Falei do projeto do site Radiola Urbana de recriar ao vivo discos clássicos com bandas novas – que ano passado rendeu noites incríveis como o Emicida celebrando Cartola e O Terno reverenciando Arnaldo Baptista – na minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos do mês passado.
Clássicos revisitados
A iniciativa do site Radiola Urbana de reunir novos artistas para tocar discos históricos chega ao terceiro ano rendendo ótimos frutos
Há três anos um site paulistano vem desenhando um panorama de discos clássicos reinterpretados por nomes da nova música brasileira que já pode ser considerado histórico. Um programa sem nome definido, pois o mesmo vai mudando de acordo com o ano celebrado. Desde 2012 o site Radiola Urbana, tocado pelos amigos Ramiro Zwetsch e Filipe Luna, volta 40 anos no tempo para homenagear álbuns históricos de artistas célebres, negociando repertório e arranjos com alguns dos maiores nomes da música brasileira deste século.
A ideia do Radiola Urbana começou em 2012 como uma consagração de uma tendência recente que vinha valorizando o ano de 1972 como um dos grandes anos da história do disco, pareando com outros anos clássicos como 1967, 1969, 1977 e 1991. Assim, o site propôs celebrar discos daquele ano no projeto 72 Rotações, que aconteceu no segundo semestre daquele ano, em shows gratuitos no no Centro Cultural da Juventude, na Vila Nova Cachoerinha. Entre os primeiros artistas estavam Bruno Morais (para cantar o mágico Sonhos e Memórias, do Erasmo Carlos), Romulo Fróes (que revisitou Transa de Caetano Veloso), Rodrigo Campos (que se arriscou no clássico funk Superfly, de Curtis Mayfield) e Curumin ao lado da banda Rockers Control (para recriar a trilha sonora de The Harder They Come, de Jimmy Cliff).
No ano seguinte o show foi transposto para o Sesc Santana e subiu um degrau no escalão dos artistas. Era a vez de Karina Buhr, Céu, Cidadão Instigado e Fred Zeroquatro (vocalista do grupo Mundo Livre S/A) homenagearem discos de 1973. Karina aventurou-se pelo primeiro disco do Secos & Molhados, o Cidadão Instigado se desafiou a tocar o Dark Side of the Moon do Pink Floyd, Céu foi convocada para homenagear o primeiro disco de sucesso de Bob Marley, Catch a Fire, e Fred celebrou o homônimo disco de estreia de Nelson Cavaquinho. A edição de 2013 teve um efeito colateral interessante na carreira de três dos artistas escolhidos: tanto Céu, quanto Cidadão Instigado e Karina Buhr passaram a oferecer os shows do evento como alternativa para tocar em lugares que nunca haviam tocado. Ao sair de uma semana na zona norte de São Paulo para várias apresentações espalhadas pelo Brasil, o projeto garantia seu principal intuito: fazer que o público dos novos artistas conhecessem os discos clássicos e os fãs dos álbuns homenageados descobrisse os novos nomes da cena brasileira deste século.
A edição do ano passado aconteceu no calar de dezembro, novamente no Sesc Santana, e mais uma vez surpreendeu. Os homenageados desta vez eram apenas discos brasileiros, todos clássicos absolutos de 1974: o primeiro disco solo do mutante Arnaldo Baptista (Lóki?), a estreia em disco de Cartola, o encontro de Elis Regina com Tom Jobim e o disco psicodélico de Jorge Ben, Tábua de Esmeralda. Para tomar conta de cada um desses discos, artistas de diferentes abordagens. Elis & Tom ficou a cargo do Marco Pereira Trio – um dos grandes conjuntos da nova cena de jazz de São Paulo – ao lado da cantora Luciana Alves e a Tábua de Jorge Ben ficou com o projeto paralelo da Nação Zumbi chamado Sebosos Postizos, que já há anos revisita diferentes músicas do repertório de Babulina nos anos 70.
Os dois shows que vi – dos melhores shows de 2014 – celebravam Cartola e Arnaldo Baptista. Foram shows que intimidaram seus intérpretes. O trio O Terno, liderado pelo filho de Maurício Pereira, Tim Bernardes, ficou responsável pelo mergulho emotivo na obra confessional do ex-Mutante e o rapper Emicida deixou de rimar pela primeira vez para cantar os versos imortais do sambista parnasiano.
O show de Emicida foi um atordoo. Não apenas por colocar o rapper num universo familiar ao seu (o samba) desafiando-o a cantar músicas que fazem parte do DNA do samba. Mas também pelo grupo musical que havia reunido. O desafio, na verdade, foi proposto pelo saxofonista Thiago França, uma das forças da natureza da nova cena musical paulistana. Ele tocou com Criolo e é um terço do Metá Metá, a melhor banda de São Paulo atualmente, além de ter inúmeros projetos paralelos, muitos deles com o compadre Kiko Dinucci, outra usina musical da nova São Paulo. França convocou pesos pesados pra compor o time: da banda de Emicida surrupiou o percussionista Carlos Café, o violonista Doni Jr. e o DJ Nyack. Depois convocou o ás baixista Fábio Sá, o grande Rodrigo Campos para o cavaquinho e guitarra e o próprio Thiago entre o sax, a flauta transversal e outras engenhocas e pedais de efeito.
O resultado foi um show que por vezes soava reverente, mas na maior parte do tempo era abertamente desafiador, levando a obra de Cartola para territórios completamente diferentes – o free jazz, o hip hop mais pesado, a gafieira, um samba mais quadrado e até para releitura quase literais. A curta duração do disco homenageado (pouco mais de meia hora) fez o conjunto estender a homenagem para Adoniran Barbosa (contrapondo “Saudosa Maloca” e “Despejo na Favela” com as desocupações feitas recentemente em São Paulo) e para Candeia (numa versão brutal para “Preciso Me Encontrar”), além do delicioso sambão “Hino Vira Lata”, do próprio Emicida. Um show daqueles de tirar o fôlego.
Dois dias depois era a vez do Terno, no mesmo palco do Sesc Santana, defender sua homenagem ao disco Lóki?, o tocante espasmo emocional traduzido através do piano rock de Arnaldo Baptista, logo que ele saiu dos Mutantes. Um disco de fossa devido ao fim de relacionamento com Rita Lee, mas também um disco de uma psicodelia introvertida, que às vezes sonha alto ou cogita possibilidades impensadas no meio de canções que cortam o coração ao mesmo tempo que provocam sorrisos.
A responsabilidade do Terno não era apenas etária – o guitarrista e vocalista Tim Bernardes deixou seu instrumento em segundo plano para assumir o teclado, mas manteve-se preciso e sem firulas, no mesmo nível de emoção que percorre pelos sulcos do vinil original. O desafio duplo foi vencido com alguma facilidade – mesmo nas músicas tocadas com guitarra, canções feitas originalmente para o piano ganhavam uma desenvoltura de parentesco psicodélico.
Agora é esperar 2015 para ver se (e quais) os artistas do ano passado levarão os shows de 2014 para novos palcos e o que o Radiola Urbana armará para a versão deste ano. “Pensamos em Fruto Proibido (Rita Lee & Tutti Frutti), Horses (Patti Smith), Expensive Shit (Fela Kuti & Afrika 70), Estudando o Samba (Tom Zé)…”, me disse Ramiro, que planeja uma novidade para este ano – voltar 50 anos no tempo em vez de 40. “Aí se virar 65, temos planos malignos e infalíveis para A Love Supreme (John Coltrane), Coisas (Moacir Santos), Highway 61 Revisted (Bob Dylan)…”. De qualquer forma, não tem erro.
Conversei com a Tiê no ano passado sobre seu disco mais pop, Esmeraldas, lançado no fim de 2014, e o papo rendeu assunto pra minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos de janeiro.
Nada é por acaso
Tiê lança seu disco mais pop com uma ajuda de Adriano Cintra, Jesse Harris e David Byrne
Levou um tempo para o terceiro disco de Tiê sair. “Três anos e meio, não parece muito, mas é sim muita coisa!”, desabafa. Ela está sentada de cabelo preso à minha frente, na antessala da edícula de seu escritório, na Vila Romana, em São Paulo, e fala sem parar sobre o disco que acaba de lançar. De vez em quando uma cachorra preta vem nos visitar, mostrando a bolinha com a qual quer brincar, e a cantora aproveita esses momentos para pausar a enxurrada de sentimentos que transforma em palavras ao contar como que seu Esmeraldas, lançado no fim de 2014, finalmente veio existir.
“O meu primeiro disco (Sweet Jardim, de 2009) é muita cara de pau: eu não canto direito, não falo direito, não falo nada de importante, é muito preto e branco”, ela deságua o próprio processo criativo como se estivesse se descarregando de forma terapêutica. “Eu paguei esse disco cantando em evento, em feira têxtil”, brinca. “E ele praticamente se juntou com o segundo (A Coruja e o Coração, de 2011), que eu gravei quando tinha acabado de parir, estava em turnê e não vi muito acontecer. Talvez ele seja um disco despretensioso demais, eu fiz achando tudo lindo, sem pressão nenhuma.”
A clássica crise do segundo álbum, portanto, só veio acontecer com ela neste terceiro. Ela travou criativamente ao começar a pensar num terceiro disco e, quando foi cobrada pela gravadora por um novo lançamento, cogitou um álbum de versões de músicas alheias. “Mas por contrato eu deveria fazer um disco de inéditas”, explica, lembrando como sua vida começou a se tornar agitada a partir de 2012. Foi a partir dessa época em que ela abriu sua produtora Rosa Flamingo, que começou a fazer shows na própria casa (batizados de Na Cozinha ou no Jardim) e a produzir noites de microfone aberto para quem quisesse declamar poesia ou cantar suas canções num evento promovido por ela – “muitos fãs me mandam suas músicas, resolvi chamá-los pra cantar”.
“Mil ideias, mil coisas rolando, eu já tava com outra filha e eu tava em crise e sem saber do que falar”, Tiê prossegue contando sobre o turbilhão emocional que misturava trabalho, família e amigos que precedeu o novo disco. “Eu não aguentava falar de amor – eu amo minhas filhas, amo meu marido, mas não queria mais falar de amor. Eu vou falar de cocô e fralda? É o que eu vivo: eu troco oito fraldas por dia.” Foi preciso sair de São Paulo para se encontrar. “Aí eu fui pra Minas no fim do ano do ano passado e o disco veio: ‘blam’, como um escorregão. Eu tava lá, cansada, tomando calmante natural e fiz ‘Mínimo Maravilhoso’, que é a mais rockinha do disco e é uma música autobiográfica, que representava exatamente o que eu tava passando. E de repente, tudo fez sentido.”
Esmeraldas foi assim batizado em homenagem à cidade mineira onde ficava o sítio que trouxe a revelação para a cantora – “depois eu fui descobrir que foi onde o goleiro Bruno enterrou a ex-namorada dele, mas até aí, já era”, desconversa. E foi um disco que nasceu pop. No entender da gravadora Warner, aquilo queria dizer gravar em Nova York com o músico e produtor Jesse Harris, o mesmo que deu o hit “Don’t Know Why” para Norah Jones. Mas Tiê tinha outra ideia quando pensou em pop: “Vocês querem pop? Então vou te dar o cara pop”, brincou.
E chamou o produtor Adriano Cintra para ajudá-la no disco. Adriano é velho conhecido no underground paulistano e, além de passar por bandas como Ultrasom, Caxabaxa e Thee Butchers’ Orchestra, foi o mentor do hype indie brasileiro Cansei de Ser Sexy, que conseguiu sucesso nos Estados Unidos e Europa, lançando discos pela Sub Pop e tocando nos principais festivais do mundo. Adriano deixou a banda em novembro de 2011 e passou a investir na carreira de produtor, trabalhando com nomes tão diferentes quanto Marina Lima, Jota Quest e Marcelo Jeneci, além de produzir seus próprios trabalhos (como o primeiro disco solo, lançado em 2014 pela gravadora Deck).
A intenção não era fazer um disco para o mercado internacional ou para atingir milhões de pessoas, mas Tiê sabe da importância de crescer em tamanho. “Não quero fazer 25 shows por mês, mas sei como é bom ter uma música na novela”, explica, reforçando que faz música para falar com muita gente. “Não quero ser indie!”, renega.
Adriano e Tiê fizeram a pré-produção do disco no Brasil, com Adriano gravando quase todos os instrumentos. “Fomos com tudo mais ou menos pré-definido e gravado: baixo, guitarra, teclados, algumas coisas de programação e bateria! É um disco que tem bateria! No meu primeiro disco não tem, no segundo tem umas vassourinhas e só e agora sim tem bateria no terceiro!” Chegando em Nova York foi a vez de Jesse Harris passar seu verniz no material. “E o Adriano deixou o Jesse brilhar e ele deu várias sugestões incríveis, mais rebuscadas, porque ele é mais chique, mais jazz. Foi uma coprodução que deu supercerto.”
Esmeraldas é realmente o disco mais pop de Tiê – e talvez seja o salto mais ousado para longe da MPB que a safra Tulipa, Marcelo Jeneci e Céu tenha dado, e sendo justamente dado por uma cantora que começou quase convencional, gravando canções intuitivas sem nenhuma técnica e apenas feeling. O resultado final é um disco que poderia ser lançado no início dos anos 80 e não faria feio ao lado de discos da Gang 90, do Metrô e de Ritchie – mas sem perder uma aura suntuosa que acompanha a presença vocal de Tiê.
A cereja do disco é a participação de David Byrne na bilíngue “All Around You”, uma marcha-reggae paranoica sobre vigilância digital. “Eu consegui marcar um almoço com ele e quando você fala ‘marquei um almoço com o David Byrne’, não importa pra quem você fale isso, a reação é sempre uma risada”, lembra brincando, “mas eu lembro que quando ele veio para o Brasil lançar um disco, não lembro qual, eu vi ele no Studio SP (antiga casa de shows de São Paulo), sozinho, de chapeuzinho, assistindo uma banda ‘xis’, mas super interessado, meia-noite, na Augusta, perdido.”
“Então eu marquei um almoço com ele, num diner do Brooklyn, bem na época em que eu estava na crise criativa e, depois de quebrado o gelo, eu falei isso pra ele: eu estou numa crise, preciso me inspirar, preciso que você me diga alguma coisa, me mande ver um filme, ler um livro, qualquer coisa”, lembra a cantora, desabafando. “Só o almoço já foi inspirador, ver ele indo embora de bike também, mas depois de uns dias ele me mandou duas músicas, uma chamada ‘Afoxé’ – que só de eu ler o nome ‘afoxé’ eu não sabia se abria ou não, de tão nervosa – e essa outra que já vinha no título “The Government is All Around You”, gravada só ao violão, no celular, sem letra, só umas frases soltas…”
A música passou por alguns ajustes (tanto em São Paulo quanto em Nova York), ganhou uma nova parte e não contaria com a participação do próprio Byrne, mas ao gravar em Nova York, Tiê aproveitou a oportunidade pra ver se o ex-Talking Heads não topava cantar no disco. Byrne assistiu à gravação e, dias depois, quando o disco já estava sendo finalizado em São Paulo, ele enviou os vocais e Tiê pode ter David Byrne participando de seu disco mais pop. Nada é por acaso.
Na minha coluna na edição do mês passado da revista Caros Amigos, aproveitei os lançamentos-relâmpago dos discos dos Racionais e do Criolo pra falar da importância e do papel do hip hop na cultura brasileira deste início de século.
Os novos cronistas
Novos discos de Criolo e Racionais MCs reforçam o papel do hip hop na cultura brasileira deste século
Dois dos principais discos lançados no Brasil em 2014 são discos de rap. Por mais distantes que pareçam, tanto o terceiro disco de Criolo (Convoque Seu Buda) quanto o sexto disco de estúdio dos Racionais MCs (Cores e Valores) foram lançados de surpresa em novembro e o impacto de suas chegadas não apenas consolidam seus dois autores como os principais nomes do gênero no Brasil hoje (ao lado de Emicida, de quem falei na coluna da edição passada) como impõe o protagonismo do hip hop ao panteão da atual música brasileira. O rap não é mais um gueto, é um dos gêneros mais populares do Brasil e seus 25 anos de história cacifam seus nomes mais importantes a entrar no panteão de nossa produção cultural.
Surgido no final dos anos 70, o hip hop chegou ao Brasil quase uma década depois de seu nascimento e levou uns pares de anos para estabelecer sua voz. O canto falado sempre foi uma característica particular do vocal brasileiro, do samba de breque ao repente, Jair Rodrigues, Chico Science, Fausto Fawcett e Evandro Mesquita pertencem a um cânone paralelo da música brasileira, que fez o hip hop ser absorvido mais facilmente no país. Afinal, cantar falando ou falar cantando não é estranho à nossa musicalidade.
Como aconteceu em todo o planeta, o rap progrediu como uma força periférica. Criado nos bailes do subúrbio de Nova York como um subproduto da discoteca, em poucos anos a cultura hip hop já tinha ampliado sua influência para além da regra pela diversão e tiração de onda, dos primeiros dias. Três anos após o lançamento do primeiro rap gravado (“Rapper’s Delight”, da Sugar Hill Gang), o gênero já puxava para a temática para além da pista de dança e começava a retratar a crua realidade das ruas com a emblemática “The Message”, de Grandmaster Flash & the Furious Five.
O gueto nova-iorquino espalhou-se para o resto do planeta e em questão de anos o rap já era trilha sonora em comunidades periféricas de grandes cidades do mundo inteiro. No Brasil, seus primeiros registros nada têm em comum com as origens do gênero – primeiro quando o bon vivant Miéle gravou sua própria versão para “Rapper’s Delight” (batizada de “Melô do Tagarela”), em 1980, ou quando o grupo de rock Ira! aproximou o gênero do repente nordestino na faixa “Advogado do Diabo”, no disco Psicoacústica, de 1988. Mas uma rede de casas noturnas, sistemas de som, festas, bandas e DJs formada entre os anos 60 e 70 funcionou como berço para o rap brasileiro. Afinal, todos os grandes nomes do hip hop nacional foram criados dançando nos bailes black de periferia, em que se ouvia muito soul, funk, disco music e, aos poucos, hip hop.
O interesse do grupo paulistano Ira! pelo rap veio como uma espécie de reconhecimento mútuo, muito pelo fato do grupo liderado por Nasi e Edgard Scandurra se ver como uma banda de periferia e se identificar com aquele movimento que surgia em rodas de break na Estação São Bento do metrô paulistano. Tanto que Nasi e o baterista do grupo, André Jung, foram responsáveis pela primeira polaróide do rap brasileiro – a coletânea Hip-Hop Cultura de Rua, de 1988, que trazia os primeiros registros de Thaide e DJ Hum (produzidos por Nasi e André), O Credo (produzidos por Akira S), Código 13 e MC Jack (produzidos por Dudu Marote). A antologia foi lançada uma semana antes do outro marco zero do rap brasileiro, a coletânea Consciência Negra – Volume 1, que trazia, entre outros artistas, aqueles que juntos seriam o maior nome do pop brasileiro no final século. O futuro quarteto vinha em dupla: de um lado a faixa “Pânico na Zona Sul” , de Mano Brown e Ice Blue, do outro a faixa “Beco Sem Saída”, de Edy Rock e KL Jay. Em pouco tempo as duas duplas se juntariam para formar os Racionais MCs e, ao lado da dupla Thaíde e DJ Hum, eles forjaram na marra o cenário que permitiu nascer, nos anos seguintes, nomes que ajudaram a construir uma história que consolidou o que parecia ser um modismo dos anos 80 em um dos segmentos mais importantes da música popular brasileira. E com um forte agravante: sua popularidade cresceu sem o auxílio intenso de rádio, TV, jornais ou revistas. O rap brasileiro sempre evoluiu através de seu aspecto comunitário, conectando pessoas com a mesma mentalidade em diferentes cidades do Brasil no boca a boca, no corpo a corpo – que, justamente por isso, soube se aproveitar como poucos da internet.
Por isso não é estranho que Racionais e Criolo tenham usado a internet para anunciar suas aguardadas voltas – Criolo liberando o download gratuito em seu site criolo.net, Racionais cobrando R$ 9,90 pelo download do disco via Google Play. Os discos vieram antes de matérias, de clipes, de músicas de trabalho ou aparições em programas de televisão. Cada um trazendo sua versão para os fatos com clareza e particularidades que descrevem o que acontece na sociedade brasileira em 2014 muito mais do que jornais, revistas, novelas ou programas de rádio.
Criolo, que veio das rinhas de rimas paulistanas e entortou o rap e a MPB ao cantar em um disco ousado e emocionalmente intenso (Nó na Orelha, de 2010), aprofunda-se ainda mais em seu Convoque Seu Buda, falando com o funk (“Cartão de Visita”, gravada com Tulipa Ruiz), o reggae (“Pé de Breque”), o samba (“Fermento pra Massa”) e a música africana (“Fio de Prumo” com Juçara Marçal). Os Racionais lançam o primeiro disco desde o duplo Nada Como Um Dia Após o Outro Dia, de 2002 (12 anos atrás!) e o curto Cores e Valores dura pouco mais de meia hora com 15 faixas (algumas delas meras vinhetas). Menos expansivo que o de Criolo, o disco atualiza o rap do grupo para a segunda década deste século com bases mais e sintéticas, vocais distorcidos e temática mais passional, mas não deixa de citar Assis Valente ou Marina Lima quando quer exprimir sentimentos que já foram capturados por outros autores. Acertando o clima tenso, o discurso retrata uma periferia que ascendeu socialmente na última década e que embora ainda conviva com o crime organizado, convive com outras preocupações – seja refletir a próprias história, as próprias emoções ou o próprio consumismo.
Pois se o rap encontrou casa no tradicional canto falado brasileiro, ele também resgata outro aspecto importante de nossa cultura que já teve mais espaço na rotina do povo – o do cronista, do contador de histórias, que fala sobre as coisas da vida de qualquer um. Nesse sentido, não só Criolo e os Racionais, mas o rap brasileiro como um todo, vem suprir uma lacuna de comunicação que já foi mais intensa de forma escrita (Machado de Assis, João do Rio, Nelson Rodrigues, Fernando Sabino, Luis Fernando Veríssimo) e que veio esvaziando-se sentimentos em telenovelas cada vez mais simplistas. E o rap vem nos lembrar que as coisas não são tão simples assim.
Na minha quarta coluna na revista Caros Amigos falei sobre o show que Emicida fez há dois meses para lançar a edição em vinil de seu disco mais recente – e como ele está lentamente trilhando seu caminho rumo ao topo. No final ainda reuni uma playlist com os vídeos que fiz no mesmo show:
Emicida em seu lugar
Mais um degrau na escalada do rapper rumo ao topo do pop brasileiro
É nítida a evolução de Emicida como um dos principais nomes da música brasileira hoje. A cada novo passo, Leandro Roque de Oliveira expande seus horizontes e contempla como panorama toda a história cultural brasileira da perspectiva do hip hop paulistano. Já ultrapassou fronteiras municipais e internacionais usando a combinação entre internet, onipresença e disposição para trabalhar, sempre mostrando que pode ir além.
Mais um degrau foi superado no lançamento da versão em vinil de seu primeiro álbum propriamente dito, O Glorioso Retorno De Quem Nunca Esteve Aqui. Mais uma vez o disco seria apresentado a seu séquito fiel no Sesc Pinheiros, em São Paulo, onde foi lançado um ano antes, em setembro de 2013. Naqueles shows era uma ocasião de festa, o disco coroava uma carreira iniciada nas rinhas de improviso de rimas que cresceu distribuindo MP3 gratuitamente e vendendo CDs e mixtapes a cinco reais no metrô, de mão em mão.
O show de lançamento d’O Glorioso Retorno tinha o adjetivo do título do disco espalhado pelo palco e contou com participações ao vivo de quase todos os nomes que apareceram no álbum. Só esse elenco já dava uma idéia da amplitude do futuro do rapper: Pitty vinha do rock, Juçara Marçal representava a música africana, Tulipa Ruiz representava a nova MPB e o Quinteto em Branco e Preto vinha celebrar o samba, além da própria mãe de Emicida, dona Jacira, que cantou o triste documentário ao final de “Crisântemo”.
Um ano e um mês depois, no mesmo Teatro Paulo Autran da mesma unidade do Sesc, Emicida volta para visitar o novo disco, mas não é o mesmo show. Ao contrário da apresentação de lançamento quase não há participações especiais (limitadas à presença do velho sidekick Rael da Rima, agora em carreira solo, e do rapper Lakers, do grupo Código Fatal). O show dessa vez não apenas gira em torno da banda de Emicida como ele a coloca como protagonista da noite. Assim, o rapper assume ser alvo das brincadeiras do percussionista Carlos Café em “Zoião”, tira onda com o violonista e guitarrista Doni Jr., defende a guitarrista Anna Tréa quando ouve um “fiu fiu” vindo do público e sempre mantém a mesma rotina de arengas com seu velho compadre DJ Nyack.
As músicas do disco do ano passado receberam nova roupagem e a ausência das participações especiais não tiraram sua força: Anna Tréa representa o papel de Pitty na pesada “Hoje Cedo”, solando como uma guitarrista de Prince; Doni Jr. faz as vezes do Quinteto em Branco e Preto temperando algumas músicas com cavaquinho ou violão acústico. Todos têm presença de palco o suficiente para não serem apenas coadjuvantes sonoros do rapper, fazendo coreografias, trocando de instrumentos, segurando vocais de apoio, sempre deixando Emicida bem no holofote. “Eu tô igual o Michael Jackson”, disse ao ver sua própria sombra projetada no palco por um facho de luz, antes de improvisar um moonwalk fuleiro, tentando deslizar para trás como o Rei do Pop.
O próprio Emicida não ficou apenas no vocal. Por vezes trocou de instrumento de apoio. Começou o show puxando um improviso tocando apenas um agogô enquanto rimava. Saiu de trás do público, vindo da platéia, em direção ao palco. Depois trocou de instrumento de percussão: por vezes puxava uma caixinha de fósforo, já íntimo o suficiente para chamar atenção do público para um “solo” no pequeno instrumento, por outras pilotou pela primeira vez no palco uma MPC, a bateria eletrônica típica da música deste século. Seja no agogô, na caixinha de fósforo ou na MPC havia uma mensagem cifrada nesta troca de instrumentos: Emicida está aos poucos deixando de ser só um rapper. Não duvide se num próximo show ele possa puxar um cavaquinho, ir para o contrabaixo acústico ou para a bateria. Ele ainda está ensaiando seus primeiros passos como músico – ao vivo, na frente do público.
Uma outra parte do show foi dedicada aos primeiros sucessos de Emicida, muitos que não eram tocados ao vivo há anos, como “E.M.I.C.I.D.A.”, “Rinha” e “Cacariacô”, além da primeira vez que “Papel, Caneta e Coração” foi apresentada em um palco. E não importavam se eram as novas ou as velhas, os quase mil espectadores no teatro sabiam cantar todas as letras de Leandro – por mais extensas e cheias de referências e metáforas que fossem.
Mas além de falar de seu presente e passado, Emicida olhou para os lados ciente de que seu papel depende do contexto – e não apenas de si mesmo. Além de cantar a música que dividiu com o funkeiro paulista MC Guimê em seu último disco (“País do Futebol”), Emicida ainda saudou os papas do R&B paulistano (Sampa Crew, com “Eterno Amor”), a dupla mais conhecida do funk carioca (Claudinho e Buchecha, com o clássico “Nosso Sonho”), seus ancestrais no hip hop brasileiro (no já tradicional medley com músicas de Xis, De Menos Crime, Doctor MC’s, Sabotage e Racionais MCs) e os contemporâneos do Código Fatal (com “Minha Vida”). Mais do que isso, reverenciou o passado da música brasileira cantando “Marinheiro Só”, “Trem das Onze”, imitando Roberto Carlos em uma canção romântica e celebrando Jair Rodrigues em outra. Ele não separa música pop de música popular, não há diferença entre o toca no rádio, o que vem da TV, o que se vende em lojas de discos ou o que chega pela internet. Música brasileira é uma coisa só – e Emicida parece saber.
Ao final da noite, logo que as luzes se acenderam, João Donato numa gravação de 1975 cantava “Emoriô”.
Na minha terceira coluna para a Caros Amigos, escrevi sobre o show que vi de João Donato no Beco das Garrafas – e falei sobre sua influência na música deste século. Também fiz uns vídeos desse show, numa playlist que segue lá embaixo.
Ave Donato!
João Donato se apresenta no renascido Beco das Garrafas e mostra que sua influência na música brasileira é cada vez maior
Fui para o Rio de Janeiro meio no susto no mês passado e da mesma forma fiquei sabendo que o mítico Beco das Garrafas estava voltando a funcionar como casa de shows. Uma viela sem saída que corta a Rua Duvivier, em Copacabana, logo no início, o Beco atingiu o status legendário ao funcionar como casa das máquinas da cena musical carioca que viu nascer a bossa nova.
Influenciados pelo jazz norte-americano, instrumentistas, compositores e intérpretes se revezavam nos minúsculos palcos de bares chamados Bottle’s, Baccará, Ma Griffe e Little Club para a ira dos vizinhos, que não suportavam as jam sessions que varavam as madrugadas e saudavam os músicos com garrafas jogadas do alto. Foi Sergio Mendes quem batizou a viela de “Beco das Garrafadas”, que na versão que pegou ficou apenas com as garrafas.
Por ali passaram mestres do samba, da bossa nova e do samba-jazz, como Luís Carlos Vinhas, Chico Batera, Dom Um Romão, Airto Moreira, Bebeto Castilho, Baden Powell, Wilson das Neves, Johnny Alf, Jorge Ben e intérpretes históricas como Elis Regina, Alaíde Costa, Dolores Duran, Nara Leão, Sylvinha Telles, Leni Andrade, Claudette Soares e Wilson Simonal.
Depois dos anos 60, o beco foi esquecido, suas casas viraram ruínas de um passado histórico até que Amanda Bravo, filha de um dos músicos frequentadores daqueles palcos, Durval Ferreira, resolveu resgatar o Beco do passado. Conseguiu uma empresa (a cervejaria Heineken) que bancasse a revitalização, que transformou as quatro pequenas casas. O Bottle’s e o Baccará foram transformados em um só ambiente (para 80 pessoas) e o Little Club (para 50 pessoas) virou uma pista de dança com apresentações de DJs. Para tomar conta da programação musical Amanda chamou o produtor Kassin, um dos principais nomes da nova música brasileira deste século, que organizou um mês de apresentações reunindo destaques de uma geração mais nova que a dele, incluindo nomes como as bandas Letuce e Ultraleve, o músico Lucas Arruda, as cantoras Tiê e Alice Caymmi além de encontros entre titãs da velha guarda como João Donato e Marcos Valle e divas da nova safra como Emanuelle Araújo e Camila Pitanga, além do grupo francês Nouvelle Vague. Para o Little Club, Kassin chamou os DJs Marcelinho da Lua, o coletivo Vinil é Arte e Maurício Valladares para discotecar sets inspirados na bossa nova e no jazz brasileiro do início dos anos 60.
Tive o privilégio de assistir à apresentação de João Donato, que pouco a pouco tem sua importância resgatada, principalmente por conta desta nova leva de músicos brasileiros. Donato é precursor da bossa nova e já cantava baixinho antes de João Gilberto ser apresentado a Tom Jobim. A influência de Donato no pai da bossa nova e em seus primeiros filhotes é evidente, bem como seus discos suaves e ousados que gravou nas décadas seguintes. O próprio Kassin, que ensinou o grupo Los Hermanos a tirar o pé do rock, é uma espécie de neto musical de Donato, que é reverenciado por todos os nomes que se apresentaram na curta nova temporada do Beco das Garrafas quanto por novos músicos de todas as cepas, seus 80 (!) anos foram celebraos no Circo Voador em agosto com a presença de nomes tão distintos quanto Caetano Veloso, Luiz Melodia, BNegão e Paula Morelenbaum; em fevereiro deste ano comemorou o aniversário de 40 anos de seu Quem é Quem num show com músicos da banda Bixiga 70, Tulipa Ruiz, Mariana Aydar e Marcos Valle. Assisti o show na microplatéia do novo Bottle’s Bar entre Jards Macalé e o guitarrista Gabriel Muzak, que toca com os Seletores de Frequência de BNegão, além de ter seu próprio trabalho solo.
Todos reverenciando um monstro da suavidade, um senhor de oito décadas de música que se comporta como um menino travesso ao piano, aumentando o tom de voz apenas para falar “água!”, seu código para encerrar as músicas. No palco do Bottle’s Bar, tocando um teclado elétrico, o acreano vinha acompanhado por uma das melhores cozinhas de jazz brasileiro em atividade, o contrabaixo elegante do cearense Jorge Helder e a bateria atrevida do carioca Robertinho da Silva, além de um naipe de metais de respeito – o sax de Roberto Pontes e o trompete de Jessé Sadoc. Juntos, enveredavam por temas clássicos de Donato como “Capricorn”, “Emoriô”, “Bananeira”, “Gaiolas Abertas”, “Vento no Canavial” e “Café com Pão”, além de três números com a participação da cantora baiana Emanuelle Araújo (“A Paz”, “A Rã” e “Sambou, Sambou”), em pouco mais de uma hora de viagem no tempo que, mesmo bebendo no passado, apontava para um futuro exemplar para a música brasileira. Ave Donato!
Na minha segunda coluna na Caros Amigos eu falei do projeto Goma Laca, cuja edição de 2014 teve Letieres Leite comandando disco e show com Lucas Santtana, Karina Buhr, Juçara Marçal e outros recuperando pérolas esquecidas da música brasileira registradas em discos de 78 rotações. Fiz uns vídeos desse show:
MP3 em 78 rotações
Projeto Goma Laca resgata canções da primeira metade do século passado nas vozes de novos nomes da música brasileira
Quem chegasse no Centro Cultural São Paulo (CCSP), próximo à Estação Vergueiro do metrô paulistano, no início da noite do dia 23 de agosto poderia achar que a nova música brasileira estivesse celebrando João Donato. Numa banda comandada pelo maestro Letieres Leite, o mago baiano dono da Orkestra Rumpilezz, Lucas Santtana, Duani e Karina Buhr repetiam os versos de “Cala a Boca, Menino” que Donato eternizou em seu clássico Quem é Quem, de 1973.
Mas “Cala a Boca, Menino”, embora tenha sido popularizada por João, não é nem de Dorival Caymmi, cujo crédito estampa o rótulo do velho vinil. Na verdade suas origens remontam à capoeira do início do século passado e o primeiro registro musical desta canção não apareceu sequer em vinil. A faixa foi registrada pelo mítico Almirante em 1938, na mesma época em que o sambista levou pela primeira vez ao rádio um instrumento “rudimentar e bárbaro” (palavras da época) chamado berimbau.
A faixa foi regravada na terceira edição do projeto Goma-Laca, núcleo de pesquisas sobre a música brasileira da primeira metade do século 20 desenvolvido pelo jornalista Ronaldo Evangelista e pela pesquisadora Biancamaria Binazzi. Desde 2009 a dupla fuça velhas bolachas que rodam a 78 RPM e desenterra pérolas para serem regravadas por novos nomes da música nacional.
A pesquisa é feita principalmente na discoteca Oneyda Alvarenga, do próprio CCSP, que conta com um acervo de mais de 44 mil discos brasileiros e uma das maiores coleções de discos em 78 rotações do Brasil. “Chamamos a discoteca de ‘Casa do Goma-Laca’, não só pelo acervo mais por seu conceito”, explica Biancamaria. “Ela foi criada em 1935 pelo Mário de Andrade, quando ele era diretor do departamento de cultura de São Paulo e a ideia dele era criar um espaço para músicos, que permitisse acesso à música ‘estranha aos ouvidos’. Ele queria promover o acesso à música regional do Brasil e à musica de concerto contemporanea, ir muito além do que tocava no rádio, o que de certa forma é o que fazemos com o Goma Laca. Como dizia o próprio Mário: ‘buscar fazer coisa nova, desencavando passados’”.
A edição de 2014 além da gravação e único show também se materializou em disco (as outras edições só foram disponibilizadas em MP3) e focou especificamente no que eles rotulam de “afrobrasilidades”. O disco reuniu Karina Buhr, Lucas Santtana, Russo Passapusso (que não pode comparecer ao show e foi substituído pelo carismático Duani) e Juçara Marçal para que eles pudessem reviver músicas com títulos como “Minervina”, “Babaô Miloquê”, “Guriatã” e “Passarinho Bateu Aza” (com ‘z’ mesmo), tudo sob a batuta – a flauta, no caso – suingada do maestro compenetrado e possuído que é Letieres Leite, que releu as velhas e ingênuas canções com um groove denso e ancestral, mas sem perder o vínculo com a tradição.
O disco pode ser comprado pelo site www.goma-laca.com, que ainda conta com as faixas das edições anteriores em MP3 para quem quiser apenas ouvi-las – além das versões originais imortalizadas em discos prensados numa mistura de cera de carnaúba com pó de goma laca. O núcleo de pesquisas segue à toda: “A ideia é continuar fazendo shows, rodas de escuta, programas de rádio, discos e o que pintar relacionado a esse universo setenteônico”, conclui Biancamaria.
A partir deste mês de agosto sou o colunista de música brasileira da revista Caros Amigos, substituí a Paçoca de Eliete Negreiros com minha coluna Tudo Tanto, cujo título é sampleado do segundo disco da Tulipa Ruiz. A idéia é sempre falar de música brasileira, todos os meses. Mas nesta primeira edição eu dei mais um panorama geral do que vem acontecendo com a cena nacional. Nada que você, leitor do Trabalho Sujo, já não saiba:
“Deve ser porque procuro mais do que você”
A música brasileira do século 21 é muito mais rica e plural do que a música comercial
Houve um tempo em que só era possível ter uma carreira musical com a chancela de uns poucos. Rádios, gravadoras e emissoras de TV davam as cartas e decidiam o futuro da música gravada dando seu aval para poucas dezenas de escolhidos, deixando milhares de talentos à própria sorte para bancar seus discos e tentar emplacar uma música no rádio na marra, sem jabá.
Esse tempo começou a ruir em câmera lenta a partir de uma série de invenções que, no final do século passado, mudaram a forma como consumimos música. Em 1994 foi lançado o formado MP3 pelo Sociedade Fraunhofer na Alemanha, que permitia compactar um arquivo de áudio de forma que uma canção de cinco minutos – que antes pesava 50 MB – passasse a pesar menos que cinco megabytes. Em 1997 é lançado um portal chamado mp3.com, que permite a qualquer um subir suas próprias músicas na internet, abrindo um filão de arquivos que permitiam o armazenamento de conteúdo digital online que dura até hoje (e alimenta o que tornou-se conhecido como “nuvem” – informação digitalizada acessível de qualquer lugar). Em 1999 foi inventado o programa Napster, criado para facilitar a transferência de músicas entre computadores de um mesmo dormitório universitário, mas que, graças à internet, possibilita a qualquer um baixar músicas diretamente do computador de outra pessoa. A invenção do MP3 player, o sucesso do iPod, a ascensão da Apple como força na indústria musical, a criação dos torrents e a popularização de serviços de streaming – tudo isso aconteceu já no século 21, e é consequência direta da lenta escalada do MP3 como formato musical padrão na segunda metade dos anos 1990.
Outra consequência direta das transformações neste período foi o início da ruína do cenário anterior à internet, a partir da criação da lógica P2P, com o Napster. A sigla vem da pronúncia do termo peer-to-peer (parceiro para parceiro), que mudava a distribuição de downloads como a conhecíamos. Em vez de existir uma fila em que as pessoas só conseguiam baixar de um mesmo servidor, a invenção do adolescente Shawn Fanning permitia qualquer computador funcionar como servidor, horizontalizando a distribuição. Os primeiros tremores desta revolução ameaçaram ruir a indústria fonográfica, que reagiu com advogados em vez de trazer aquela ideia para seus domínios. 15 anos depois do Napster, praticamente as mesmas empresas tomam conta do negócio – mas algo mudou drasticamente.
O artista não precisava mais pedir a benção para a rádio, para a emissora de TV ou para a gravadora para conseguir ser ouvido. Como a tecnologia de gravação foi barateada ainda mais no final do século passado, logo que a internet apareceu como uma alternativa para a distribuição musical, uma série de novos artistas viu a oportunidade de deixar para trás o mundo artificial das gravadoras multinacionais. Esse movimento aconteceu no mundo todo, mas especialmente no Brasil rendeu frutos interessantíssimos – e uma lógica de distribuição gratuita que ainda é tabu em países do hemisfério norte, uma vez que uma parte considerável dos artistas da música brasileira do século 21 em vez de policiar ou cobrar pela audiência digital, simplesmente doa seus discos através de downloads gratuitos. E assim cria um novo público que passa a acompanhar artistas que não precisam de gravadora, TV ou rádio, lotando shows pelo Brasil e, mesmo assim, vendendo discos cada vez mais.
Nova Geração
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Essa nova geração da música brasileira fez sua hora, sem esperar acontecer. Uma safra de artistas espalhados por todo o Brasil que viu no contato direto com o público a oportunidade perfeita para retomar uma relação que andava distante: a música brasileira que faz sucesso popular para públicos de médio porte. A lógica do crescimento insustentável – em que “muito” é “melhor” – também funciona para a cultura. Se a meta da arte for a quantidade, haja estádio para tanto megashow. Felizmente essa nova música brasileira não compartilha dessa e prefere apostar numa catarse qualitativa, não apenas números.
As unanimidades desta nova geração – Criolo, Tulipa Ruiz, Karina Buhr, Marcelo Jeneci – deram seus discos de graça para seu público pois sabiam que suas mensagens se espalhariam com mais facilidade, rompendo a barreira financeira da posse de um produto e tornando a música naturalmente livre. Ao redor deles, nomes que têm outra relação com o público e, mesmo os que ainda não liberam seus discos para download gratuito, não se vêem mais do alto. Nomes como Emicida, Silva, Cícero, Mallu Magalhães, Lulina, Cidadão Instigado, Céu, Tiê, Bixiga 70, Curumin, BNegão, Thiago Pethit, Blubell, Garotas Suecas, Sambanzo, Bárbara Eugênia, Kiko Dinucci, Mariana Aydar, Thiago França e Juçara Marçal ajudam a compor uma paisagem híbrida e plural, com diferentes cidades-sede e gêneros musicais. O trânsito entre diferentes estilos musicais também é a característica desta nova safra, que ainda conta com nomes como Baleia, Banda Uó, Jair Naves, Quarto Negro, Gang do Eletro, Iconili, Rafael Castro, Supercordas, Trio Eterno, Juliana R., O Terno, Molho Negro, Bruno Morais, Lurdez da Luz, Mahmundi, Kika, Tibério Azul e Boogarins. Nenhum deles é parente de nenhum medalhão da MPB nem repete uma fórmula estabelecida por artistas do passado. Poucos são classificáveis como “rock”, “MPB” ou “hip hop”. Todos procuram novas matrizes e novos pontos de vista e criam uma classe musical inclassificável.
Esta coluna Tudo Tanto, batizada após o segundo disco de Tulipa (sampleei mesmo), servirá de vitrine para os novos nomes dessa geração e é direcionada para todos aqueles que acham que a música brasileira atual resume-se apenas à música comercial. Ledo engano. “Deve ser porque procuro mais do que você”, canta a própria Tulipa, noutra frase que me aproprio para convidar o leitor a buscar os nomes citados acima na internet – e se gostar, ir num show. E se gostar mesmo, por que não, comprar o disco. Digital, CD, vinil, não importa. O que importa é que uma nova fase da música brasileira – e da cultura, mas o foco aqui é musical – vem se desenvolvendo a partir da internet. Vamos acompanhar.