Escrevi sobre os discos novos de dois grandes nomes da música brasileira atual – Curumin e Rincon Sapiência – em minha coluna na edição de julho da revista Caros Amigos.
Novos caciques
Curumin e Ricon Sapiência provocam a mesmice política da música brasileira atual mostrando que não existe um padrão para o futuro
Há um tempo que venho detectando e relatando aqui nesta coluna, o reencontro da música brasileira com a cultura de protesto, a contracultura, a vanguarda estética e o descontentamento generalizado da sociedade. Qualidades distintas, mas primas, vizinhas e movidas pela mesma motivação, que é próxima do próprio conceito da arte em si, de não manter-se no mesmo lugar, de querer sempre transcender, ir além. A expressão artística em si não limita-se a apenas refletir o indivíduo, a sociedade ou a civilização, mas também a provocar a transformação, a questionar o status quo, buscar expandir a consciência – e com ela, o indíviduo, a sociedade e a civilização.
Tradicionalmente, a música (e a cultura como um todo) brasileira sempre enfrentou a autoridade, a mesmice, a estagnação. Nossa tradição é a do anti-herói, sejam os personagens de Machado de Assis ou do Henfil, o intelectual em conflito ou o político populista do filme Terra em Transe, a golpista e o empresário corrupto de Vale Tudo ou o malandro / bandido e policial corrupto / assassino das letras do samba e do hip hop. O Brasil sempre viveu à margem e sua cultura traduzia isso em forma de confronto – são clássicos os dribles que diferentes compositores deram na censura mais hostil à cultura (a da época da ditadura militar, antes dos anos Fernando). Mas nos anos de ouro da economia nacional do início do século, a música – e, de certa forma, toda a cultura brasileira – passou por um momento de autocelebração e de autocontentamento que inevitavelmente neutralizava o choque e o conflito, criando o tal abismo estético – que é irmão da polarização política – que segue dividindo o Brasil neste novo século. Até o rap, tradicionalmente aguerrido e politizado, começou a falar de amor.
Mas essa década do não-confronto não aconteceu só por conta da boa fase financeira que o Brasil – e o mundo – atravessava. Ela também coincide com o início da era digital para as massas, quando a internet deixa de ser conexão discada e vira banda larga, quando o texto deixa de ser o principal padrão de comunicação para dar espaço para imagens, sons e vídeos, quando a internet sai dos computadores para os telefones celulares e as pessoas passam a se conectar umas às outras através de enormes catálogos humanos online chamados de redes sociais. Este novo cenário começou a ser desenhado pela própria chegada da música na internet. A velocidade de transferência e o formato MP3 fizeram a música ser o boi de piranha da nova mídia e com ela foi descentralizado um mercado que, durante o século vinte, foi lentamente se transformando em um oligopólio. O download ilegal de músicas no início do século fez a indústria fonográfica perder a liderança cultural que um dia teve, passando-a para empresas de tecnologia, notadamente a Apple (mas não dá para excluir a Microsoft, o Last.fm, Google Play, Deezer, Spotify, Podomatic, Trama Virtual e todas iniciativas que ajudaram o público a consumir música sem suporte físico). A mesma década de satisfação política também foi uma década de reinvenção de formatos e uma nova geração de artistas viu-se surgindo entre um mercado que estava desintegrando e um outro que vinha sendo construído de forma incerta. As primeiras gerações da música brasileira no século vinte e um não protestavam porque não queriam – mas fazer música em si já era uma forma de protesto, de sobrevivência em um mercado que não parecia ter solução viável no horizonte para mantê-lo financeiramente.
Isso, contudo, vem mudando. Esta mesma geração é dona de uma nova safra de álbuns lançada nos últimos anos mostra que está botando suas garras de fora – e cobrando uma mudança. Nó na Oreia do Criolo, Fortaleza do Cidadão Instigado, De Baile Solto de Siba, o Violar do Instituto, o Ascensão de Serena Assumpção, o Dancê de Tulipa Ruiz, o Mulher do Fim do Mundo de Elza Soares e Cortes Curtos de Kiko Dinucci são apenas alguns destes discos que aos poucos peitam a mentalidade de shopping center e a produtização que o capitalismo impõe à cultura. Há dezenas de outros, mas faltava uma pressão mais forte, mais direta. E essa pressão começou a ser feita por dois álbuns de 2017, lançados na mesma semana: o Galanga Livre, de Rincon Paciência, e o Boca, de Curumin.
São discos irmãos, paulistanos, mas essencialmente brasileiros, que fogem do cinza da metrópole para abraçar o colorido de todo o país, sem perder os olhos e os ouvidos do resto do mundo. Álbuns que mexem com diferentes estados de espírito e gêneros musicais, pontos de vistas e visões de mundo, temperaturas e pressões distintas para fugir de uma estética única, repetitiva, quadrada. Rincon e Curumin fogem dos padrões, mas, principalmente, do padrão, da âncora mercadológica do sucesso comercial que, quando não dá o prumo, ajuda a afundar.
O multifacetado Galanga Livre parte de uma história fictícia de um escravo que matou o senhor de engenho para entrar num Brasil em constante movimento, intenso e sempre na pressão, mesmo nos momentos mais contemplativos. Rincon produz e rima com características particulares, uma dicção que remete a idiomas africanos, rimas sagazes e manhosas e beats que casam samba com trap, a versão mais recente e eletrônica do hip hop norte-americano. Ele fala sério com um riso no canto da boca, brinca com assuntos sérios, superpõe o épico e o mundano, história e rotina para frisar que os diferentes aspectos de sua musicalidade não são díspares, mas complementares.
Curumin segue um discurso semelhante, mas trabalhando na pós-produção, no improviso, na sonoridade orgânica. Multiinstrumentista, ele lidera sua banda a partir de uma bateria cheia de samples, pedais, teclados. Dispara trechos de música para encaixar em sua própria batida, seja orgânica ou sintética, acompanhado de perto por seus velhos compadres Zé Nigro e Lucas Martins, que também revezam-se nos vocais, guitarra, baixo, efeitos e MPC, lidando com as duas facetas da mesma musicalidade. Seu recém-lançado disco Boca é o ápice deste amálgama musical, misturando cores e sabores para mostrar que a graça é não ter padrão.
Tanto Boca quanto Galanga Livre pressionam ainda mais o dedo na política ao tirá-la das assembleias e congressos e traze-la para a vida real, cotidiana, puxando discussões sociais e culturais que vão além da régua da mera música pop. Ambos abrem o capítulo 2017 da maturidade dessa geração e têm a mesma força que a dupla Tropix (da Céu) e Duas Cidades (do BaianaSystem) pareciam carregar no ano passado.
O assunto da minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos no mês de maio foi a trajetória de Kiko Dinucci até o lançamento de seu primeiro disco solo, Cortes Curtos – antes disso, os vídeos que fiz do lançamento do disco no Sesc Pompeia:
Ninguém disse que ia ser fácil
O primeiro som que se ouve é uma frequência elétrica distorcida, a microfonia de uma guitarra posta em primeiro plano como um manifesto, parede de ruído intensa e palpá- vel, que se estica por alguns dez segundos antes do ritmo começar — primeiro pela repetição de um riff entrecortado, depois pela entrada da frenética guitarra base, seguido pelo galope torto do baixo junto com a bateria e finalmente com a entrada dos vocais sincopados, agudos e agressivos de Tulipa Ruiz e Juçara Marçal. De repente, a música para — e o dono do disco entoa uma melodia acompanhado nota a nota por seu instrumento, a guitarra.
“No escuro, no escuro / Uma pedra vira um muro.” As primeiras palavras ditas por Kiko Dinucci em seu primeiro disco solo, Cortes Curtos, lançado por conta própria no início deste ano, resumem a tensão política, urbana e estética contida não apenas nesta obra, mas em toda sua carreira musical. Na verdade, antes mesmo da entrada da voz, o primeiro som emitido pelo disco já sintetiza a natureza de sua musicalidade: agressiva, suja, elétrica e feroz. A sonoridade encarnada por Kiko e sua guitarra não é apenas uma assinatura sonora, mas uma mão que esmurra a mesa antes de virá-la, uma carta de intenções que vai muito além do som. Ninguém disse que ia ser fácil.
Kiko é a arma secreta do grupo de músicos que começou a causar na cena de São Paulo na virada da primeira para a segunda década do século. Referido como nova vanguarda paulista, samba sujo ou Clube da Encruza, o grupo formado por Juçara Marçal, Rodrigo Campos, Rômulo Froes, Thiago França, Sergio Machado, Marcelo Cabral e o próprio Kiko Dinucci, desdobra-se em grupos como Sambanzo, Metá Metá, Passo Torto e Sambas do Absurdo, além de reunir agregados como Tulipa Ruiz, Ava Rocha, Ná Ozzetti, Gui Amabis, eventuais parceiros e as carreiras solo de cada um de seus integrantes. Membro mais prolífico da turma, Kiko, no entanto, nunca tinha lançado um disco solo — embora já somasse quase duas dezenas de discos em que participou, em dez anos de carreira ininterrupta.
Uma trajetória que começou no apertado Ó do Borogodó, tradicional bar de samba entre a Vila Madalena e o bairro de Pinheiros, em São Paulo, quando começou sua carreira fonográfica liderando o Bando Afromacarrônico com o disco Pastiche Nagô, de 2008 (relançado em vinil no ano passado, pelo selo Marafo Records). O Kiko sambista já era uma reinvenção do primeiro Kiko musical, o Kiko punk, que traduzia o cinza e os pixos da São Paulo da virada do século com a mesma virulência e poluição de sua cidade natal. Ao descobrir a natureza marginal do samba paulistano, ele aos poucos foi dominando esta nova linguagem e a partir do Bando Macarrônico começou a aproximá-las.
Cortes Curtos é o ápice dessa junção — e por isso mesmo o disco que assina sozinho. Embora toda a turma esteja presente — a banda base é Kiko, o baixo de Marcelo Cabral e a bateria de Sergio Machado, a mesma cozinha do Metá Metá, e pelos créditos surgem vários nomes conhecidos, como Tulipa, Juçara, Ná, Thiago e Rodrigo, além de novos agregados como Guilherme Held, Suzana Salles, Rafa Barreto e Guilherme Valerio —, o disco é uma obra inteira de Kiko. E é mais do que uma obra apenas visual — é um filme sonoro.
As referências vão além do título, tradução literal de Short Cuts — Retratos da Vida, o filme multifacetado de 1993 em que Robert Altman fez as pazes com Hollywood. Cortes Curtos reúne, em suas canções, uma série de cenas que flagram humores diferentes, todos paulistanos. Da melancolia ao escracho, da putaria à solidão, das ruas cheias de transeuntes às calçadas vazias da noite, o disco perambula por São Paulo como faz o próprio Kiko, um flaneur pessimista, um vagabundo desconfiado, um punk niilista, capturando uma fauna bizarra de emoções e personagens que parecem ainda mais estranhos quando observados isoladamente — mas que integram um paisagem ao mesmo tempo pesada e invisível, o mosaico cinzento que forma São Paulo, “terra de um beijo só”, como cantarola o verso da poetisa Anna Zepa que batiza a faixa de mesmo nome.
A natureza cinematográfica do disco não é acidental, afinal Kiko já tem dois longa-metragens nas costas, entre eles a ode aos cinemas de rua Breve Em Nenhum Cinema, de 2016, além de manter o blog cinéfilo O Olho Derramado, que atualiza de forma bissexta, mas que contrapõe textos sobre O Iluminado de Kubrick, o Melancolia de Lars Von Trier, Branco Sai, Preto Fica de Adirley Queirós e O Som Ao Redor de Kleber Mendonça Filho.
A referência à sétima arte também é parte da construção do cânone paulistano pessoal de Kiko, que junta os sambistas da velha guarda (como Paulo Vanzolini, Geraldo Filme, Adoniran Barbosa) a cronistas clássicos do submundo da cidade (como o dramaturgo Plinio Marcos, o músico Itamar Assumpção, o escritor João Antônio), cineastas da Boca do Lixo e do cinema Marginal (Carlos Reichenbach, Luiz Castelini, Julio Bressane, Rogério Sganzerla, Ozualdo Candeias, Andrea Tonacci, Walter Hugo Khouri) e o punk rock e o hardcore local (de bandas como Ratos de Porão, Olho Seco e Cólera, entre outros), a vanguarda do Lira Paulistana (Ná Ozzetti, Arrigo Barnabé, Língua de Trapo, Rumo, Itamar, Premeditando o Breque e Cida Moreira) e sua própria geração. Tudo se encontra em Cortes Curtos.
Que, ao contrário do que se poderia supor, foi apresentado ao público como um único take, tanto na versão para download em seu site www.kikodinucci.com.br, como em sua versão no YouTube. Nos dois formatos só é possível ouvir as quinze faixas que compõem o disco de uma vez só. Se você quiser pular as faixas, deve comprar a versão em CD. Ninguém falou que seria fácil.
A minha coluna Tudo Tanto da edição de julho da revista Caros Amigos foi sobre o terceiro disco do Metá Metá e o show deles que assisti na infame noite do golpe.
Música inquieta
Como o Metá Metá desintoxicou a noite do golpe e mostrou a luz no fim do túnel – a música
No ensurdecedor silêncio que baixou sobre a noite do golpe, tive de sair de casa. Mariana, minha cara-metade, estava viajando a trabalho em outra cidade e a indignação após a notícia de que haviam derrubado a democracia brasileira no tapetão e que estávamos prestes a voltar, com sorte, há três décadas, me deixava inquieto em casa. Não dava pra ficar remoendo o golpe sozinho naquela noite. Mandei mensagens para alguns amigos perguntando o que fazer e a Roberta me avisou: tem Metá Metá na Casa de Francisca. Nem pensei duas vezes e em poucos minutos já estava no metrô rumo ao minúsculo sobrado nos Jardins.
Formado pelo trio Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thiago França, o Metá Metá é uma das inúmeras facetas da nova música de São Paulo, herdeiros diretos da geração da vanguarda que criou-se ao redor do saudoso Lira Paulistana. Os três, como outros músicos, cantores, compositores e intérpretes da mesma geração, participam dos discos uns dos outros, lançam projetos paralelos e discos de improviso e vivem uma constante reinvenção de suas personalidades a partir desses encontros e reencontros musicais.
Mas o Metá Metá é o epicentro mais forte dessa cena.
São três personalidades distintas e cada uma puxa para um extremo: Juçara é veterana dos grupos Vésper e A Barca, professora de canto e de uma intensidade ímpar no palco, deixando sua voz vibrar suave ou nos atacar como uma força da natureza. Kiko vem do punk rock e do samba paulistano, fez fama liderando o grupo Afromacarrônico que tocava no Ó do Borogodó, inferninho do samba na Vila Madalena, e transita entre a guitarra e o violão sem a menor cerimônia, tratando ambos instrumentos com a mesma intimidade. Thiago é saxofonista de salão, seja de jazz ou de gafieira, e explora os limites de seu instrumento indo do hard bop à doce melodia, além de peregrinar pela flauta e por engenhocas que disparam efeitos.
Encontrei a Roberta antes do show e subimos para o andar sobre o palco, no camarim em que o público, lá de baixo, pode ver os músicos antes de eles começarem a tocar. Os três, normalmente falantes e sorridentes, estavam grudados cada um em seu celular, olhando tensos para a tela brilhante e levantando a cabeça para cada nova notícia que liam sobre os desdobramentos da política brasileira indo para o brejo. Na hora do show, no entanto, tudo mudou. A princípio sérios e introspectivos, o trio cumprimentou o público e começou um lento e fugaz exorcismo de más vibrações. Kiko transformando o violão em instrumento de percussão ou emulando distorção elétrica ao entortar suas cordas. Thiago desembesta-se no sax como se fosse possível viajar até Saturno na velocidade de seu som. E Juçara, entre os dois, entrega-se à musa do trio – a própria música – num misto de sacerdotisa e mestra de cerimônias. Juntos despoluíram toda a má sorte que havia caído sobre o dia e, mesmo que tenham conseguido fazer piadas para desanuviar o clima, mostraram o rumo da luz com música. Intensa música.
No show, algumas músicas funcionavam como aperitivo para o assombroso MM3, terceiro disco que o trio lançou de supetão no mês de junho. Gravado quase ao vivo com o baixista Marcelo Cabral e o baterista Serginho Machado, o disco expande ainda mais o universo explorado no pequeno palco da Casa de Francisca. E mesmo sem dar nomes aos bois, é um disco – como a banda – de natureza política. Um disco descontente – para mencionar Let’s Play That, de Jards Macalé, tocada ao vivo na noite daquele fatídico 12 de maio. Um disco de protesto.
“A gente quando pensa em música de protesto, pensa em letras diretas. Mas cada gesto seu como artista pode ser um protesto”, me explicou Kiko depois; “Por exemplo, o som do Metá pode ser um protesto contra a música brasileira careta, comercial ou inofensiva. A gente pensa muito nisso. O jeito como autogerimos nossos negócios também pode ser um protesto contra os artistas conformados que se deixam ser explorados. Acho que fazemos mais política do que protesto. No momento em que disponibilizamos o disco de graça num País pobre, e qualquer pessoa que mora em uma cidade com menos infra-estrutura pode baixar o disco, isso pode ser encarado como democracia cultural ou uma espécie de reforma agrária da cultura. Não é só o Estado que deve dar acesso à arte, os artistas também podem contribuir.”
“A gente não usa a música pra fazer protesto, a gente usa pra fazer arte”, continua Thiago. “Contamos a nossa história, o que vemos e percebemos do mundo ao redor. É possível você abstrair completamente os significados, reinterpretá-los, assim como a gente ouve muita música que não tem ideia do que a letra diz, e fruímos mesmo assim. Mas sim, somos pessoas inquietas, politizadas e incomodadas com a realidade em que vivemos, sobretudo em São Paulo. Nos envolvemos em questões sociais e políticas, somos simpáticos a vários movimentos.”
“Fazer arte, primar pela liberdade, pela experimentação e pela independência, no que diz respeito à criação e à produção, se tornou algo quase proibitivo na atual realidade cultural brasileira”, completa Juçara. “Mas o protesto se dá de uma maneira muito diferente daquela que marcou os anos 60 e 70. Nossa música não tem palavras de ordem. O discurso mais político, se o utilizamos, aparece na nossa fala durante o show. É a sonoridade, a poesia, a proposta libertária que se estabelece em cada show que fazemos, onde o indivíduo se vê levado pelo som a se expandir, a se soltar, a se transtornar também! -, é isso uma forma de protesto. Talvez a mais forte forma de protesto que existe.”
“Abram caminho para o rei”, ela cantou durante o show. “Sorriam em vez de se curvar / Ele é justiça, ele é a lei / Que fez pra nos levantar / Pra nos pôr em pé, nos erguer / E lançar pra orum nosso olhar.” A plateia estava estática e extasiada, sendo levada num transe com uma descrição crítica do atual cenário político brasileiro – “Não há justiça se há sofrer / Não há justiça se há temor / E se a gente sempre se curvar”, culminando com uma saudação em ioruba ao rei de verdade que ainda há de chegar: “Kawó kabiecilè xangô oba iná!”
Voltei para casa mais leve. O pesar da noite que se abateu sobre o País persistia, mas havia um horizonte à espera, me disse a música. Ela mesma.
Hora de republicar as edições da minha coluna Tudo Tanto que escrevi para a revista Caros Amigos nos útimos meses. A primeira da safra é a do mês de junho, quando escrevi sobre o Tropix da Céu.
Céu imprevisível
Em seu quarto disco, a cantora paulista se firma como o João Gilberto da música brasileira deste século
Encontrei com a Céu logo depois de ela ter terminado seu quarto disco e ela quase não cabia em si. Queria falar sobre o disco, queria mostrar o disco, queria dizer o nome do disco, dizer o que estava experimentando, o que havia inventado, quem havia participado. Mas sabia o quanto o sigilo era importante naquele estágio de gestação do álbum, que ainda estava tendo seu cronograma de lançamento agendado. A obra já estava terminada, o produto ainda não. Mas a vontade para mostrar o disco novo era tanta que ela preferiu trabalhar no campo subliminar, indo me encontrar vestida com uma camiseta do grupo paulistano Fellini. Confesso que a visão dela com a camiseta de uma banda tão importante para a cena independente brasileira quanto desconhecida do grande público me causou certo estranhamento, tanto que perguntei logo depois de nos cumprimentarmos. “Conheci faz pouco tempo”, ela me contou, empolgada, dizendo que estava escutando todos os discos da banda. Por mais que pudesse ter traçado uma conexão entre a banda paulistana e o novo disco dela (Céu lo-fi?) a dica invisível nunca me diria que ela estivesse prestes a lançar uma versão para uma das músicas do grupo. “Foi difícil escolher uma das músicas pra regravar”, ela me contou num outro encontro, quando já podia falar sobre o assunto.
Tropix, o disco que Céu revelou ao mundo no final de março, no entanto, passa longe das gravações de baixa fidelidade do Velvet Underground paulistano. O quarto disco da cantora é seu salto mais ousado, um mergulho na disco music e na pista de dança, na eletrônica e na vida noturna, no mundo digital e nos beats e loops. Um universo completamente avesso à aura rústica que ela carregava em seus ombros musicais, uma ambiência que cruzava a singularidade do reggae mais roots com a aspereza do samba mais cru, a tonalidade mais sépia da música latina e a candura da canção brasileira. Depois de discos de cores neutras, ela veio com um álbum preto, branco e prata, brincando com timbres sintéticos e com a linguagem digital.
E é tudo Céu. O disco foi produzido pela dupla Pupilo, o pulso preciso da Nação Zumbi, e Hervé Salters, o mago francês dos timbres eletrônicos por trás de projetos como General Elektriks e Honeycut. Conta com participações do guitarrista carioca Pedro Sá e da cantora paulista Tulipa Ruiz, tem canções coescritas com o goiano Dinho da banda psicodélica Boogarins e o pernambucano Jorge Du Peixe, vocalista da mesma Nação de Pupilo. Mas é tudo Céu.
A tradição do canto feminino no Brasil nos acostumou a tratar cantoras como intérpretes – que vão da simples definição do termo (em que basicamente cantam músicas compostas, arranjadas e produzidas por outros – quase sempre homens) ao limite da canção com o teatro (quando cantoras como Elis Regina e Maria Bethânia se entregam corporalmente à música). Mais uma das inúmeras facetas do secular machismo enraizado em nossas entranhas (e isso, de forma alguma, é demérito exclusivo do Brasil), sempre que pensamos em mulheres fazendo música, as vemos como musas escolhidas por homens talentosos ou controladores. Céu vira esse jogo. Porque seu disco é todo seu. Foi ela quem começou rascunhando as canções no computador, foi ela quem escolheu músicos e produtores, foi ela quem determinou o rumo a ser seguido, quem compôs as canções e deu o tom do novo álbum. Como em todos seus álbuns.
Ela é o João Gilberto de vestido que inventou essa nova bossa nova que gosto de chamar de música brasileira do século 21. Foi ela que mostrou para diferentes novas cantoras que não era preciso ter homens nos bastidores para determinar seu rumo. Foi ela também quem estabeleceu o parâmetro musical que não é preciso sublinhar forte os gêneros musicais em formação para se determinar pertencente a um clube A ou B de estilo musical, misturando tudo numa mesma sonoridade indefinível, ousada, mas, principalmente, pop. Tropix não é a nova joia em sua coroa de rainha da música brasileira: é o farol que determina o rumo daqui pra frente. Em seus três primeiros discos (Céu, Vagarosa e Caravana Sereia Bloom) ela traçou um perfil que ajudou a moldar a cena musical brasileira atual. Tal como João Gilberto cinquenta anos antes, não o fez de forma consciente, apenas deixou sua sensibilidade guiar o rumo. Mas acertou um nervo artístico que ecoou por diferentes artistas, cenas musicais, discos e shows. Injetou autoestima em uma cena musical que vivia sob a sombra de um cânone que parecia imutável. E mudou a cara da música brasileira.
Tanto que Tropix parece-se com outros dois discos de cantoras e compositoras que vieram depois dela. Tanto o Dancê de Tulipa Ruiz e Frou Frou de Bárbara Eugenia, ambos lançados no ano passado, disfar- çam-se de fúteis para passar mensagens bem fortes. Cada um apresenta uma sonoridade específica, todos os três fundados em cima de uma musicalidade brasileira que sucedeu a MPB dos anos 1970 e antecedeu o rock dos anos 1980. Uma atmosfera de pista de dança que ecoa a discoteca e os arranjos de Lincoln Olivetti, a carreira de Rita Lee após o grupo Tutti Frutti e os anos dance music de Gilberto Gil, a frugalidade de uma sonoridade de fácil absorção e com alto astral. Cada um deles chega dançando do seu jeito para revelar verdades mais difíceis de ser assimiladas do que o simples pop: Tulipa traz mestres como João Donato, Lanny Gordin e novos titãs como Felipe Cordeiro e o trio Metá Metá; Barbara entrega-se a mantras de autoconhecimento e às baladas intensas de Fernando Catatau e Tatá Aeroplano.
A superfície sintética e dance de Tropix guarda segredos densos e realidades flutuantes, como a própria versão que ela fez para “Chico Buarque Song”, dos acima citados Fellini, a latinidade teatral de “Sangria” e as três músicas que fecham o disco “Camadas”, “A Nave Vai” e “Rapsodia Brasilis”, cheias de cordas deslumbrantes, que apontam para um rumo completamente diferente da pista de dança (embora as duas últimas façam dançar). O que ela fará a seguir? Uma viagem à África? Um disco de música baiana? Uma visita ao Caribe? Uma busca pela canção interiorizada? Nem ela sabe. E assim ela consagra a imprevisibilidade não apenas como uma de suas principais características, como a de toda essa nova geração.
Na carta Uma História de Várias Vidas, reproduzida abaixo, Mano Brown conta como ele conheceu o hip hop e como essa cultura o transformou em quem ele é hoje. O texto foi escrito para a apresentação do especial Hip Hop Brasil, da revista Caros Amigos, editado pela Nina Fideles, que pode ser lido online neste link.
Uma História de Várias Vidas
Por Mano BrownNasci de novo quando conheci o rap nacional. Não passei por apenas uma transformação, outra vida me foi dada. Saí do ostracismo, do anonimato total e conheci outro lado. Não tinha política nenhuma, a gente não queria ser nada, queria só cantar, se divertir e arranjar uma namoradinha.Eolance de querer cantar já dá uma vida nova, uma direção; você sair de uma porta de bar às 14h e ir para casa escrever uma letra. Na quebrada era isso, eu ficava no bar, com os caras, não tinha muita escolha. Qualquer paixão me divertia.
Essa visão politizada veio depois, até considerando nossa idade. Eu mesmo tinha 18 anos. A gente conheceu uma pessoa logo no começo que fez a diferença: Milton Sales. Ele tinha toda a bagagem política de outras bandas. E ainda havia todo aquele momento político começando… Final de ditadura, Diretas Já, democracia. Estes caras eram muito apaixonados, e nós éramos adolescentes. Eu tinha noção zero de política.
O Milton falava: “Vocês são bons, vocês poderiam usar este ritmo, este talento para orientar as pessoas. Tipo o Bob Marley na Jamaica…” E naquele momento éramos os caras para conduzir as ideias dos mais velhos, que não tinham acesso à molecada. Tudo era muito novo e começou a fazer parte do que a gente fazia. Milhões de portas se abrindo para um cara que sempre teve todas as portas fechadas.
Na sequência, vinha o Public Enemy. Foi o mesmo que ver o surgimento do Pelé para o moleque que jogava futebol. E tudo aquilo que o Miltão falava, os caras do movimento falavam, e eu não sabia fazer, os caras do Public Enemy já faziam bem demais. Foi o nocaute. Isso tudo antes de existir os Racionais, foram dois anos muito longos. Nesta fase tive muita chance de morrer, de não ter me tornado nada. Eu cantava, mas nada com compromisso. Ganhei concursos, tinha talento para ritmo, era sambista, sou ritmista, e era tudo muito natural, eu só não tinha boas ideias, não era um letrista, era um “cabeça de bagre”.
A gente se divertia, era uma coisa que a gente queria fazer. Eu era um cara confuso, liderando um movimento sem saber, com 20 anos. A ficha caiu agora aos 40 anos, e percebo que nada é perfeito. Estamos no planeta Terra, e não existe felicidade plena.
Acredito que qualquer coisa feita por obrigação flerta com ditadura, com imposições, com o conservadorismo, flerta com cadeia e prisão. Liberdade é liberdade, faz se quiser, se sentir. Um rapper político com más intenções pode ser tão ruim quanto ou pior do que um político de carreira. Você saber que tem domínio sobre as pessoas e usar aquilo é muito perigoso. Hoje minha música está mais livre, eocompromisso está na minha alma. Não preciso colocar no outdoor, fazer panfletagem, nem fazer a mente de ninguém. A internet taí, a informação taí, dá para buscar.
Eu não mudo, mas não exijo. Faço da mesma forma que fazia, com muito amor, muito respeito, ousadia e alegria. O rap é linguagem universal. Se quiser entender, vai ter que conviver, eu não traduzo. Não sou perfeito, não quero ser e já descobri que estou longe disso. Mas não fiz nada que meu coração não quisesse que eu fizesse.
O rap e o Hip Hop não fizeram nada sozinhos. A transformação foi visível. Orgulho próprio, forma de encarar, forma de se vestir, forma de abordar o outro. Em cada fase a gente ocupou um espaço que não ocupava. Foi muito importante, mas vestir a capa de super-herói realmente não nos cabe, porque existem outros anônimos que não ostentam nada, que não vão para a capa do disco e que não são reconhecidos à altura.
Vi no RND.
Como o diretor revolucionou a TV, a música e o jornalismo ao sair de cena e como esta estratégia o torna vivo para sempre – escrevi sobre este incrível legado em minha coluna de maio da revista Caros Amigos.
Ele era mesmo baixo e chamava a todos por este seu apelido – ou por variações dele. “Baixo, baixa, baixinha, baixinho” – não importava a estatura de seu interlocutor. Este quase sempre o via de cima, pois Fernando Faro, que morreu no final do mês de abril, sempre se sentava próximo ao chão quando ia entrevistar seus convidados.
Era um esperto macete de cena que quebrava completamente o gelo das apresentações de seu programa Ensaio, que fazia na TV Cultura desde o início dos anos 1970, depois de lançar o programa na falecida TV Tupi na década anterior. Ao sentar-se um nível abaixo de seus entrevistados, Faro – ou Baixo, como todos o conheciam – quebrava a defensiva típica erguida por quem faz música quando chamado para falar sobre sua vocação. Aquilo tirava a solenidade do estúdio, fazia músicos se esquecerem das câmeras, deixava a atmosfera mais casual, branda, leve – e a música fluía melhor, mais emotiva, mais próxima e mais quente.
E este nem era seu grande truque. Seu Ensaio entrou para a história quando ele mesmo se colocou fora das câmeras. E até dos microfones. Criador e apresentador do programa, Faro não aparecia. Nem sequer sua voz. Muito menos quando perguntava. As perguntas – que ele entendia como redundantes e achava que causavam certo ruído no fluxo da fala de seus convidados – não eram ouvidas durante o programa. Víamos os músicos assentindo com a cabeça, calados ouvindo as colocações do mestre de cerimônias, mas em momento algum víamos quem perguntava ou ouvíamos o que era perguntado. A questão vinha embutida na resposta, por vezes literalmente, mas em muitos casos só entendíamos a pergunta com o desenrolar da explicação dada pelo artista.
A ausência das perguntas em um programa de entrevistas era a marca registrada de seu Ensaio, mas não era a única. A ambientação meio escura, quase sempre com sombras carregadas, mesmo com as cores da TV colorida, davam um clima preto e branco que conversava tanto com o cinema europeu do final dos anos 1960 quanto com o cinema da Boca do Lixo paulistana. As imagens ganhavam profundidade ao revelar as minúcias de seus entrevistados. Músicos olhando para o lado, quase nunca olhando para a câmera, cobertos por uma escuridão acolhedora, que, como a posição de Faro, também tornava o clima do estúdio menos hostil e mais familiar. Os closes nas mãos dos instrumentistas, na textura da pele de seus entrevistados, nas rugas e recôncavos faciais, nas rachaduras dos lábios dos cantores. Havia uma proximidade intensa entre a câmera e seu foco que aproximava o telespectador do entrevistado. Não era um show, não havia maquiagem, figurino nem efeito especial – eram pessoas tocando em sua própria casa.
Havia ainda a amplitude do leque musical de Faro, um rígido crítico musical que não precisava de adjetivos ou notas para mensurar o trabalho alheio. Bastava ser chamado para o Ensaio para entrar num enorme panteão que recebia sambistas, chorões, sertanejos, roqueiros, bossanovistas, virtuosos, rappers, intérpretes e instrumentistas sem a menor distinção de hierarquia ou degraus de importância. Só o fato de estar lá já significava fazer parte de um grupo específico designado pela escolha do dono da festa. Tanto faz se fosse Cartola, Elis Regina, Los Hermanos, Racionais MCs e inúmeros artistas quase anônimos que o tempo esqueceu – Baixo tratava-os todos da mesma forma.
E também havia a longevidade do programa. Foram quase cinco décadas ininterruptas de shows semanais, ladeando artistas em ascensão que se tornaram os mestres de hoje em dia com novatos que despontaram para o anonimato, músicos de imenso apelo popular ou queridinhos da crítica musical, veteranos que não foram celebrados em seu auge e conjuntos instrumentais. A estética, o estilo, a mensagem que o meio passava, tudo se mantinha quase idêntico por todos esses anos. Essa longevidade na TV brasileira necessariamente depende de um apresentador carismático para esticar-se por décadas (como Fausto Silva, Sérgio Groissman ou Inezita Barroso) e são raros os programas que se esticaram por tanto tempo sem depender de um rosto conhecido ou mesmo mantendo a própria assinatura.
O foco no entrevistado, o clima intimista, a estética como assinatura, a amplitude de gêneros e a firmeza em manter o próprio trabalho eram as qualidades intrínsecas ao Ensaio, que é o grande legado que Faro nos deixa. Agora interrompido por questões biológicas, todo o acervo do programa – que já começou a ser lançado em DVD, tem um próprio canal no YouTube, mas não está inteiro disponível on-line – surge como uma imensa obra única, uma herança monumental sobre uma das principais contribuições da cultura brasileira para o mundo, a música.
A sacada de Faro para entrar para a história da TV, do jornalismo e da música brasileira foi sair de cena. Décadas antes de Quincy Jones colocar uma plaquinha na porta do estúdio de gravação do encontro de popstars dos anos 1980 USA for Africa, em que pedia para os intérpretes da música “We Are the World” (figurões do quilate de Michael Jackson, Bob Dylan, Stevie Wonder e Bruce Springsteen) deixarem seus egos do lado de fora do estúdio, Faro deixou o próprio ego fora da história que queria contar para que seus personagens brilhassem mais que ele.
É claro que sua ausência será sentida, mas não vista – como era em sua vida. Seu legado é um olhar lúdico sobre a diversidade e profundidade emocional e viva da música brasileira e seus autores e intérpretes, deixando que estes falassem por si. Mesmo morto Faro continuará fazendo as perguntas que ninguém ouve – e seu Ensaio continua mesmo que não seja mais gravado.
Mais uma edição de minha coluna Tudo Tanto na revista Caros Amigos que republico atrasado por aqui, esta é sobre o novo disco de João Donato, que pude ver ao vivo no começo do ano (e os vídeos vêm a seguir). A coluna saiu na edição de abril.
De volta à eletricidade
João Donato volta ao vigor de seus anos 70 com o disco Donato Elétrico
João Donato aceitou o convite de Ronaldo Evangelista para voltar à eletricidade. O jornalista – meu amigo pessoal, não preciso esconder isso – já vinha apontando sua transição do texto para o estúdio ao se propor o desafio de transformar seu projeto Goma Laca – em que artistas recriavam pérolas esquecidas da música brasileira que só foram registradas em compactos de 78 rotações – em um disco. Sua primeira produção reuniu nomes de peso como Karina Buhr, Lucas Santtana, Russo Passapusso e Juçara Marçal para recriar músicas com quase um século de idade. O próximo estágio seria produzir um disco de um único artista e aproveitou a aproximação com Donato para fazer sua estréia como produtor em grande estilo.
Foi um lento processo de convencimento, sem pressa nem pressão, bem ao estilo do velho músico. Donato é destes alicerces da música brasileira que poucos prestam a devida atenção – ele se adequa à expressão inglesa que o qualifica como um “musician’s musician”, um músico apreciado mais por outros músicos do que pelo grande público, não sem razão. Mestre da suavidade e do sossego, é uma das claras inspirações da bossa nova, tendo influenciado tanto João Gilberto quanto Tom Jobim quando estes ainda começavam suas carreiras. Depois teceu uma carreira paralela entre o Brasil e o exterior, levando a música brasileira embalada a uma latinidade própria sua, que foi desenvolvendo e curtindo com o passar dos anos.
O primeiro disco de inéditas de João Donato deste século começou com um acerto de contas com o passado, quando Ronaldo conseguiu uma boa desculpa para fazer o músico voltar aos instrumentos elétricos, essência de sua sequência de discos clássicos dos anos 1970. Descobriu que o disco Quem é Quem, lançado em 1973, não teve um show de lançamento de fato e resolveu aproveitar o aniversário do disco para finalmente lançá-lo. Para isso cercou-o dos músicos do grupo paulistano Bixiga 70 e convocou amigos do arranjador para subir ao palco – além do veterano compadre Marcos Valle, que produziu o disco original, também chamou as cantoras Tulipa Ruiz e Mariana Aydar para cantar os clássicos do disco do mestre, que incluem canções como “A Rã”, “Cala Boca Menino”, “Me Deixa”, “Amazonas” e “Cadê Jodel?” No ritmo de Donato, o show só foi acontecer no início de 2014, em duas apresentações emocionantes no Sesc Pinheiros.
Era o primeiro passo para uma impressionante aproximação entre o buda do groove brasileiro e a fina flor da nova música instrumental brasileira. Além de músicos do Bixiga, que incluem o baterista Décio 7, o baixista Marcelo Dworeck, os guitarristas Cris Scabello e Maurício Fleury (que também toca teclado no Bixiga mas preferiu não chegar perto do instrumento do mestre), o naipe de metais formado por Cuca Ferreira (sax e flautim), Daniel Nogueira (sax), Douglas Antunes (trombone) e Daniel Gralha (trompete) e os percussionistas Rômulo Nardes e Gustavo Cecci, o disco contou com outras presenças de peso, como o baterista Bruno Buarque (que tocava com a Céu e hoje toca com Anelis Assumpção), o saxofonista Anderson Quevedo, os percussionistas Mauro Refosco e Guilherme Kastrup (este idealizador do disco mais recente de Elza Soares, Mulher do Fim do Mundo), o guitarrista Gustavo Ruiz (irmão de Tulipa, que toca com ela), o trombonista Richard Fermino, o vibrafonista Beto Montag e o baixista Zé Nigro (que toca com Curumin) e um quarteto de cordas formado por Aramís Rocha, Robson Rocha, Daniel Pires e Renato de Sá, que em uma das músicas seguiu os arranjos de Marcelo Cabral, baixista que toca com Criolo e com o Metá Metá.
Chamado de Donato Elétrico, o disco foi gravado no ano passado no bunker do Bixiga, o estúdio Traquitana que sedia as sessões de alquimia musical do coletivo paulistano de groovezeira, localizado no bairro que batiza o grupo, mas só viu a luz do dia no início deste ano. É um inevitável reencontro de Donato não apenas com instrumentos que havia deixado de lado – teclados Rhodes, Farfisa, Clavinet e até um Moog – mas com uma espontaneidade que solta faíscas. Há a clara vibração de discos como A Bad Donato, Quem é Quem e o clássico Donato/Deodato, em que encontrou-se com outro monstro maestro brasileiro, Eumir Deodato. Mas ela tem uma luz mais clara que a daqueles discos, que são propriamente carregados. O novo disco não é parte de uma evolução natural de sua musicalidade como aconteceu nos anos 70 e sim um reencontro com uma essência jovem que talvez tivesse dada como perdida. Donato vinha tranquilamente apresentando-se ao lado de um baixista acústico e um baterista, quando muito chamando uma vocalista ao encontro, e de repente viu-se cercado de músicos com sangue nos olhos, secos para deitar e rolar ao lado do mestre. João, envolto em sua tradicional névoa branca, com seus bonés e tênis coloridos escancarava o sorriso nas apresentações ao vivo com o grupo de novos músicos, alheio aos seus mais de oitenta anos de idade.
Pude vê-lo em ação duas vezes nesta nova fase. Uma delas, no ano passado, tocando para pouquíssimos num palco menor daquele shopping center chamado Rock in Rio, pérolas aos porcos que esperavam na fila para cantar no karaokê de uma marca de refrigerante. Em outra, no lançamento do disco, toda a choperia do Sesc Pompeia lotada, reverenciava o encontro do mestre com os pupilos. Em ambas apresentações, em dado momento Donato levantava-se do banquinho de trás dos teclados e brincava com os botões dos sintetizadores, explorando efeitos, transformando melodia em ritmo, claramente divertindo-se e divertindo o público.
Mais uma coluna para a Caros Amigos do começo do ano ressuscitada aqui, esta sobre o show que Jeneci e Tulipa fizeram juntos em janeiro. Abaixo, os vídeos que fiz no show. A foto acima, de divulgação, é da Beatriz Besseler,
A maturidade de uma geração
Reencontro no palco de Tulipa Ruiz e Marcelo Jeneci consagra o início de uma nova fase da atual cara da música brasileira
2016 começou com um show duplo apaixonado, quando as carreiras de Tulipa Ruiz e Marcelo Jeneci se reencontraram mais uma vez em uma pequena turnê realizada no início de janeiro. Os dois cantores e compositores começaram suas carreiras meio que ao mesmo tempo, no final da década passada. Se embrenharam na picada aberta por Céu alguns anos antes e começaram a pavimentar o terreno e começar a erguer os alicerces para uma nova geração de artistas brasileiros, que a preguiçosa crítica musical da época ainda se referia como “nova MPB”.
Suas primeiras temporadas de show aconteceram no pequeno Grazie a Dio, casa de shows na Vila Madalena, em São Paulo, que viu aparecer toda esta geração que hoje toma conta do cenário musical brasileiro. Os dois revezavam shows naquele palco pelos idos de 2009, bem antes de lançarem seus respectivos discos de estreia – o Efêmera de Tulipa aparece no meio de 2010, o Feito Pra Acabar de Jeneci do mesmo ano. E consagraram a infância de suas carreiras com um show conjunto, em que apresentaram uma canção feita a dois – “Dia a Dia, Lado a Lado”.
Lançaram seus discos, trilharam seus rumos e ergueram suas próprias carreiras separados um do outro. Nos últimos cinco anos, firmaram suas discografias – Tulipa lançou o terceiro disco no ano passado, Jeneci está rascunhando seu terceiro disco neste semestre – e se estabeleceram como dois dos principais nomes da música brasileira desta década. Mas pairava sobre eles a expectativa não apenas pelo reencontro nos palcos mas também da oficialização da parceria de 2009, registrada apenas em vídeos no YouTube feitos por fãs.
A hora aconteceu no final de 2015. Os dois artistas se reuniram para finalmente registrar a versão da música e anunciar uma pequena turnê juntos. Passaram por Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, quando tocaram três vezes no Sesc Pompeia. Pude assistir à noite de estreia do espetáculo no Teatro do Sesc.
Mais do que um simples reencontro das duas carreiras, o show também serviu de balanço para os dois artistas. Cada um trouxe uma dezena de canções de seu próprio repertório para o show, que foi encadeado de forma que as músicas mais simples se encontrassem mais próximas entre si enquanto os momentos mais arrebatadores foram deixados para o fim do espetáculo. Assim “Efêmera” e “Felicidade” abriram a noite que foi chegando para o final juntando “Nada a Ver” com “Like This” e “É” com “Sorriso Madeira”.
A banda de apoio – “banda híbrida”, brincou Tulipa – reunia dois músicos de cada banda, além de ter Jeneci como instrumentista, indo dos teclas do acordeão às dos teclados elétricos. E o show teve dois momentos em que a dupla visitou a canção que deu origem ao encontro: uma primeira versão tímida e distante, quase teatral, com os dois cantando alternando o cantar de frente e de costas um para o outro. E uma última, final, no bis, quando improvisaram um mergulho em separado no público. Logo que a música começou Tulipa e Jeneci se separaram no palco e cada um foi para um dos lados do anfiteatro duplo imaginado por Lina Bo Bardi. Cada embrenhou-se em uma dos lados da plateia dupla e atravessou as galerias laterais para descer na plateia oposta e se reencontrar novamente no palco, dando ao público a oportunidade de ver seus ídolos bem de perto. Num bis emocionante.
E embora o show fosse um longo dueto, cada um deles pisava um pouco atrás para deixar o dono de cada canção brilhar. Uma bela dança em que os dois se alternavam entre os papéis de protagonista e coadjuvante para realçar a primazia de cada composição, ocasionalmente dividindo refrões e cantos livres. Jeneci até pode apresentar uma música inédita – “Rei do Tempo”, em que Tulipa recolheu-se backing vocal -, mostrando que ambos sabiam que o show não era só um encontro, mas um reconhecimento mútuo da importância dos dois.
E um sinal de maturidade de toda uma geração. E não apenas nos dois protagonistas da noite. A tal banda híbrida é outro sintoma perfeito deste momento. Um dos guitarrista é Gustavo Ruiz, irmão de Tulipa e diretor artístico de seus trabalhos, além de seu principal parceiro, e sua trajetória antecede à da irmã, quando ele tocava no DonaZica, que tinha Anelis Assumpção, Iara Rennó e Andreia Dias (hoje todas em carreiras solo estabelecidas). O outro guitarrista, Regis Damasceno, toca com Jeneci além de ser um dos fundadores do grupo cearense Cidadão Instigado e parceiro do compositor Pélico. O baterista de Jeneci, Samuel Fraga, também toca com Regis em projetos como Lamber Vision e Catatau e o Instrumental, além de tocar com Marcia Castro. O baixista de Tulipa, Marcio Arantes, é produtor do excelente Ná e Zé, disco que reuniu Ná Ozzetti e José Miguel Wisnik no ano passado.
Não é só Tulipa e Jeneci, mas toda uma geração. Os dois são apenas os nomes mais conhecidos de uma safra de músicos que inclui nomes como Emicida, Karina Buhr, Siba, Mariana Aydar, Apanhador Só, Tiê, entre outros, e que já pode ser considerada a atual cara da música brasileira. Uma geração que já está consolidada e que está prestes a compor seus primeiros clássicos.
O reencontro de Tulipa com Jeneci é claramente isso. Eles já têm a consciência que não sao mais novidades, não são mais apostas. Percebem cada vez mais como desequilibraram a história da música brasileira com o início de suas carreiras – e não se intimidam. É o início de uma nova fase, o fim da adolescência e o começo da maturidade artística de toda essa geração.
Fiquei sem atualizar minhas colunas da Caros Amigos desde o início do ano, por isso vou começar a compartilhá-las aqui. A primeira do ano foi sobre a aproximação da nova música brasileira a um novo protesto, que começava a surgir nas ocupações das escolas que aconteceram no ano passado e que anteciparam os protestos deste tenso 2016.
Há um tempo que a música brasileira não protesta. Uma conjunção de fatores diferentes fez a voz dos descontentes perder eco na música no início deste século. A derrocada das gravadoras fez que boa parte dos artistas passassem a depender de empresas e do poder público para gravar discos e fazer shows e, com isso, temáticas como provocação, cobrança e vingança desapareceram do cancioneiro nacional no início do século. A ótima fase econômica que o país atravessou na década passada ativou o sempre alerta otimismo brasileiro, que também ajudou a desligar as ganas da contestação. O rock deixou de ser a voz do contra e mesmo bandas de hardcore começaram a falar de amor. E a crise que o hip hop nacional enfrentou após incidentes violentos no meio dos anos 00 o fez repensar todo aquele sangue nos olhos.
Tudo isso transformou a temática da música brasileira do início do século em algo menos agressivo, incisivo, contestador. O amor assumiu de vez o papel de principal tema, abrindo espaços para outras platitudes – e os artistas que antes falavam apenas de amor começaram a falar de sexo no lugar. E logo a música brasileira para as massas se referia mais à pegação, balada e vida noturna, tanto em gêneros que sempre apostaram nestes temas (como a axé music e o funk carioca) até em estilos mais tradicionais (como o sertanejo e o samba).
Mas do mesmo jeito que essa conjunção de fatores fez diminuir o clima de contestação na década passada, ela foi se desfazendo à medida em que entramos na década atual. As chamadas jornadas de junho de 2013, a crise econômica no País, a insatisfação com o governo Dilma, os protestos contra a Copa do Mundo e os nervos à flor da pele nas redes sociais tornaram o país mais belicoso e agressivo. O brasileiro voltou a tomar às ruas como não acontecia há muito tempo e as pautas destes protestos eram – e são – as mais díspares possíveis.
E aí que parte daquela geração que cresceu à sombra dos artistas que falavam de amor e outros assuntos menos sérios começou a botar suas manguinhas de fora. Artistas que já vinham falando de temas menos óbvios e mais interessantes, buscando horizontes musicais mais amplos e desafios pessoais através da arte. Foi justamente a safra que culminou no ótimo 2015 que eu comentei na coluna anterior. Uma rápida audição em cada um daqueles álbuns deixam claro um clima de descontentamento, de não aceitação, de exigência – cada um à sua maneira, cada um do seu ponto de vista.
Assim, o Fortaleza do grupo cearense Cidadão Instigado é um desabafo agoniado sobre a forma como sua cidade-natal foi consumida pela violência, pelo consumismo e pela especulação imobiliária, usando-a como metáfora para esse estilo de vida de jecas brasileiros se sentindo melhores que seus conterrâneos porque falam inglês errado. O mesmo sentimento atravessa o fantástico De Baile Solto do pernambucano Siba, um disco feito em protesto contra a lei de segurança pública que proibiu o maracatu de tocar até o sol raiar – quando a própria definição de maracatu pressupõe a noite virada e o sol raiando. Dois discos feitos às próprias custas, sem gravadora, incentivo fiscal, apoio cultural, nada – justamente para não ser acusado de ter o rabo preso com alguém.
Os discos de Emicida e Karina Buhr são bombas-relógio que partem de dois temas – racismo e feminismo, respectivamente – mas que vão aos poucos mostrando a presença de ambos em diferentes aspectos de nossas rotinas. Outros discos abordam a política em nossos gestos, hábitos e comportamento, longe de siglas, ideologias e líderes – TransmutAção de BNegão e seus Seletores de Frequência fala sobre a mudança interior, o autoestranhamento de Rodrigo Campos em Conversas com Toshiro, A Terceira Terra dos Supercordas é sobre como passar para o próximo estágio da vida em sociedade, Estilhaça do Letuce transforma problematiza a vida a dois como uma tensão em busca de um equilíbrio e o Violar do Instituto pressupõe um incômodo, algo que destoa e desarmoniza. Até o instrumental do Bixiga 70 também “fala” isso, seja nos títulos de suas músicas ou no andamento mais pesado de seu terceiro disco.
Até os trabalhos mais experimentais do ano passado carregam esse tom. Discos como Niños Heroes de Negro Léo, o improviso interminável de Abismu de Kiko Dinucci, Juçara Marçal e Thomas Harres, o encontro de tirar o fôlego entre a mesma Juçara e Cadu Tenório, a alma livre e torta do Voo do Dragão do trompetista Guizado e até o transe telúrico de Ava Rocha em seu disco de estreia Ava Patrya Yndia Yracema – estão todos alinhando-se com o coro dos contrários, cada um vindo de uma direção diferente. Bárbara Eugenia e Tulipa Ruiz vão pelo caminho oposto, fingindo-se de pop em seus respectivos Frou Frou e Dancê para falar sério sem que a gente perceba.
Essa produção artística toda culmina no instigante Mulher do Fim do Mundo, que Elza Soares gravou com alguns dos músicos acima citados e que parece sintetizar o clima de descontentamento atual que todos os discos acima sublinham. Mas mais do que celebrar o encontro de Elza com uma geração mais nova, 2015 talvez tenha sido importante por mostrar para essa geração mais nova que uma geração ainda mais nova pode ser seu novo público.
Foi o que se viu no início do mês de dezembro do ano passado, quando a atual geração da música brasileira resolveu entrar de cabeça na luta das ocupações das escolas públicas de São Paulo, realizadas por adolescentes alunos das mesmas. Revoltados contra a decisão unilateral do governador Geraldo Alckmin de fechar escolas, os alunos foram lá e tomaram conta das instituições, assumindo a gestão e a rotina de mais de 200 escolas em todo o estado. E os artistas mais velhos se reuniram para fazer shows para arrecadar mantimentos para essa nova geração rebelde.
Pude assistir a uma de várias destas apresentações ao ar livre e gratuitas que aconteceram na cidade. Artistas como Céu, Cidadão Instigado, Bárbara Eugênia, Vanguart, Criolo, Maria Gadu, Tiê e até veteranos como Paulo Miklos e Arnaldo Antunes se reuniram num domingo em uma praça no Sumaré para celebrar esse novo momento de resistência – e aos poucos criava-se uma conexão improvável entre adolescentes que não conheciam uma geração mais velha de artistas que se dispunha a fazer shows de graça para eles. Um elo que parece ingênuo e frágil à primeira instância, mas que pode fazer com que estas duas gerações cresçam juntas, se respeitando e construindo um país melhor do que esse que tentam nos empurrar entre anúncios comerciais.
Na minha coluna do mês passado na revista Caros Amigos, falei de uma transformação que vem acontecendo no pop do Rio de Janeiro que deu origem a três discos muito bons, o de Alice Caymmi, o de Diogo Strausz e o sensacional disco de Ava Rocha, que epitomiza essa mudança.
Um disco para um novo Rio de Janeiro
O primeiro disco solo de Ava Rocha encerra a brusca transição musical do Rio de Janeiro rumo a uma nova realidade
Há algo acontecendo no Rio de Janeiro do século 21 que vai além de shows de bandas indies realizados via crowdfunding, grifes de Ipanema que despontam via Instagram e celebridades hipsters locais que se encontram entre os drinks da Comuna e as vendinhas do Cluster. Tudo parece fútil para quem olha de fora, mas por baixo de uma camada de superficialidade típica dos hypes e da vida digital há um novo carioca em formação, que rejeita os clichês do malandro do passado e tenta alcançar São Paulo como referência de modernidade.
É uma transformação que, pra efeitos de cronologia, começa a acontecer a metade dos anos 90, com a formação do influente – e pouco ouvido – grupo Acabou La Tequila e o começo da década seguinte, quando os Los Hermanos, filhotes do Tequila, decidiram negar o sucesso do hit “Anna Júlia” ao gravar um disco quase introspectivo, o hoje clássico O Bloco do Eu Sozinho.
Os anos 90 fizeram o Rio de Janeiro acordar para sua nova realidade, quando finalmente percebeu que não era mais um balneário ensolarado que um dia foi capital de um império e havia se tornado cenário de uma guerra civil calada. Musicalmente, os últimos ecos do arcadismo bossa nova foram atropelados pelo canto falado de Fernanda Abreu, Marcelo D2, Gabriel O Pensador, Fausto Fawcett, BNegão, Black Alien e todos os MCs de funk carioca, que vieram mostrar que a velha cidade maravilhosa havia morrido.
Nesse Rio decadente, um grupo de amigos da zona sul havia sido infectado por uma provocação paulistana que chegava do outro lado da Dutra fazendo conexão no Recife. A dúvida que Cadão Volpato plantou no ouvido de Chico Science (“mudar de lugar ou mudar o lugar?”) traduziu-se num progressismo que Recife não via desde o auge de Ariano Suassuna. A frase-síntese “um passo para frente e você já não está no mesmo lugar” deu uma injeção de autoestima primeiro nos pernambucanos e depois na cultura do norte brasileiro do começo dos anos 90 (em novas cenas surgidas em Fortaleza, Salvador, Maceió, Natal, Belém) que foi registrada no Rio de Janeiro por uma turma de amigos que virou o Acabou La Tequila e que incluía, entre seus primeiros fãs, os então seis barbudos que se transformariam no Los Hermanos. Inconscientemente, esses indies que gostavam de MPB e ouviam tanto as bandas do selo Midsummer Madness (outro ícone do indie carioca) quanto velhos sambistas começaram a reimaginar um Rio de Janeiro idílico – mas não bucólico – que poderia ser criado sobre o raio X cru que estava sendo mostrado nos anos 90.
O Tequila lançou um disco em 1996 em um dos selos do produtor Miranda, o Excelente Discos, meses antes do selo ser fechado. Em 1999 saiu seu segundo disco, O Som da Moda, depois que a banda havia acabado. Foi o mesmo ano em que os Los Hermanos lançaram seu primeiro disco pela Abril Music, que trazia “Anna Julia”, um hit que caiu nas graças dos trios elétricos baianos do carnaval do ano 2000 e transformou a música num dos maiores hits daquele ano. A reboque, os Hermanos despontaram como a primeira grande banda de rock brasileiro do século 21 – ou a primeira grande banda de rock a fazer sucesso depois dos Mamonas Assassinas.
O sucesso pegou mal para eles, que quiseram se repensar do zero. Isolaram-se num sítio no interior do Rio com o produtor Alexandre Kassin, ex-baixista do Tequila, e lançaram o disco O Bloco do Eu Sozinho, que começou a colocar em prática este novo Rio de Janeiro, menos tenso, bairrista e malandro, mais escapista, idealista e cidadão do mundo. Kassin em pouco tempo se tornaria um dos produtores mais requisitados do Brasil, além de forjar seu novo grupo ao lado de Moreno Veloso, filho de Caetano, e Domenico Lancelotti, o + 2.
Este redesenho seguiu sendo forjado por festas, discos e festivais experimentais e de vanguarda, tornando-se realidade quando Caetano Veloso gravou o disco Cê, acompanhado de novos músicos desta cena. A partir deste novo cenário foram aparecendo novas agentes e agitadores culturais – entre festas, DJs e sites – que começaram a erguer este novo Rio, além de novíssimas bandas como Do Amor, Dorgas, Tono, Baleia e Letuce, que surgiram no início desta década,
Chegamos à metade da segunda década do século com três lançamentos de tirar o fôlego, pertencentes a três diferentes dinastias da música brasileira diretamente influenciados por este novo Rio. O primeiro, lançado no calar do ano passado, é o da neta de Dorival Caymmi Alice Caymmi. Seu Rainha dos Raios é um disco eletrônico e sóbrio, épico e espalhafatoso. Seu timbre grave paira sobre bases eletrônicas ou acústicas desenhadas pelo arranjador Diogo Strausz, este dono do segundo disco desta safra, o formidável Spectrum. Filho de Leno – da dupla Leno & Lilian – ele lança um disco que soa como contraponto ao de Alice – igualmente expansivo e bipolar, mas com menos apelo dramático (apesar de “Diamante”, cantada por Alice) e com um dos pés na pista de dança.
Mas os dois se esmaecem à sombra do inacreditável Ava Patrya Yndia Yracema, nome de batismo da filha do cineasta Glauber Rocha. Em seu primeiro disco solo, Ava Rocha vai da canção tradicional ao espasmo noise, do free jazz ao bailinho, dos cabos da internet às profundezas do planeta. Um disco inclassificável, traz uma cantora segura de si e com sangue nos olhos. Assumindo-se autora, ela entra numa viagem sônica ao lado do produtor Jonas Sá que condiz com a grandeza épica e brasileira de seu nome na certidão de nascimento. Talvez seja o disco que este novo Rio de Janeiro estava esperando.
Os três discos podem ser ouvidos gratuitamente nos sites dos respectivos artistas: www.rainhadosraios.com, diogostrausz.com e www.avarocha.com. Apenas o de Alice não permite o download gratuito.