Há um ano terminei minha última coluna no Link em 2012 com a seguinte previsão:
Eis a minha aposta para 2013: menos olhos na telona, mais olhos na telinha. Menos tempo sentado, mais tempo em pé. Menos escritório, mais rua. É claro que temos que esperar melhorias drásticas no nosso parco 3G e num utópico 4G que nem sequer é realidade. Mas, com certeza, usaremos mais celulares que computadores. Se é que já fazemos isso hoje, sem nos dar conta.
Um exercício de futurologia bem fácil de ser acertado – a chave está na última frase, que cogita a possibilidade de que a previsão já esteja acontecendo. E é uma realidade: estamos usando cada vez menos o computador e cada vez mais o celular.
A onipresença da internet em nossas vidas finalmente tornou-se fato a partir do momento em que não precisamos ir para um lugar específico para acessar a rede. Lembram-se que, antigamente, em vez de ligarmos diretamente para uma pessoa, ligávamos para os lugares mais prováveis em que ela estivesse? E os números “de casa” e “do trabalho” eram anotados à mão (e muitas vezes rasurados) em um volume de papel que simplesmente saiu de nosso dia-a-dia, a “agenda telefônica”? O celular extinguiu esses conceitos, na medida em que foi se popularizando pela metade dos anos anos 90 em direção a este século 21. Ele expandiu os horizontes de uma das últimas novidades da telefonia fixa, o telefone sem fio, para o infinito (ou ao menos até onde o sinal aguentar).
Telefone portátil uma excentricidade que só parecia fazer sentido para pessoas que viviam trabalhando com o novíssimo mercado global, quando você precisava saber o que estava acontecendo do outro lado do mundo exatamente quando estivesse acontecendo, algo que parece trivial atualmente mas era uma novidade restrita a um círculo de poucos convidados há menos de duas décadas. Telefonia celular era um conceito tão fora do comum quanto ter telefone no carro ou poder fazer uma ligação de dentro de um avião (algo que ainda é meio alienígena, mas que se tornará rotina ainda nessa década, outra profecia fácil de ser arriscada). Em pouco tempo, esse mesmo tipo de aparelho nos apresentaria a uma forma de conversar pelo telefone que não requeria nem mesmo a voz, com as mensagens de texto. Aí veio o smartphone e aposentou a pré-histórica internet wap e a rede de fato chegou aos telefones.
Da mesma forma que aconteceu antes com o telefone, ocorreu com a internet: tínhamos que estar em um determinado ponto geográfico pré-definido se quiséssemos ter acesso à rede. Eram os tempos do “computador da casa”, do “quarto do computador”, em que o desktop bege era o centro de um cômodo em apartamentos pelo planeta. Com o notebook e a popularização da tecnologia Wi-Fi isso mudou de repente e videochats começaram a acontecer na cozinha, a mesa de jantar poderia servir de escritório fora das refeições, dava pra assistir filme na cama ou mandar emails deitado numa rede. O smartphone com tela touchscreen, representado iconicamente pelo iPhone que a Apple revelou em 2007, se tornaria o dispositivo móvel de acesso à internet definitivo (e não o tablet, um smartphone feito para pessoas mais velhas acertarem as teclas), mas foi preciso que meia década se passasse para que parássemos de pensar no celular como uma forma de nos conectar a rede – e sim para que a rede começasse a ser desenvolvida para também o celular. O boom da economia dos aplicativos deu origem a uma nova série de softwares e redes sociais pensados especificamente para o telefone móvel, além de fazer todo desenvolvedor tradicional a pensar em versões paralelas para seus serviços funcionar melhor via celular.
E em 2013 pudemos usar essa nova rede à exaustão, a ponto de deixarmos o computador em segundo plano. Comprar ingressos? Pedir táxi? Jogar videogame? Pedir comida? Ir ao banco? Os aplicativos feitos para o Brasil já estão funcionando bem e nossa internet 3G tem melhorado (ainda está longe do ideal) a ponto de conseguirmos finalmente usar o smartphone de forma mais plena – e isso tem nos deixado mais distante do computador, que nos deixa encurvados em frente à tela, costas arqueadas, luz branca fritando os olhos full-time. Com o celular, podemos fazer quase tudo que fazemos no computador deitados, enquanto estamos cozinhando, a caminho de algum lugar, à espera de alguma coisa, em movimento.
Sempre fui arredio à telefonia móvel pois não queria ser encontrado, mas abri mão dessa inconveniência graças à série de benefícios que não consigo imaginar deixando de lado hoje em dia. O contato com a minha família ficou muito mais frequente via Whatsapp (meus pais e irmãos usam mais o aplicativo do que mandam email, ligam pelo telefone ou atualizam o Facebook), qualquer situação pode ser registrada e publicada quase que instantaneamente (que vão de motivos nobres como a cobertura cidadã dos protestos de junho desse ano ou vis como a publicação de vídeos ou fotos tiradas durante trepadas como motivo de vingança), as notícias chegam mais rápidamente, boas ou ruins. Fora aquela foto tirada (ou publicada) naquele momento certo, o acesso a todo acervo de vídeos e músicas do mundo (pagas via streaming ou baixadas por download) e softwares que nos ajudam a medir tudo sobre o que fazemos, transformando atividades antes monótonas (programar uma viagem, seguir uma dieta, lembrar de tomar remédios) em equivalente a jogos.
Mas ainda não é o fim da história: falta alguém inventar uma ferramenta de interface tão boa quanto o conceito de mouse e um substituto decente para o teclado (de preferência que não use a voz). E, claro, deixarmos de se referir a este aparelho como “telefone” – afinal, usá-lo para conversar é uma das coisas que menos fazemos através dele… Mas isso é questão de tempo.
Vamos aos fatos: Breaking Bad não é a melhor série já feita. E, com seu final formal, não entra no panteão das melhores séries de todos os tempos. O crescendo criativo que tornou uma série cult em um dos maiores fenômenos da TV deste século prometia um final épico, megalomaníaco, impossível de ser batido. Fomos (ou pelo menos fui) vítima da própria expectativa. Toda última temporada de Breaking Bad (as duas partes) não fizeram jus à tensão que vinha acumulando-se por toda a série – elas apenas esticaram esta tensão, esta sim a grande qualidade da saga de Walter White. Só continue lendo a partir daqui se souber do final da série.
A cada novo capítulo, o drama do professor de química – que, à beira da morte, passa a apostar na fabricação e comércio de metanfentamina para deixar sua família com algum troco antes de morrer – tornava-se mais denso e complicado. Não apenas pelo fato da aposta ter dado certo. Sua ascensão profissional mexe com os brios de uma concorrência bem barra pesada, o que a torna cada vez mais perigosa. Mas o problema não é esse – é que nosso protagonista aos poucos vai tomando gosto pelo poder e vicia-se na adrenalina de ser o pior vilão. Em questão de meses deixa o ar assustado do professor e pai de família Walter White e transforma-se num bad guy de peso, assumindo características dos vilões que foi dando cabo na medida em que a série avançava. E o codinome Heisenberg que inventou para sua nova persona vai assumindo sua identidade com mais força que o câncer que o colocou nessa vida bandida.
Por quatro temporadas, assistimos a essa escalada com as unhas cravadas nos braços da poltrona. Na mesma medida que ia ganhando dinheiro, ia fazendo desafetos. Esses novos inimigos tentavam enquadrá-lo, mas, de alguma forma, Walter White conseguia reverter a situação, quase sempre usando os poderes da ciência (“science, bitch!”), sua mais fiel comparsa. Como num videogame escrito por Sam Peckinpah, cada final de fase apresentava seu chefão sinistro, um vilão repugnante que deixava o antagonista anterior com cara de frágil. A quarta temporada, pra mim, é o ápice de Breaking Bad, ao apresentar todo esplendor de seu pior vilão, Gus Fring, de forma crua e sem diálogo logo no primeiro episódio, e ao eliminá-lo de forma ainda mais crua e apoteótica num season finale histórico. O final da quarta temporada é infinitamente superior a quase toda a quinta temporada, à exceção do impressionante episódio Ozymandias, o antepenúltimo capítulo que, de certa forma, encerra Breaking Bad.
A principal qualidade da última temporada foi enfatizar o principal músculo da série – sua capacidade de reter a tensão. Não houve nenhuma grande sacada, nenhuma reviravolta emocionante ou segredo revelado que estivesse sob nossos narizes. Ninguém da família de Walt morre, como temíamos por diversos episódios, e a redenção de Jesse, mesmo que temporária, apenas proporcionou uma sensação de alívio trivial. A morte de Walt na última cena é só um desfecho melancólico e previsível, que em nada se pareceu com finais previstos que podiam traçar paralelos com o Scarface de Al Pacino ou O Poderoso Chefão, obras citadas como referência no decorrer da série. A melhor leitura do último episódio foi feita por um comediante americano, que pegou as falhas do season finale (a narrativa mecânica, os diálogos frios, a conclusão morna) para montar um desfecho paralelo em que Walt morre sozinho no exílio, cercado por policial num deserto gelado enquanto imagina, minutos antes de morrer de câncer, as cenas que assistimos no último episódio.
Mas até chegarmos ao final, passamos por uma temporada em que qualquer silêncio tinha triplo significado, qualquer troca de olhares podia resultar numa briga fatal, qualquer plano mirabolante podia desandar horrivelmente. A ascensão comercial de Walter White se estagna e não vemos ele se tornar um lorde traficante internacional. A eliminação de Gus Fring no último episódio da quarta temporada parecia que nos levaria ao grande rei do crime organizado, alguém ainda mais polido e vil que o personagem dono de uma franquia de lanchonetes de frango frito. A aparição da personagem Lydia parecia nos levar a uma outra esfera do negócio que Walter White invadia, aquela em que empresários e políticos frequentadores de colunas sociais são os grandes vilões. “Se você segue a droga, você chega em drogados e traficantes”, dizem as sábias palavras de Lester Freamon, um dos principais personagens da impecável série The Wire, que vai onde Breaking Bad não teve coragem de ir, pois “se você segue o dinheiro, ninguém sabe onde ele pode te levar”. Breaking Bad preferiu não seguir o dinheiro.
O grande trunfo de Breaking Bad é consagrar esta fase de ouro vivida pela produção para a TV no novo século. Se antes da HBO e do blockbuster superlativo “televisão” era uma forma de menosprezar a produção audiovisual, depois de Sopranos, 24 Horas, The Wire, Lost, Six Feet Under e Battlestar Gallactica este parâmetro mudou a ponto de quase ter se invertido. Não há mais distinções entre quem produz cinema e TV como antigamente e alguns dos principais astros de Hollywood (George Clooney, Will Smith) vieram da televisão. As principais produções em termos de faturamento e crítica são feitas para a TV e a geração Netflix ainda está em sua infância. Breaking Bad faz parte de uma geração que inclui Walking Dead, Game of Thrones, Mad Men, Orange is the New Black, Girls, Lie to Me e Sherlock (esta sim a grande série atual) – seriados com aspiração à grande arte, que não se fingem apenas de entretenimento vazio e buscam a consagração de obras com centenas de horas de duração. Aconteceu que ela foi apenas a primeira destas a acabar, daí tanto frenesi. Mas todas essas outras citadas também chegarão ao fim e causarão, umas mais que outras, níveis de fanatismo exagerado e declarações de que “esta sim é a melhor série de todos os tempos”.
Não creio que nenhuma destas barrará Sopranos ou The Wire nesse sentido. É preciso superar as expectativas, em vez de simplesmente atendê-las, como aconteceu no episódio final de Breaking Bad. Uma série que nos acostumou com o inusitado preferiu o conforto de um final justo. Não acho que uma obra que termine com uma conclusão considerada “honesta” (adjetivo usado à exaustão na semana do season finale) seja digna ao trono de qualquer linguagem.
Já perdi a conta de quantas vezes comecei a escrever esse texto. Comecei a rascunhá-lo como um processo de exorcismo à péssima notícia que meu amigo e irmão de coração Fred Leal havia sofrido um AVC, em Paracambi, a cidade que ele colocou em nosso mapa mental, no primeiro dia do mês de setembro deste ano. Danilo me ligou tenso, dizendo não ter mais informações além de que ele já estava internado no Rio de Janeiro e perguntando, já sabendo da resposta, se podia me incluir numa troca de emails de um grupo de amigos mais próximos que estavam acompanhando o fato trágico. Tatu, outro irmão dessa pequena família que construímos além da amizade, estava acompanhando tudo direto do hospital e nos mantinha informados sempre que podia. Não dava pra fazer nada a não ser esperar. Foi quando comecei a escrever esse texto, como uma carta para ser lida por ele quando saísse do hospital.
Cheguei a ir ao Rio de Janeiro dias após o acontecido, fiquei horas na sala de espera do hospital em que ele estava internado, mas não consegui visitá-lo. Os médicos não disseram na hora, mas depois fiquei sabendo que o quadro dele havia piorado enquanto o esperava e não seria possível ninguém vê-lo naquela quarta-feira. Tatu continuava mandando notícias sobre os altos e baixos típicos de alguém que estava internado naquelas condições. Cada dia uma nova leva de novidades, boas ou ruins. Até que, alguns dias depois, na meia-noite do sábado 7 para o domingo 8 de setembro, recebo uma mensagem no celular, com a Bia pedindo para que eu ligasse para ela urgente – estava na praia e o celular não pegava direito, embora houvesse wi-fi. Fui correndo para a beira da praia onde o sinal do celular pegava melhor, já temendo o pior – e com ela a drástica notícia. Fred não havia resistido. Nunca havia perdido alguém tão próximo. Entrei em estado de choque e não consegui sequer ir ao enterro de um dos meus melhores amigos, naquele domingo triste em Paracambi.
Fred Leal era uma das melhores pessoas que todos nós conhecíamos. Como muitos amigos que conheci primeiro online, não me lembro de nosso primeiro contato virtual, mas lembro finalmente te-lo conhecido pessoalmente no show de lançamento do primeiro disco dos Los Hermanos, no saudoso Ballroom, no Rio de Janeiro, em 1999. Fred, ainda adolescente, era uma dos muitos fãs de primeiríssima hora do grupo carioca e já havia perdido a conta de quantos shows do grupo já havia assistido antes daquele, mas estava especialmente animado com o show daquela noite – afinal era a consagração de uma intuição que já havia sido percebida por um pequeno grupo de cariocas do qual Fred fazia parte. E, como acontecia com a maioria das pessoas que conheceu Fred, o primeiro contato offline com foi de empatia instantânea. Nos dias seguintes já o tratava como alguém que conhecia há anos e nossa diferença etária (era seis anos mais velho que ele, diferença significativa quando flutuamos ao redor dos vinte) havia simplesmente desaparecido.
Desde então o contato online tornou-se permanente – há mais de dez anos trocava informações sobre discos, livros, filmes e frilas com Fred, sempre o chamando nas diferentes empreitadas que me envolvia. Coloquei-o para entrevistar personagens no site da velha revista Play, chamei-o para cobrir shows do saudoso projeto Trama Universitário, convidei-o para escrever no livro 300 Filmes para Ver Antes de Morrer, que editei para a revista Época em 2006 e quis o destino que ele não escrevesse nada pra Galileu – era questão de tempo para que o chamasse. Mas não era só troca de conhecimento – Fred era um coração gigantesco pronto para ouvir seus lamentos e desventuras e muitas vezes segurei suas barras emocionais depois de pés na bunda ou ressacas morais. Trocávamos links pra shows inteiros no YouTube enquanto um lia o outro falando sobre as desilusões e esperanças recentes, indicações de novos autores vinham misturadas de confissões hilárias ou de sermões intensos. Uma dica de culinária lembrava velhas namoradas, brigas com parentes, a monotonia do emprego. Exercícios de futurologia, filmografias completas, ombro amigo, artistas desconhecidos, filosofias de vida – qualquer meia hora conversando com Fred via email, MSN, ICQ, Gtalk ou mensagens do Facebook valia por cursos intensivos das coisas que importam na vida.
O contato online, a poucos toques e cliques do teclado, se tornou uma amizade de coração, e, mesmo na maior parte do tempo morando em cidades diferentes, pudemos conviver proximamente em vários momentos. Desde as temporadas que eu passava no Rio no início da década passada aos shows de Paul McCartney que assistimos juntos em Buenos Aires, quando ele havia se mudado para a capital argentina. Mas dois períodos de convivência foram intensos: 17 dias em Recife no início de 2006 e o quase ano que trabalhamos juntos em São Paulo no Estadão, entre 2009 e 2010.
O primeiro foi em fevereiro de 2006, quando fui convidado para palestrar na segunda edição do Porto Musical, em Recife, uma semana antes do carnaval. Eu havia acabado de sofrer o acidente que me deixou parado por seis meses, braço direito na tipóia e sem movimentar a mão devido a um estiramento de nervos e uma das conversas mais frequentes que tinha com Fred à época era sobre a produção de conteúdo feita pelo usuário comum através da recombinação de mídias já existentes – a cultura do remix que é a base da produção cultural na internet, aquela feita por qualquer um (no final daquele ano a revista Time escolheria “você” como “pessoa do ano”). Pensei em apresentar este tema no simpósio e convenci a organização do evento a pagar a passagem de Fred, que havia topado desenvolver melhor a palestra comigo. Como estava de licença médica, poderia emendar o período da palestra com o carnaval pernambucano, uma velha utopia. Ao ir em dupla para Recife com Fred ainda tivemos a vantagem de descolar um apartamento no bairro de Boa Viagem, onde passamos duas semanas em dos carnavais mais psicodélicos da minha vida. Foi quando eu criei o Vida Fodona, que começou a princípio como um podcast de entrevistas – aproveitamos a movimentação cultural promovida pelo Porto Musical e, claro, pelo carnaval, e saímos entrevistando artistas, produtores e amigos sobre aquele momento. Na véspera da viagem, passei antes por seu apartamento no Leme (o clássico Tchose Inn), onde editamos o vídeo que apresentamos na palestra pouco antes de irmos ao histórico show que os Rolling Stones fizeram em Copacabana. Os causos e lendas deste carnaval (o misterioso segundo disco do Mombojó, a festa que Dani Arrais – que ainda morava no Recife – conseguiu agitar para que tocássemos antes de irmos embora, o famoso caso do psy às quatro da manhã) estão entre alguns dos meus melhores momentos pessoais. Vida Fodona indeed – e sempre ao lado do Fred.
O segundo aconteceu depois que me tornei editor do Link e consegui convencer o Estadão a contratar um repórter que não tinha diploma – Fred veio com a chinfra de “personal nerd”, título criado por ele que usei para atualizar a antiga seção “Saiba Como”, e logo encantou a todos, se tornando uma peça central em uma das melhores equipes que já fiz parte, a equipe que conduzi a partir de 2009. A convivência diária com Fred nos presentava com doses cavalares de gentileza e bom humor – Fred sempre tinha aquela tirada na hora certa, seja com um link, uma citação, uma lembrança inusitada ou apenas seu senso de humor ao mesmo tempo sisudo e sacana (sempre seguido daquele “HEHEHEHE” rido com força na garganta). Ele morava do lado de casa, no mesmo prédio que a Tati, e várias vezes emendávamos um terceiro tempo pela região – seja dividindo o táxi ou trocando idéia até altas em seu apartamento, bebendo, fumando, ouvindo música e jogando Beatles Rock Band. Foi em sua passagem pelo Estadão que ele conseguiu entrevistar dois de seus ídolos na música – Robert Schneider, dos Apples in Stereo, e Bill Withers. “Direto eu lembro das nossas conversas de fumódromo”, foi uma das últimas coisas que ele me escreveu, “hahaha, grandes momentos”. Grandes momentos :~
Essa convivência foi interrompida pelo próprio Fred que, em sua segunda passagem por São Paulo, havia percebido que não nascera para morar nesta cidade. Abandonara mais uma carreira, entre tantas, desta vez para morar em Buenos Aires. Seis meses depois me chamava no Gtalk – “estou te devendo um uísque, vou voltar pro Brasil”. Mas em vez de voltar para o Rio enfurnou-se em Paracambi. Logo depois vieram as notícias da morte de sua mãe e de seu pai (mesmo que não falasse mais com o pai, a notícia lhe baqueou, embora não transparecesse) e cada vez mais Fred foi se escondendo em Paracambi. Por trás da extrema simpatia havia uma tristeza que pairava sob sua personalidade. Era essa tristeza que o tornava tão doce e sentimental, mas ao mesmo tempo arrastava-o para baixo com força. Aos poucos, a ida para Paracambi parecia uma fuga da realidade para os mais próximos, que de algum jeito tentavam trazê-lo de volta à convivência. Mas ele parecia disposto a ir. Meu último gesto nesse sentido foi dar-lhe um blog nOEsquema – uma forma de contribuir não apenas aos anos que me deixou hospedado na Fubap (que antes chamava-se Badtrip) como também de fazê-lo voltar a escrever, mas o Axioma teve apenas quatro posts. Num deles, deslumbra-se com o grande disco de Frank Ocean do ano passado e cita uma entrevista do rapper para definir sua amplitude lírica. Sem querer, Fred estava falando de si mesmo:
“Quando você está feliz, você curte a música. Mas quando você está triste, você entende a letra.”
Fred era letra e música – e todos cantávamos com ele. Quem sente, sabe. Vamos seguir cantando-o.
Não é (só) a maconha. A atitude de Juan “Pepe” Mujica em relação à droga ilícita mais popular do mundo – legalizando-a e estatizando-a – é apenas uma das várias mudanças que nosso pequeno vizinho está proporcionando ao inconsciente coletivo global. E não é (só) o aborto ou o casamento gay (nem o oferecimento de uma saída para o mar para o Paraguai). Acho que a principal contribuição do atual presidente do Uruguai para o resto do mundo está em possivelmente esfacelar o garbo fake que paira sobre nossos representantes políticos (resumido magistralmente em uma frase dita em uma entrevista à Folha: “o pior de ser presidente é a parafernália fedal que sobrevive na república” e posto em prática menos de um mês depois, quando o presidente – “oh!” – compareceu a uma solenidade oficial – “oh!” – de chinelos – “OH!”). E por mais insignificante que o país possa parecer, Mujica foi à Assembléia da ONU em setembro e fez um discurso que deverá ser lembrado por muitos anos (a transcrição traduzida segue abaixo) – se você não o viu/ouviu/leu, leia antes que 2013 acabe, pra começar 2014 com a cabeça certa:
Não foi à toa que a revista Economist escolheu o Uruguai como sendo o melhor país de 2013. Mujica pra presidente do mundo!