Meça suas palavras. Não perdemos Rita Lee. Nunca perderemos Rita Lee. Ganhamos Rita Lee, isso sim. Ela é uma personagem ímpar em nossa história, não apenas em nossa cultura, não apenas em nossa música, em nosso rock. Mas Rita é muito maior que tudo isso. É um acidente feliz que mudou completamente nossas vidas, contemporâneos dela ou (agora) não. Não é exagero dizer que essa paulistana mudou a história do Brasil.
Lógico que existiria rock brasileiro sem Rita Lee. Certamente muito mais sem graça, menos provocador, menos sexy, menos mulher. Não existe um ícone roqueiro tão preciso no Brasil, não tem Roberto Carlos nem Cazuza, nem Baby Consuelo nem Ney Matogrosso, nem Celly Campelo nem Renato Russo. Não à toa Rita não era comparada a nenhum de seus conterrâneos, as referências eram sempre internacionais. No dia de sua passagem não faltam comparações que a colocam ao lado de outros ídolos do rock, todos homens: “nosso Mick Jagger”, “nosso David Bowie”, “nosso Paul McCartney”… São comparações bem vindas, mas que morrem na praia, porque nossa Rita Lee era maior do que qualquer um desses, porque ela conseguiu ser tudo isso sendo mulher num país atrasado da América Latina e cantando em português. Nenhuma mulher do rock internacional tem a força e o espírito de Rita, nem Grace Slick, nem Patti Smith, nem PJ Harvey. Porque mesmo tendo saído de uma das bandas de rock mais importantes de todos os tempos (e pouco reconhecida internacionalmente como tal), ela superou a importância do grupo – e tornou-se uma estrela central em seu próprio sistema solar, mais do que um planeta girando em torno de um sol nostálgico.
Mesmo porque Rita Lee é muito mais do que rock. Só o início de sua carreira solo (minha fase favorita) pode ser rotulada estritamente como rock, discos gravados com os Mutantes embora lançados com seu nome ou lançados ao lado do Tutti-Frutti deveriam estar em quaisquer discografias básicas do gênero e a dobradinha Fruto Proibido e Entradas e Bandeiras é a porta de entrada pra quem quiser entender o que é o rock feito no Brasil. Mas depois disso, ela flertou com a disco music, preparou o terreno para a chegada do pop dos anos 80, gravou canções com sabor latino, crônicas pop, paródias de outros gêneros musicais, além das eternas declarações de amor aos Beatles.
Sua atuação ia para além da música, comemorando o feminismo, o hedonismo, a sexualidade, o uso de drogas recreativas e batendo de frente de qualquer tipo de autoritarismo que visse em sua frente. Era a primeira a se ridicularizar e fazer pouco de sua importância, mas sabia o quanto havia deixado ouvintes felizes, tornado outros tantos fãs e inspirados mais outros – e, principalmente, outras – a seguir a carreira artística. Não era uma mulher à frente do seu tempo – era o próprio tempo nos lembrando que era uma mulher. Uma mulher brasileira, desbocada e de saco cheio de tudo, mas também mãe e esposa amorosa e uma personalidade pública que nunca se esquivou de dar sua opinião em assuntos espinhosos – por mais que odiasse dar entrevistas. Seu papel como motor das transformações comportamentais que aconteceram no Brasil nas últimas décadas a coloca acima de nomes consagrados do pop brasileiro não apenas pelo fato de ser mulher (a imensa maioria dessa lista é composta por homens), mas pelo fato de ter seguido influente para várias outras gerações.
Também é uma personagem fundamental para a habilitação de São Paulo como polo cultural brasileiro, a mais querida torcedora do Corinthians, uma atriz nata, a popstar quem melhor explicou a androginia (e, infelizmente, a misoginia) por aqui, a primeira ativista pelos direitos dos animais que você conheceu, escritora de livros infantis e, claro, uma de nossas maiores compositoras. Seu domínio da canção brasileira aproximou nosso léxico musical à cultura pop do planeta e nos deu um repertório de hits que todos nós sabemos de cor.
Uma mulher imensa, uma estrela que não se apaga, a alma da rebeldia contemporânea do Brasil, devemos tanto a essa mulher que o mínimo que devemos fazer e mantê-la viva. Afinal de contas, ela é nossa.
Não tô conseguindo processar essa perda, putaqueopariu.
“Quando decidi escrever Rita Lee: Uma Autobiografia (2016), o livro marcava, de certo modo, uma despedida da persona ritalee, aquela dos palcos, uma vez que tinha me aposentado dos shows”, escreve Rita Lee para anunciar sua segunda autobiografia, anunciada esta semana e com lançamento previsto para o dia 22 de maio, dia de santa Rita de Cássia. “Achei que nada mais tão digno de nota pudesse acontecer em minha vidinha besta”, continua nossa musa, se referindo à pandemia e governo de extrema direita a que fomos submetidos, mas mais especificamente ao câncer no pulmão que atravessou neste período e cujo tratamento é o cerne das reflexões nesta nova versão de sua vida. “Mas é aquela velha história: enquanto a gente faz planos e acha que sabe de alguma coisa, Deus dá uma risadinha sarcástica.” Rita Lee: Outra Autobiografia já está em pré-venda. Ave Rita!
Abrindo o carnaval logo na sexta-feira com o Baile à Fantasia das Noites Trabalho Sujo mais uma vez com a Espetacular Charanga do França, desta vez no Cine Cortina, a partir das 20h. Vamos lá? Enquanto isso, a trilha é essa.
Encerrando a série de discos clássicos brasileiros que tornam-se cinquentenários em 2022 que estou fazendo no site da CNN Brasil, desta vez dedico atenção aos discaços de artistas tão diferentes quanto Tom Zé, Toni Tornado, Rita Lee (escondendo um disco dos Mutantes), Quinteto Violado, Paulinho da Viola, Tim Maia e um compacto histórico de Tom Jobim com João Bosco.