Em Avante Delírio, Saulo Duarte se despede da Unidade em busca de uma nova sonoridade – bucólica porém solar. Ele me convidou para escrever o texto de apresentação de seu primeiro disco solo, que reproduzo a seguir.
Saulo Duarte queria ouvir a própria voz e não era a voz com a qual cantava n’A Unidade, usina paraense de groove que havia fundado no bairro do Cambuci, em São Paulo, no início da década. A quantidade de músicos no grupo e a energia intensa de suas apresentações fizeram-no separar um material musical próprio, que pouco a pouco ia ganhando cara e corpo longe de seus colegas de banda. Queria, no entanto, explorar novos ares para aquelas canções bem como traduzir essa nova sonoridade para além da festa que era a Unidade.
Foi quando o convidei para realizar uma temporada no Centro da Terra, pequeno foco de resistência cultural no bairro do Sumaré, também na capital paulista. Na curadoria de música do local desde o início do ano, transformei suas segundas-feiras em um laboratório musical para músicos, intérpretes e compositores experimentarem possibilidades estéticas para além dos discos, clipes, shows e turnês. E a dúvida que Saulo me apresentava – cogitar caminhos diferentes para sua musicalidade a partir de formações que iam de encontros com banda até a voz e o violão – se encaixava perfeitamente com a proposta do Segundamente, nome de batismo destas temporadas.
Assim, Saulo bolou a temporada Persigo São Paulo, nomeada em homenagem a Itamar Assumpção, em outubro de 2017, quando usava as segundas-feiras para encontros de diferentes natureza com vários parceiros, desde irmãos de longa data a novos músicos com quem se identificava. Reuniu Giovani Cidreira, João Leão, Bruno Capinan, Russo Passapusso, Igor Caracas, Victor Bluhm, Josyara e Curumin e se a princípio ele parecia estar em dúvida para definir por qual daquelas quatro frentes atuaria, a temporada lhe revelou que o rumo era um híbrido de todas apresentações.
O disco que depois se tornaria Avante Delírio começou a ser gravado em seguida: em dezembro do ano passado no estúdio Navegas Cantareira com Zé Nigro e Lenis Rino, em janeiro do ano seguinte no estúdio YB com Fernando Rischbieter, no mês seguinte no Klaus Haus Studio com Klaus Sena e no Matraca Records em março com Pedro Vinci, além de recuperar gravações que havia feito no Red Bull Studio com Rodrigo ‘Funai’ Costa e Alejandra Luciani no meio do ano passado.
Em comum, o astral aberto característico de suas composições n’A Unidade, mas com um quê de melancolia e uma dose de realismo duro. No mesmo período, saiu dos holofotes como guitarrista ao assumir o instrumento que lhe consagrou no trabalho do casal de amigos Anelis Assumpção e Curumin, tornando-se integrante temporário das bandas respectivas, Os Amigos Imaginários de Anelis e os Aipins de Curumin. Ao emprestar seus timbres elétricos para os velhos compadre e comadre, tirou-os de sua dianteira para abraçar o instrumento que dá rumo, sabor e textura a seu primeiro disco solo – o violão de nylon.
Esse velho companheiro é o cajado no qual Saulo se escora para trilhar novos rumos – e para com ele diminui o impacto de sua energia para uma esfera quase familiar, doméstica. Saem os festivais a céu aberto repletos de multidões aos berros e o sol entra por uma fresta matutina em um apartamento espaçoso, plantas, tapetes, quadros, cinzeiros, incensos e discos de vinil espalhados por mesas no canto. Mesmo quando o clima é mais soturno ou sisudo (há sombras mesmo nos momentos mais ensolarados do disco), ele não é nem grandioso nem pessimista.
E assim ele recebe um time de amigos como quem abre sua casa para um almojanta de sábado à tarde, todos se espalhando pelo disco como se pegassem um canto da sala – um banco, uma rede, um pufe, o sofá. Além do violão e vocais de Saulo e do baixo e bateria dos coprodutores do discos, os bróders Zé Nigro e Curumin, deslizam pelos discos as percussões de Maurício Badê e Igor Caracas, os sopros de Ed Trombone, Luca Raele, Jorge Ceruto e Fernando Bastos, as teclas de Pepe Cisneros e Marcelo Jeneci, os baixos de Betão Aguiar e Gustavo Ruiz e a presença de Negro Leo, além dos compadres de Unidade João Leão e Klaus Sena.
O violão de Saulo é a batuta que rege este encontro, mas ele é desconstruído e reconstruído pelo próprio e seus compadres Curumin e Zé Nigro, com quem Saulo divide a produção do disco. As levadas rítmicas mudam constantemente: o samba rock torto que vira um baião no meio de “Ela Foi Ver a Lua”, o jazz livre do início de “Tapume” logo bate continência a uma marchinha pós-apocalíptica, a levada suave de “Praça de Guerra” que se desdobra em uma bad trip de discos tocados de trás pra frente, o refrão delicado de “Estrela D’Água” é recriado como um arrastão lek lóki puxado por Negro Leo.
Primeiro disco solo de Saulo Duarte, Avante Delírio é um deleite musical – por vezes bucólico, por outras festeiro – que visa dissipar o clima pesado que paira sobre o Brasil no ano de seu lançamento. É um disco solar, animado, feliz, em que Saulo assume o violão como principal parceiro, disposto a atravessar as piores intempéries para trazer boas novas em forma de canção.
Os instrumentos se entrelaçam e se sobrepõem; o ritmo e melodia sempre protagonistas, seja nos momentos mais incisivos (como em “Rebuliço”, “Flor do Sonho” e “Se Esqueça Não”), nos mais tensos (“As Luzes da Cidade”, “Praça de Guerra”, “Tapume” e “Ela Foi Ver a Lua”) e nos mais tranquilos, como “Estrela D’Água”, a lindíssima faixa-título e “Não Existe Resposta para ‘Eu Te Amo’”, estas duas talvez os melhores retratos do disco: enquanto a última ecoa samba-jazz, funk nacional, João Donato, Marcos Valle e até um ar de pagode romântico, “Avante Delírio” resume magistralmente o disco, ecoando o clima intimista e familiar de Gilberto Gil e Jorge Ben com uma leve bruma psicodélica no ar. Saulo Duarte está em casa.
Pra dissipar as trevas.
Massive Attack – “Black Milk”
Yo La Tengo – “Shades of Blue”
Nill – “Atari Level 2”
Flora Matos – “10:45”
Isaac Hayes – “Part-Time Love”
Don L – “Mexe pra Cam”
Beck – “Beautiful Way”
Kanye West + Pusha T – “Runaway”
Blood Orange – “Take Your Time”
Marcelo Cabral – “Ela Riu”
Saulo Duarte – “Avante Delírio”
Tatá Aeroplano – “Vida Inteira”
Laura Lavieri – “Me Dê a Mão”
Betina + Bonifrate – “Aluguel”
O paraense Saulo Duarte vem guardando músicas que não irão para seu grupo A Unidade há quase uma década e no ano passado resolveu assumir sua carreira solo quando aceitou o convite que fiz para ser dono de uma temporada no Centro da Terra. Foram quatro shows e repertórios diferentes – um ao lado dos músicos João Leão e Victor Bluhm, outro com Josyara, Bruno Capinam, Igor Caracas e Giovani Cidreira, outro sozinho e um quarto, mágico, com Curumin e Russo Passapusso – que formaram a temporada Persigo São Paulo, inspirada por Itamar Assumpção, e que ajudaram a depurar estas canções, chegando a uma musicalidade específica, que não foge completamente do trabalho com sua banda, mas tem sua própria personalidade. Ele também expandiu ainda mais suas fronteiras musicais ao assumir o posto de guitarrista de duas bandas incríveis: a de Curumin e a de Anelis Assumpção. Batizado de Avante Delírio, o disco começa a ver a luz do dia com a faixa “Flor do Sonho”, parceria com o poeta cearense Daniel Medina, que ele lança em primeira mão no Trabalho Sujo.
O single dá dicas sobre o disco que vem por aí: além de solar e pra cima, Avante Delírio, também mistura gêneros musicais (o ijexá baiano e o carimbó paraense no mesmo groove) e foi calcado no violão de nylon, instrumento-cerne deste primeiro trabalho solo. Ele está prometido para o meio de agosto, foi coproduzido por Saulo, Curumin e Zé Nigro (que também é a banda-base do show) e a partir da semana que vem o trio embarca para a Europa, para uma breve turnê em que começa a mostrar esta nova faceta.
A primeira curadoria que exerci em 2017 começou no ano anterior, quando a Keren me chamou para assumir o papel de curador de música do Centro da Terra. Para mim o desafio era simples mas ao mesmo tempo complexo: chamar artistas para valorizar o espetáculo e criar novos projetos a partir do próprio local (ele mesmo uma viagem para dentro, como o próprio tom do meu 2017). Uma matemática irracional me fez criar o projeto Segundamente, em que artistas têm quatro segundas-feiras para criar um projeto próprio, de preferência inédito. Assim, tivemos os 15 anos de carreira do Tatá Aeroplano em março, o Chega em São Paulo de Negro Leo em abril, o Mergulho de Tiê em maio, o Depois a Gente Vê de Thiago França em junho, o Na Asa de Luísa Maita em julho, o Música Resiliente em Camadas Lentas do Maurício Takara em agosto, o Mete o Loco de Rafael Castro em setembro, o Persigo SP de Saulo Duarte em outubro e o Enfrente de Alessandra Leão em novembro, além dos shows individuais de Iara Rennó (Feminística), Luiza Lian (Oyá: Centro da Terra) e Papisa (Tempo Espaço Ritual), nos meses com cinco segundas-feiras. Foram meses de aprendizado e preparo, intensos e emocionantes, com o desafio de fazer o público da região do Sumaré sair de casa nas segundas-feiras para ver shows que não veria em nenhum outro lugar. Ainda teve o sensacional encontro com todos estes artistas na primeira segunda de dezembro, provando que a música vibra sem precisar de regras ou planos. É só deixar rolar. Agradeço imensamente a todos os artistas que convidei e também a todos que foram convidados por estes artistas, transformando o Centro da Terra em um núcleo de produção musical avançada numa época em que fazer cultura parece ser subversivo – porque talvez o seja.
Eis a íntegra do show que encerrou o ano no Centro da Terra, reunindo treze cobras da atual música brasileira: Alessandra Leão, Saulo Duarte, Thiago França, Luísa Maita, Papisa, Negro Leo, Luiza Lian, Tatá Aeroplano, Maurício Takara, Iara Rennó e Tiê, além dos convidados Marcelo Cabral, Rafa Barreto e Charles Tixier.
Que noite!
Encerramos o primeiro ano do projeto Segundamente no Centro da Terra convidando quase todos os músicos que encabeçaram espetáculos nas segundas-feiras para um grande encontro (mais informações aqui).
Saulo Duarte é o protagonista da série de shows Segundamente durante o mês de outubro. Durante a temporada, o músico revê a sua própria trajetória ao mesmo tempo em que aponta para o futuro em quatro shows distintos. A temporada é um ensaio para sua estreia como artista solo, um processo que já vem trabalhando desde o início do ano e que culmina nos quatro shows, que acontecem sempre às segundas-feiras, sob minha curadoria.
Completando uma década de atividade este ano, o músico e compositor paraense realiza quatro apresentações diferentes no Centro da Terra, em São Paulo, depois de três discos celebrados ao lado da banda Unidade. Nestas apresentações, ele convida diferentes músicos para acompanhá-los neste processo. O primeiro show, composto essencialmente por novas canções, será tocado ao lado dos músicos João Leão (baixo synth e teclados) e Victor Bluhm (bateria). Na semana seguinte (9.10), Saulo reduz ainda mais o instrumental e, munido apenas do violão e da percussão de Igor Caracas, abre alas para a entrada em cena de três convidados: Bruno Capinam, Giovani Cidreira e Josyara.
Se, com a Unidade, Saulo explorou a riqueza rítmica possibilitada pelo grande número de músicos no palco, na terceira noite (16.10) ele se propõe o inverso: munido apenas de voz e violão, Saulo expõe seu lado ‘trovador’, um formato que ele vem desenvolvendo ao longo deste ano. Neste dia, ele executa pela primeira vez o segundo single de seu novo disco. A série se encerra no dia 23.10, com uma apresentação inédita de Saulo, Russo Passapusso e Curumin. Utilizando vozes, violões e MPC, o trio visita canções do repertório de cada um e revela faixas inéditas.
O título da série de shows, inspirado na faixa de mesmo nome de Itamar Assumpção, reforça a influência paulistana sobre o trabalho de Saulo, principalmente ao reunir artistas e colaboradores que ele conheceu durante sua estada na cidade. Conversei com ele sobre esta temporada.
Como surgiu a ideia de se lançar em carreira solo?
https://soundcloud.com/trabalhosujo/saulo-duarte-persigo-sao-paulo-como-surgiu-a-ideia-de-se-lancar-em-carreira-solo
Como esta carreira solo será trabalhada durante o mês?
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Como surgiu o título da temporada?
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Todos os shows seguirão a mesma formação?
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Fale sobre cada uma das noites da temporada.
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Os shows terão repertórios diferentes?
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Como você acha que ele ajudará a moldar seu novo trabalho?
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Saulo Duarte está começando a definir sua carreira solo. Não, ele não abandonou a Unidade, grupo com o qual se estabeleceu na última década, mas busca pouco a pouco encontrar uma voz própria, paralela à de seu trabalho no grupo. “Ao longo desses nove anos com a Unidade eu compus outras músicas que não entraram nos discos da banda por não pertencerem àquele universo musical”, ele me explica por email. Sua carreira solo começa esta semana quando ele revela a primeira faixa de sua nova fase, ao lançar “O Lance” em primeira mão no Trabalho Sujo.
“Ela fala um pouco sobre o flerte, sobre isso de conhecer alguém, trocar poucas palavras e o indizível ficar no ar, as possibilidades variadas, a imaginação…”, ele continua. “É um devaneio dividido em algumas partes acompanhadas pela a parte instrumental: a parte 1 é conhecer a pessoa, parte 2 é o devaneio do ‘sonho/pesadelo’, a parte 3 é a constatação do que aconteceu e a parte 4 é o deleite de voltar pra casa com o lance que não precisa acontecer pra existir – lalalala”, brinca. A música carrega o que deve ser a marca dessa nova fase da carreira do compositor paraense: as parcerias com outros músicos e produtores. “Ela foi gravada no estúdio Navegantes pelo Ze Nigro e produzida pelo Curumin. Chamei esse nucleo do Curumin e os Aipins porque a gente já toca junto na banda do Russo Passapusso e na banda do próprio Curuma e já existe uma afinidade sonora, um gosto compartilhado. Foi fácil direcionar as idéias com eles porque já ia tudo pra mesma direção de forma natural, aí tem o Lucas Martins na guitarra, o Mauricio Badê na percussão, além do Curumin e do Ze Nigro tocando também. Ela foi mixada pelo Gustavo Lenza e masterizada pelo Felipe Tichauer”. O lançamento oficial é pela gravadora YB e chega às plataformas digitais nesta sexta-feira.
Sobre a sua banda oficial, ele acalmma os fãs. “A Unidade não acaba, todos da banda estão envolvidos em outros trabalhos atualmente e isso faz com que sigamos de uma forma diferente, mas a gente segue conversando sobre música e planeja lançar um próximo disco no futuro”, continua. “Agora estou envolvido no processo do meu disco e é minha prioridade. Essa diferenciação dos trabalhos acho que quem gosta do som naturalmente vai sacar, existem diversas semelhanças porque é o mesmo compositor, então diria que são diferenças sutis no texto, nos detalhes do som, mas é continuidade também.”
A previsão de lançamento do disco é para o ano que vem, mas ele planeja liberar outros singles antes do disco ficar pronto. “Quero ir fazendo essa transição de forma suave, é do meu desejo fazer um disco de música brasileira, com referências brasileiras, com o violão junto da banda novamente, fazendo riffs. Já tenho as músicas todas compostas, agora estou organizando para entender de que forma vai se dar essa narrativa.”
Rafael Castro, Saulo Duarte, Rita Oliva, Maurício Takara e Alessandra Leão estarão no segundo semestre no Centro da Terra, cuja sessão de segunda-feira passa a ser chamada oficialmente de Segundamente, como contei ao Pedro Antunes nesta entrevista para o Caderno 2 do Estadão.