

“Mesmo que não seja seu último disco (torço que não seja), A Moon Shape Pool entra para a discografia da banda como seu disco mais maduro e mais apaixonado, mesmo que estas paixões venham corroídas. É um disco suave e tenso ao mesmo tempo, de sonoridade grandiosa recolhida em pequenos frascos de som. Por vezes soa folk, por outras árcade e o tempo todo nos conduz com o coração. Mais um disco perfeito produzido por uma banda que segue no auge há vinte anos.”

Os 10 piores de 2016

10) Esquadrão Suicida

Jai Courtney, Margot Robbie, Will Smith, Karen Fukuhara, Joel Kinnaman, Adewale Akinnuoye-Agbaje e Jay Hernandez

Jai Courtney, Margot Robbie, Will Smith, Karen Fukuhara, Joel Kinnaman, Adewale Akinnuoye-Agbaje e Jay Hernandez

“No fim, Esquadrão Suicida parece ser uma versão dos Guardiões da Galáxia vivida pelo Slipknot (nome, aliás, de um dos supervilões secundários). É intenso, é barulhento, faz rir e passar raiva como uma criança birrenta – porque no fundo, ele é só isso: um filme bobo. Tem bons momentos (nenhum deles com o Ben Affleck), mas não vale o preço do ingresso no cinema – nem no pay per view. Espera passar na TV, que é o lugar certo pra um filme desses – faz o tempo passar, dá pra ir no banheiro ou para a geladeira sem precisar apertar o pause ou dormir no meio sem culpa. Ou seja, é melhor que Batman vs. Superman.”

9) Vinyl

Bobby Cannavale

Bobby Cannavale

“Usar uma gravadora como ponto de observação daquela década parecia tão apetitoso quanto assistir às transformações da década anterior a partir de uma agência de publicidade (a premissa da excelente Mad Men). O problema é que, pra começar, Vinyl usava isso apenas como pano de fundo. Misturava biografias e mitologias diferentes em uma narrativa que parecia sofrer dos principais problemas da década. Só quem se beneficiava era a trilha sonora e a direção de arte (que também sofria do exagero da década). Todo o resto era humilhantemente constrangedor.”

8) O fim da tira Chiclete com Banana

Última tira Chiclete com Banana, publicada no dia 8 de maio de 2016, na Folha de S. Paulo

Última tira Chiclete com Banana, publicada no dia 8 de maio de 2016, na Folha de S. Paulo

“Desligar Chiclete com Banana é uma forma de manter-se vivo. Se continuasse, Angeli poderia ficar ainda mais existencialista e a acidez do passado iria dissolver-se num eterno amargor que começaria a lhe fazer mal. A nos fazer mal. Mal, com letra maiúscula. Felizmente, ele percebeu a tempo de fechar o ciclo. E, com o fim de um ciclo, começa outro – será que agora vamos ver graphic novels ou telas imensas feitas por um sujeito que começou desenhando nas páginas de jornal? Grandes artistas passam por grandes mudanças, algumas vezes sem ter a consciência disso, e conseguem se superar mudando completamente o ritmo do próprio trabalho – Picasso, Rothko, Chuck Close, Lichtenstein, Crumb. Talvez o fim de Chiclete com Banana dê início a uma nova fase para Angeli. Estou na torcida.”

7) Batman vs. Superman

Lixo

Lixo

“Não perca seu tempo nem seu dinheiro vendo este filme. Não recomendo nem que você espere passar na TV aberta para assisti-lo dublado. Porque é um dos piores filmes deste século, tranquilamente. Mas eu sei, você é fã de quadrinhos e fã de filmes de super-herói e vai pagar pra assistir a esse filme no cinema, mesmo com todos os pés atrás possíveis. A gente precisa ver pra ter certeza que não estragaram essa mitologia que crescemos vendo, afinal gastaram tanto dinheiro com isso, né? Não pode ser tão ruim. Pois pode. Pode e é. É o cúmulo do lixo filmado, tudo que está errado em Hollywood atualmente, mais um filme de ação hiperbólico rodando em falso. Mas não mata o gênero super-herói nos cinemas, especialmente se a Warner tirar Zack Snyder da jogada.”

6) A morte de George Michael

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“Mais uma vítima deste trágico 2016, George Michael, que morreu no dia de Natal, aparentemente parece não pertencer ao mesmo panteão dourado que reuniu David Bowie, Prince e Leonard Cohen com o passar do ano. Mas, sim, o jovem de parcos 53 anos é um ícone de semelhante estatura. O que talvez tenha a ver com a natureza de sua musicalidade – compositor refinado e popular ao mesmo tempo (características quase excludentes hoje em dia), ele exaltou as culturas dance e gay e ele elevou a música pop a outro patamar.”

5) A morte de Leonard Cohen

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“Não há, no entanto, tristeza, nem lamento, nem arrependimento, nem dor. Velho desde jovem, Cohen morre tão enfático, decidido e sutil quanto em seus primeiros discos, uma alma quase fantasmagórica que agora vive para sempre em uma curta (14 discos em quase meio século) mas profunda obra. Por isso não chore. Não ceda às emoções. Não entregue-se ao pessimismo. A morte de Leonard Cohen era tão certa quanto foi seu nascimento. Não sofra por um futuro sem ele, iríamos viver isso. Aproveite este último capítulo para celebrar sua existência e comemorar a sua própria maturidade.”

4) A morte de George Martin

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“O barateamento das tecnologias de gravação, o surgimento do hip hop e da música eletrônica e a excelência dos atuais programas digitais de edição de som permitiu que as gerações de produtores seguintes se inspirassem no legado de Martin com os Beatles e fossem além. Hoje há pelo menos três gerações de músicos que não tocam instrumentos musicais e sim outros músicos – um espectro gigantesco que abrange Brian Eno, Dr. Dre, Teo Macero e Lee Perry, que ainda inclui multiinstrumentistas como Prince e Brian Wilson – que deve sua existência ao casamento pioneiro entre os Beatles e George Martin. São dois legados diferentes que se misturam, mas igualmente importante para a cultura atual: o do grupo e o do produtor.”

3) A morte de Carrie Fisher

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“Não era mais uma donzela em pânico esperando ser salva por seu herói, mas ela mesma era uma heroína e fazia parte da gangue. E em Carrie Fisher a personagem cresceu significamente – ao ser interpretada por uma atriz nascida no showbusiness (filha do cantor Eddie Fisher e da atriz Debbie Reynolds), a personagem ganhava uma dose de cinismo, arrogância e despeito que nunca estiveram em uma personagem mulher num filme que atingira um público tão grande. Ela era herdeira direta das protagonistas dos filmes da nouvelle vague francesa: Luke, Leia e Han Solo pareciam ser uma versão norte-americana do trio protagonista do Jules e Jim de Truffaut e uma frase do próprio Godard (“Tudo que você precisa em um filme é de uma garota com uma arma”) é a base para sua presença na tela durante os três primeiros filmes da saga Skywalker. E, claro, assistir as transformações sociais do mundo nos anos 60 ainda criança fez que ela levasse aqueles valores para um personagem que iria mudar a forma como as mulheres se viam fora do cinema.”

2) A morte de Prince

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“Era uma versão masculina da Madonna que tocava todos os instrumentos que queria aprender, um George Clinton que pilotava uma espaçonave sexual, inventor de um funk sintético recheado de soul music e coberto pela estética do rock. Ele ajudou a soul music e a discoteca a se transformarem no R&B moderno ao acompanhar a evolução apontada pelo hip hop tocando instrumentos em vez de discos. Um explorador sônico que usava timbres eletrônicos como desculpa para desbravar ambientes musicais improváveis – e grudentos.”

1) A morte de David Bowie

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“Bowie transformou a sensação de estranhamento que todos nós sentimos – em maior ou menos escala – em grande arte. Estranhamento em relação ao mundo, à sociedade, à vida, a si mesmo. Contemporâneo da geração de ouro da história do rock (era cinco anos mais novo que Paul McCartney, dois anos mais novo que Pete Townshend e Eric Clapton), ele chegou tarde nos anos 60 para garantir presença no panteão que mudou a história da cultura ocidental. Mas não sem motivo. Ao lançar a própria carreira no final da década do rock clássico, ele a sincronizou com um momento único na história da humanidade e fez-se notar pela primeira vez lançando uma música sobre a solidão no espaço sideral e o olhar frio e distante sobre o planeta, a Terra, o mundo, nós mesmos.”

Dez discos clássicos que fizeram aniversário em 2016

10) 25 anos de Bandwagonesque

bandwagonesque

“Sem pretensões mercadológicas, planos de negócios, shows em estádios ou discos de diamante, o Teenage Fanclub conseguiu sintetizar a essência da canção pop em um disco ousado por sua despretensão e marcante por sua simplicidade. Doce e direto, Bandwagonesque sobrevive não apenas como um registro do início do fim da era da canção ou como souvenir nostálgico daquele período, mas como um disco de música pop deveria soar, por definição. Essencialmente humano.”

9) 40 anos do primeiro disco dos Ramones

ramones

“A essência dos Ramones era sua unidade: tudo soava como uma coisa só. Não importavam os instrumentos, baixo, guitarra e bateria seguiam o mesmo ritmo. Os temas das músicas menos ainda – podiam estar cantando sobre nazismo ou sobre dançar, o tom era sempre o mesmo. As músicas pareciam as mesmas e duravam dois minutos cada. Os músicos pareciam o mesmo e seguiam mal encarados independentemente da reação da plateia. O baixista gritava “1-2-3-4″ e as músicas começavam com a mesma grosseria que terminavam. Os Ramones eram repetitivos, monótonos, barulhentos, ameaçadores – essa era sua magia. Aos ouvidos do século 21 os Ramones soam quase inofensivos, mas no meio dos anos 70 era o patinho feio, uma mancha grosseira na bela paisagem do rock de então. Foram eles que plantaram a semente que mudou tudo.”

8) 25 anos de Nevermind

Nevermind

“Foi aí que a ficha caiu: a brecha havia rompido o muro. A partir dali a indústria fonográfica e as rádios começaram a perder o controle (mesmo transformando a geração do Nirvana em uma cena comercial, tal como o proverbial bebê engolindo a isca da capa do disco) e as pessoas começaram a conhecer mais músicas. A partir de Nevermind, a brecha, que era um segredo, tornou-se pública e o mundo descobriu o submundo do pop quando ele já era adulto. O Nirvana era só o caçula daquele novo mercado que começaria a transformar completamente a cara do pop a partir dos anos 90. Quando o computador chegou pra facilitar a gravação de discos em casa e a internet chegou para facilitar distribuí-los, toda aquela safra de novos artistas que alimentaria aquele novo sistema já estava pronta. E a música nunca mais seria a mesma.”

7) 25 anos de Loveless

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“Por toda sua extensão Loveless é um sonho tocado no último volume. O estranho assobio produzido pela forma de tocar guitarra de seu líder Kevin Shields é apenas um dos elementos únicos que definem a banda, como a onipresente parede elétrica de microfonia anestesiada, os doces vocais que sussurram no abismo, o acúmulo de instrumentos, a presença quase sutil de uma bateria montada na pós-produção, em loop eletrônico, o efeito entortado que o uso da alavanca de tremolo dá aos acordes secos e multiplicados, as eventuais ondas de ruído que parecem funcionar como abóbodas de catedrais.”

6) 25 anos de BloodSugarSexMagik

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“Todas as faixas daquele novo disco duplo de quase 75 minutos repensavam o delírio adolescente e fazia a banda confrontar os dilemas da vida adulta – principalmente de natureza espiritual e sentimental. Faixas como “Breaking the Girl” e “I Could Have Lied” mostravam um Red Hot Chili Peppers gravando baladas pela primeira vez e um poema de Kiedis encontrado amassado no chão por Rick Rubin foi transformado em um dos grandes carros-chefe da banda, a balada anti-heroína “Under the Bridge”.”

5) 25 anos de Screamadelica

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“”Este é um dia lindo… Um novo dia…”, bradava o reverendo sobre uma base borbulhante, “Nós estamos juntos… Nós estamos unidos… E todos de acordo… Porque quando estamos juntos temos força… E podemos tomar decisões… No programa de hoje ouviremos gospel e rhythm & blues e jazz. São apenas rótulos. Sabemos que música é música”, formalizando Screamadelica como um novo artefato pop: um disco de protesto para dançar e viajar, sintetizado neste discurso sampleado. Uma lição que não tem idade – seja em 1956, 1967, 1972, 1978, 1991, 2016 ou em qualquer outra época – afinal, se Jesse Jackson nos lembra que tudo é música, a própria psicodelia e o Primal Scream, também nos lembram que o tempo não existe.”

4) 30 anos de The Queen is Dead

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“Foi assim que os Smiths abriram um caminho alternativo para o rock, quase trinta anos após sua criação nos anos 50. No momento em que o aspecto guerreiro e trovador do formato se transformava em caricatura ou em algo pior – um mero produto -, o grupo inglês reanimou aquela formação musical para que ela pudesse persistir por mais algumas décadas, apontando para valores considerados secundários no gênero, como a sensibilidade, a timidez, a revolta interior. Um legado imensurável.”

3) 50 anos de Pet Sounds

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“Mesmo que o disco tenha azedado sua relação com seu primo Mike Love, causando o principal cisma na história do grupo, ele é o ápice da carreira de Brian Wilson e dos Beach Boys. A provocação foi entendida pelos Beatles do outro lado do Atlântico, quando Paul McCartney – nascido apenas dois dias antees que Brian – ouviu o disco com a mesma sensação que Brian ouvira Rubber Soul, provocando-o a ser ainda mais ousado com os Beatles, o que lhe fez criar o conceito do disco Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band, lançado em 1967. Foi apenas um entre os vários artistas influenciados por um disco que foi crucial na transformação que aconteceu nos anos 60 e até hoje faz novos fãs – e que, sem exagero, mudou a cara do pop, que teve no álbum a certeza de que era possível ser mais artístico, autoral e comercial ao mesmo tempo.”

2) 50 anos de Blonde on Blonde

blonde

“São músicas que estão entre as grandes músicas daquele período, independentemente do gênero musical, e, em sua maioria, clássicos do século passado. Da jocosa “Rainy Day Women #12 & 35″ – que abre o disco como uma banda marcial chapada, com Dylan repetindo o trocadilho raso “everybody must get stoned” às gargalhadas, em que brincava com o duplo sentido da palavra “stoned” (apedrejado ou chapado) – à pesarosa “Sad Eyed Lady of the Lowlands”, que ocupa todo o último lado do segundo disco, somos apresentados a um desfile tão impressionante de músicas boas que parece inacreditável que pertençam a um mesmo disco: “Pledging My Time”, “Visions of Johanna”, “One of Us Must Know (Sooner or Later)”, “I Want You”, “Stuck Inside of Mobile with the Memphis Blues Again”, “Leopard-Skin Pill-Box Hat”, “Just Like a Woman”, “Most Likely You Go Your Way and I’ll Go Mine”, “Temporary Like Achilles”, “Absolutely Sweet Marie”, “4th Time Around” e “Obviously 5 Believers” estão todas entre as melhores canções de Dylan e em todas ele consegue equilibrar a autoridade e altivez da arte com a força e crueza do rock.”

1) 50 anos de Revolver

revolver

“A experimentações iam para todos os lados. Solos de guitarra invertidos, canções gravadas em uma velocidade e tornadas mais lentas no estúdio, instrumentos eruditos e estrangeiros, colagens e efeitos sonoros, metais, percussão, microfones colocados em lugares inusitados, cordas inspiradas nos filmes de Truffaut e Hitchcock, letras sobre drogas, morte, sonhos, impostos e um submarino amarelo. Sonatas perfeitas, saudações à vida, composições inspiradas pelos Beach Boys, por Bob Dylan e LSD, romances críveis, palavras de ordem, sentimentos expostos e uma viagem à Índia. Três músicas de George Harrison e uma cantada por Ringo, um conjunto de músicas que não estão entre os grandes hits da banda mas que moram no coração de qualquer fã do grupo.”

E assim despeço-me deste ano que, apesar de tudo, teve seus momentos. O blog volta à ativa no dia 9 de janeiro (ou se acontecer algo urgente, a qualquer momento). Obrigado pela companhia e feliz 2017!

Screamadelica: um quartinho de século

screamadelica

O disco mais importante do Primal Scream – e dos anos 90 – completa 25 anos neste dia 23 de setembro – e eu falei sobre sua importância lá no meu blog no UOL.

“O que é que vocês querem fazer?”, pergunta um juiz de cara amarrada ao líder da gangue de motoqueiros interpretado por Peter Fonda, ele próprio um ícone contracultural: protagonista de uma canção psicodélica de John Lennon (ele é a inspiração de “She Said She Said” dos Beatles) e do filme Easy Rider – Sem Destino, Fonda é a encarnação do roqueiro do contra, violento e apaixonado, que se entrega ao puro delírio aberto pelo rock. E ele responde ao juiz com um discurso:

“Queremos ser livres! Para fazer o que quisermos! Queremos ficar chapados! E queremos ficar numa boa! E é isso que vamos fazer! Vamos ficar numa boa! Vamos fazer uma festa!”

O diálogo do filme Os Anjos Selvagens, sobre gangues de motoqueiros, de 1966, é interrompido por um assalto de metais e um trecho do semi-hit disco “I Don’t Wanna Lose Your Love” do grupo Emotions, repetido até virar um gospel.

Depois a música é encorpada com um baixo pesado e cheio de groove que segue a progressão de acordes de um trecho de “I’m Losing More Than I’ll Ever Have” do Primal Scream, que ganhou uma percussão parente daquela mesma progressão de acordes quando foi usada pelos Rolling Stones, em “Sympathy for the Devil”, de quem seu produtor surrupiou os teclados. A bateria vinha de uma versão pirata de “What I Am”, de Edie Brickell. Ainda havia um trecho do vocalista do Primal Scream, Bobby Gillespie, cantava um trecho de “Terraplane Blues”, do ícone máximo do blues Robert Johnson.

Esse foi o trabalho artesanal feito pelo jornalista e então DJ iniciante Andy Weatherall, após ser convidado pelo amigo Alan McGee a apresentar o Primal Scream para a cena acid house que dava origem ao segundo verão do amor na Inglaterra. Os subgêneros musicais que nasceram a partir do fim da disco music se reencontravam felizes na pista de dança inglesa, graças a um novo aparelho chamado sampler – que permitia recortar e colar pedaços de músicas umas nas outras – e a uma nova droga chamada Ecstasy – a primeira encarnação da metilenodioximetanfetamina (também conhecida como MDMA) que espalhava a sensação de amar e ser amado pelo corpo e cabeça de seus usuários. Bobby Gillespie, líder e vocalista do Primal Scream, olhava tudo aquilo de fora, sem entender direito o que estava acontecendo, mas com uma clara admiração por aquele novo movimento hippie, que misturava drogas e amor livre como nos anos 60, mas sacudia-se em beats eletrônicos e baixos funk.

Naquela época, final dos anos 80, Andy Weatherall ainda era um jornalista empolgado com a possibilidade de discotecar para multidões e só havia feito um único remix antes do pedido do amigo McGee, uma versão para “Hallelujah” da banda de Manchester Happy Mondays. Weatherall conhecia o Primal Scream o suficiente para saber que a distância que aquele grupo de rock tinha daquela cena de DJs poderia ser encurtada apertando os botões corretos. E assim ele transformou “I’m Losing More Than I’ll Ever Have” em “Loaded”, seu segundo remix, e a primeira faixa do Primal Scream a chegar às paradas de sucesso.

“Loaded” – “carregado” na tradução literal e “chapado” na tradução correta – foi a deixa perfeita. Com um hit na manga, a banda não só entrou naquela nova cena como mergulhou de cabeça em todos seus excessos, especialmente o de drogas. Aos poucos foram entendendo aquela nova realidade e compuseram um disco que a retratasse, a colocando no eixo canônico de vários outros movimentos contraculturais que Bobby Gillespie carregava em si: o primeiro rock’n’roll, os hippies dos anos 60, a soul music, os punks dos anos 80, a disco music, os primeiros indies. E esse disco foi lançado exatamente no dia 23 de setembro de 1991, fazendo-o completar um quarto de século exatamente hoje.

Screamadelica é um clássico desde seus primeiros dias, primeiro pelo óbvio motivo de conseguir retratar como ninguém o espírito da cena dance inglesa daquela época, o trator de groove que virou a música pop inglesa do avesso entre a primeira geração indie e o britpop. O impacto daquele novo verão do amor era difícil de ser registrado porque o anonimato era uma de suas características e os novos artistas ou tinham cara de gente comum ou faziam questão de esconder o rosto. Poucos artistas assinavam com o próprio nome e inventavam codinomes elusivos, que não lembravam nomes de bandas tradicionais, assertivos, como pedia a música pop até então – 808 State, Adamski, KLF, LFO, The Shamen, A Guy Called Gerald, Humanoid, além de DJs de Chicago (o berço da house music) que encontraram um segundo lar em Londres, como Lil Louis, Bam Bam, Maurice, Mr. Lee, Adonis, Armando, Phuture. Também não era uma cena afeita à canção, aos riffs ou aos refrões, tomando de assalto os sentidos e a audição com choques de realidades musicais ou à base da repetição contínua.

O Primal Scream, por sua vez, era uma banda em plena mutação. Bobby Gillespie havia tido uma banda punk com o próprio Alan McGee (que anos depois seria seu contratante na gravadora indie Creation) no final dos anos 70. Criou o Primal Scream como um projeto de quarto com um amigo de infância, Jim Beattie, em Glasgow, na Escócia, emulando Velvet Underground, Big Star e Byrds com baixos do New Order, que nunca chegou a fazer shows. O nome veio de uma técnica psicoterapêutica de purificação espiritual à base do grito, popularizada tanto por John Lennon (cuja “Mother” é inspirada na técnica) quanto pelos Tears for Fears (que tiraram seu nome de uma expressão desta técnica). A dupla virou banda e a partir de 1982 começou a fazer shows esparsos.

Bobby ainda encontrava tempo para levar uma vida dupla e tocar bateria no Jesus & Mary Chain quando este ainda era uma banda em formação, participando do primeiro disco do grupo, o seminal Psychocandy, e viu o Primal Scream entrar na compilação em cassete organizada pelo semanário New Music Express C86, estando, portanto, em dois momentos cruciais da história do indie inglês. No entanto, os irmãos Reid, que também atendem pelo nome de Jesus & Mary Chain, acharam que era demais ter um baterista tocando em outra banda e pediu que Bobby escolhesse o que preferia fazer. Feizmente Bobby optou pelo Primal Scream, que a essa altura já havia gravado seu primeiro disco, Sonic Flower Groove, em 1987, pelo selo Elevation, que o amigo McGee havia conseguido abrir dentro da gravadora Warner (torrando 100 mil libras com a gravação do disco).

primal-scream

Nesta época a formação da banda começava e se estabilizar com a presença dos amigos Robert Young no baixo e Andrew Innes na guitarra e ocasionais participações de Martin Denny, do Felt, como tecladista, além de uma série de bateristas rotativos. Com esta formação, o Primal Scream foi aos poucos abandonando o indie pop com referências folk dos anos 60 para abraçar o rock mais guitarreiro e mais setentista, clima que determinou o segundo álbum, de 1989, batizado com o próprio nome, e lançado pela própria gravadora independente de Alan McGee, a hoje lendária Creation. Foi neste período que a cozinha da banda foi completa com a entrada do baixista Henry Olsen e do baterista Phillip “Toby” Tomanov, que na época estavam tocando com a banda que acompanhava a vocalista Nico, The Faction. Com a entrada de Olsen, Young assume a segunda guitarra e o som da banda fica cada vez mais pesado e roqueiro.

O que contrastava con o novo horizonte do pop inglês. O flerte que o New Order teve com a dance music nova-iorquina em “Blue Monday” em 1984 começou a levar aquela que era uma das principais bandas da época para a pista de dança – e junto com eles, sua bagagem de referências de música eletrônica, principalmente alemã. As guitarras vão para um segundo plano quando o pós-punk começa a experimentar outras possibiidades de se fazer música pop e encontra um público que quer mais dançar do que assistir shows. Novos clubes – como Shoom, Future e Trip – começam a abrigar noites tocadas por DJs e a dominância daquele novo tipo de som levou Morrissey a pedir seu enforcamento no refrão do hit “Panic”, dos Smiths. Isso culmina com a fundação da casa noturna Haçienda, que o próprio New Order inaugura em sua cidade natal, Manchester, que começa a mostrar para seus fãs roqueiros que há uma nova psicodelia em andamento na pista de dança. E a cena criada ao redor daquela casa – conhecida como “Madchester” – começa a misturar a nova dance music com bandas de indie rock da cidade, especificamente os grupos Stone Roses e Happy Mondays, entre outros.

É esta nova paisagem musical que recebe o Primal Scream na virada da década. E depois da apresentação feita da banda àquela nova cena pelo remix de Andy Weatherall, o grupo mergulha de cabeça naquela fusão de gêneros musicais disposto a fazer um disco que traduzisse as diferentes essencias musicais que pulsavam na Inglaterra do final dos anos 80: o amadurecimento do indie rock, um revival de soul music, a ascensão da música eletrônica, a redescoberta do rock dos anos 70, o astral hippie generalizado, a sensibilidade dance dos novos DJs. Para isso, reuniu um time de produtores para correr riscos e caminhar por territórios não-mapeados em suas mentes – além de chamar Andy Weatherall para pilotar a mesa do disco, a banda também chamou o produtor Tony Martin (que assinava como Hypnotone), o engenheiro Hugo Nicolson, a dupla The Orb e Jimmy Miller, que trabalhou com os Stones em seus discos mais clássicos.

Screamadelica, como seria batizado mais tarde, dissiparia as barreira entre diferentes gêneros musicais e traduziria o sentimento estético daquela época como ninguém. Lançado no final de 1991, ele também funcionava como o capítulo final daquela cena, que começava a ser perseguida pela mídia conservadora inglesa, horrorizada com aquele excesso de sexo e drogas no ar. Mas ao ser imaginado como parte de um cânone maior, o álbum consegue ampliar sua influência para além de um mero retrato da época. É um disco que continua moderno, ousado e de tirar o fôlego até hoje. E se não fosse um clássico facilmente reconhecível, poderia ser tranquiamente um disco gravado em 2016 – ou em 2041.

Screamadelica é temperado com as referências certas. O disco abre com “Movin’ On Up”, cantada sobre um violão com acordes abertos e letra ensolarada e religiosa como um gospel pleno, mas que saiu do meio da faixa “Yoo Doo Right”, do grupo de krautrock Can.

A escolha por uma versão para o clássico psicodélico dos anos 60 – “Slip Inside This House” dos 13th Floor Elevators – abre margem para um trocadilho com aquela nova cena musical e o grupo parte da infâmia para o sublime ao sintonizá-la em uma house music com cítaras indianas, com direito à gargalhada de Sly Stone no final de sua versão para “Sex Machine”, de James Brown. É a única faixa do disco que não é cantada por Bobby, e sim pelo guitarrista Robert Young.

“Don’t Fight It, Feel It” vai ainda mais dentro da dance music ortodoxa, com a chanteuse Denise Johnson fazendo o papel de diva house mas cantando um refrão (“I’m gonna live the life I love, gonna love the life I live”) surrupiado de um velho soul (“(I’m a) Road Runner”) dos anos 60.

E o disco continua todo nessa pegada. O voo de Ícaro em “Higher Than the Sun” faz graves robóticos conviver com frequências lisérgicas em sua primeira versão, um mix feito pela dupla Orb sobre o groove de “Wah-Wah Man”, da banda Young-Holt Unlimited.

Mais tarde, a mesma música volta em uma versão com quase oito minutos com o subtítulo de “(A Dub Symphony in Two Parts)” e o baixo cavalar de Jah Wobble, da seminal banda pós-punk Public Image Ltd. A letra é uma viagem psicodélica que ecoa tanto o misticismo de William Blake, o zen-espiritualismo beatle com o satanismo de Aleister Crowley.

“Minha estrela mais brilhante é minha luz interior
Deixe que ela me guie
Experiência e inocência
Sangram dentro de mim
Alucinógenos podem me abrir
Ou me desatar
Vago no espaço livre de tempo
Encontro um estado superior de graça em minha mente

Sou belo, não nasci para seguir
Eu vivo apenas o hoje, não me importo com o amanhã
O que tenho dentro da minha cabeça você não pode roubar ou pegar emprestado
Acredito em viver e deixar viver
Acredito que você tem o que você dá
Vislumbrei ter provado lugares fantásticos
Minha alma é um oásis, mais alto que o sol”

O lado dance do disco convive com suas facetas mais introspectivas, como a etérea “Inner Flight”, que lista samples de Brian Eno, Dr. John e do explorador folk Alan Lomax; a bucólica “Damaged”; o lento despertar que mistura dub com jazz em “I’m Coming Down” (com seu sax descontrolado fazendo contraponto ao andamento quase oriental de uma música sobre ressaca) e o epílogo “Shine Like Stars”. Nestas faixas torna-se evidente uma das grandes forças do disco, um ponto fraco do Primal Scream que brilha como principal marca da banda principalmente a partir de Screamadelica: o vocal sussurrado e quase frágil de Bobby não funcionava quando o Primal Scream estava em seus dias mais roqueiros, emulando Stooges, MC5 e Rolling Stones com um vocalista indie. Ao dissipar gêneros a partir do fiapo de voz de Bobby, Screamadelica reforça a importância de seu líder nesta nova era musical – e do mesmo jeito que os novos DJs fugiam do estrelato, um rockstar podia não ter um vocal olímpico, tudo bem. Tudo ótimo, na verdade – afinal o timbre delicado contrastava com a atitude forte e inspirou diversos outros vocalistas do pop inglês e mundial desde então. O disco foi recebido com aplausos por boa parte da crítica inglesa (ganhando a primeira edição do hoje renomado prêmio Mercury) e consolidou-se como um dos grandes discos dos anos 90 e da história da música pop. Pessoalmente, é o meu disco favorito da última década do século passado.

O clima viajante esparramava-se por todo o disco – sua capa, por exemplo, partiu de uma alucinação de ácido que o designer da Creation, Paul Cannell, teve ao ver uma mancha de infiltração nas paredes da gravadora. Mas talvez o grande momento de Screamadeica seja seu segundo single, uma música que teve o título surrupiado de uma canção dos Beatles que sampleava Chuck Berry antes da invenção do sampler e que foi batizada a partir da campanha de Timothy Leary, o guru do LSD dos anos 60, para governador da Califórnia, na campanha contra o então governador na época que tentava a reeleição, o conservador Ronald Reagan. A versão de “Come Together” do Primal Scream também teve o dedo mágico de Andy Weatherall, que construiu sua versão sobre a faixa “The Dub Station”, de Tommy McCook & The Agrovators, e a temperou com o discurso que o reverendo Jesse Jackson fez na abertura do festival de Wattstax, da gravadora Stax, em Los Angeles, em 1972. O discurso é uma exaltação da cultura negra, mas encaixa-se perfeitamente no manifesto do disco:

“Este é um dia lindo… Um novo dia…”, bradava o reverendo sobre uma base borbulhante, “Nós estamos juntos… Nós estamos unidos… E todos de acordo… Porque quando estamos juntos temos força… E podemos tomar decisões… No programa de hoje ouviremos gospel e rhythm & blues e jazz. São apenas rótulos. Sabemos que música é música”, formalizando Screamadelica como um novo artefato pop: um disco de protesto para dançar e viajar, sintetizado neste discurso sampleado. Uma lição que não tem idade – seja em 1956, 1967, 1972, 1978, 1991, 2016 ou em qualquer outra época – afinal, se Jesse Jackson nos lembra que tudo é música, a própria psicodelia e o Primal Scream, também nos lembram que o tempo não existe.

Todo o show: Screamadelica ao vivo no Glastonbury de 2011

Que show… Que show…

Todo o show: Primal Scream tocando o Screamadelica em São Paulo, 2011

E o Glauber filmou todo o show do Primal Scream no sábado, bota fé?

E que show foi esse…

Higher than the Sun: Primal Scream e o Screamadelica ao vivo em São Paulo

Que show incrível esse de sábado, hein… Fácil fácil um dos melhores shows do ano.


Primal Scream – “Higher than the Sun”

Tu foi? Que achou?

 

Hitler e o show do Primal Scream no Rio de Janeiro

Quer dizer que o Rio de Janeiro pode ficar sem o show do Primal Scream porque pouco menos de 100 pessoas não compraram ingressos reembolsáveis? Não pra acreditar nisso…

Enquanto estive fora: Screamadelica no Brasil

E um pouco antes do show do Flaming Lips no Alexandra Palace, encontrei com o Lucio (o mundo é um lugar muito pequeno), que confirmou que está trazendo o show do Screamadelica para o Brasil, bola que venho cantando há uns tempos. Abaixo, o programa Classic Albums sobre o disco clássico.

Aê Screamadelica!

As I’ve sang that ball


(E essa vaibe “Sympathy for the Devil” em “Loaded”, hein? E ainda há quem descurta… Tolos)

…a Rolling Stone confirma a lebre que eu havia levantado segunda.

Screamadelica ao vivo no Brasil?

Falando no Camilo, ele volta ao Screamadelica, do Primal Scream, que viu ser lançado em clássica resenha da Bizz há vinte anos:

Levadas blues-soul a la Exile On A Main Street (Jimmy Miller, produtor desse clássico dos Stones, faz parte do time de Screamadelica), dub subaquático, jazz transcedental a la Sun Ra, trips PinkFloydianas, ambiências de Brian Eno, pisadas de house, beats de hip hop, coros gospel, discurso de Jesse Jackson, frases de Kraftwerk: o álbum tinha tudo isso e mais.

O texto faz parte da nova coluna que ele criou em seu blog, chamada DNA, que é uma espécie de Discoteca Básica de seu universo pop. Camilo, na minha nada humilde opinião, é um dos três nomes que mais me influenciaram como autor (os outros dois eu nunca sei quem são) e tê-lo como amigo há mais de quinze anos é prova de que ambos estamos certos em nossos rumos paralelos.

Mas loas aside, ao que tudo indica, corremos o risco de assistir ao Screamadelica ao vivo ainda este ano, no Brasil.

Será?

Dedos cruzados.

20 anos de Screamadelica

Lembra daquela lista dos discos lançados em 1991? Olhaí um deles ganhando reedição inacreditável.