E por falar nisso, faz tempo que não falo da seção FYI do IMS por aqui, mas desde abril eu e a Helô mantemos a coluna com certa regularidade no blog do Instituto Moreira Salles, trazendo novidades de todos os lados – quase todas não associadas necessariamente às notícias, mas trazendo informação e conhecimento de outras áreas. Desde então já falamos da batalha de Kruger, sobre a poética das letras do hip hop brasileiro (em duas partes), sobre o direito de ficar calado, a íntegra de shows do Coachella e trechos do Sónar brasileiro deste ano, a moda para quem não é da moda, sobre a árvore de tweets da Rio +20, do tricô como manifestação artística, de como a presidência norte-americana é tratada pela TV daquele país, da viagem interdimensional do casal Eames, gifs animados do século 19, uma gafe da BBC, além dos obituários de Nora Ephron, Ray Bradbury e Dieter Fischer-Dieskau. Confere lá.
• WWDC 2012: A novidade de hoje • Fecha-se um ciclo • Maratona de programação: Hackatão reúne programadores e jornalistas em encontro inédito no País • Ray Bradbury: Futuro próximo • Impressão digital (Alexandre Matias): Ray Bradbury: o autor que nos despertou a paixão pelo futuro • Homem-Objeto (Camilo Rocha): O celular que eleva os padrões • Vida digital: Alec Empire – ‘A internet é um experimento de anarquia e liberdade’ • E3 2012: Além dos consoles • Servidor: Mapas 3D do Google, o novo pássaro do Twitter, Foursquare de cara nova… •
Também escrevi sobre a importância de Ray Bradbury na minha coluna na edição de segunda-feira do Link.
Ray Bradbury: o autor que nos despertou a paixão pelo futuro
Ele trouxe o futuro para mais perto do presente
De todos os grandes nomes da ficção científica, Ray Bradbury, que morreu na semana passada, era o menos geek. Enquanto outros autores igualmente importantes se deixavam levar por devaneios científicos (como Asimov, Heinlein, Clarke) ou metáforas tecnológicas (K. Dick, Gibson, Farmer, Burroughs), Bradbury se via como um escritor, não como um visionário ou um filósofo. E foi assim que trouxe o futurismo distante que encantava o pequeno público inicial do gênero mais importante do século 20 para as massas.
Seu truque era contar boas histórias sem se ater a detalhes técnicos ou precisões tecnológicas. Veja o exemplo de seu título mais popular, As Crônicas Marcianas, coleção de contos que narrava como os terráqueos invadiram o planeta vermelho, invertendo a lógica do pioneiro H.G. Wells, que fez marcianos invadirem a Terra num dos primeiros clássicos do gênero (Guerra dos Mundos, de 1898). Mas, ao escrever sua saga, Bradbury tinha menos Wells em mente – e mais o John Steinbeck de As Vinhas da Ira. Pouco importava a tecnologia que era usada para colonizar o planeta ou problemas considerados críticos por escritores mais científicos (como gravidade ou atmosfera). O que Ray queria era usar a ficção científica como gancho para falar sobre relações humanas.
O mesmo vale para seu livro mais reconhecido, Farenheit 451, o clássico onde a queima de livros simboliza a destruição de toda uma cultura para a manutenção da autoridade de controle. Ele poderia estar falando do futuro, mas também estava falando de seu tempo – afinal, o livro foi lançado em 1953, quando o macartismo norte-americano gritava denúncias contra qualquer suspeita de comunismo e instaurava o clima de paranoia e caça às bruxas nos EUA.
Usar o futuro como metáfora para o presente não é uma das principais condições da ficção científica, embora muitos tenham usado deste recurso (até mesmo escritores que não pertenciam ao gênero, como n’As Viagens de Gulliver, de Jonathan Swift, ou 1984, de George Orwell). Na verdade, Bradbury fazia o caminho inverso de uma das principais qualidades do gênero, que é permitir que cientistas, que normalmente se enfurnam em pesquisas e perdem o referencial externo, possam vislumbrar possibilidades criativas que não podiam cogitar antes. Com escritores deixando a imaginação correr solta, tecnologias e oportunidades que não haviam sido imaginadas anteriormente (como a viagem pelo espaço sideral, a teoria dos universos paralelos, a inteligência artificial, entre outros exemplos) passaram a entrar na rotina destes teóricos.
Bradbury ia na contramão. Em vez de assustar ou encantar o público com suposições apocalípticas e fantásticas, preferia tratá-las com indiferença, fazendo com que o público não-geek pudesse imaginar um futuro em que, mesmo com a onipresença de tecnologias novas e inéditas, parecesse com o seu presente. Assim, foi aos poucos acostumando o planeta com um futuro implacável, que não era trágico ou impossível. “É bom renovar o encanto”, escreveu nas Crônicas Marcianas, “a viagem espacial nos tornou crianças novamente.”
E aos poucos nos fez crer que a inevitabilidade de novas tecnologias não era algo a ser temido, mas aceito, como um presente da humanidade para ela mesma no futuro. Um Edgar Allan Poe otimista, Ray Bradbury não temia o desconhecido, mas o aguardava como uma criança em véspera de Natal. Não fosse sua habilidade de fascinar o público, talvez fôssemos mais temerosos em relação às novidades que nos assolam diariamente. Muitos até podem se sentir saudosos com esse futuro neoludita que, felizmente, não aconteceu. Pois para cada problema e paranoia criada pelo século digital (ausência de privacidade, excesso de controle, consumismo, déficit de atenção), tantas outras soluções e possibilidades benéficas surgem a todo instante, transformando nosso presente numa velocidade nunca vista na história.
Tudo graças a este artista que, antes de tudo, era um defensor dos livros e das boas histórias. “Meu trabalho é fazer que você se apaixone”, dizia. E, graças a ele, nos apaixonamos pelo futuro.
Outro gênio ceifado por 2012. E esse é dos grandes, não apenas da ficção científica, mas da literatura, da criação, da criatividade. Vamos ouvi-lo:
Escrevi sobre a morte e o legado de Ray Bradbury na coluna FYI que eu e a Helô tocamos no site do Instituto Moreira Salles. Um trecho:
A morte de Ray Bradbury é, de alguma forma, a morte do século XX. De todos os escritores de ficção científica – um gênero que existe, na prática, há pouco mais de cem anos, Bradbury deu mais ênfase à prática literária do que aos devaneios futuristas. Não foi visionário como Arthur C. Clarke, nem pragmático como Isaac Asimov – e, diferente destes, pouco tinha de cientista. Não aspirou ao gênio transcendental de Philip K. Dick ou ao vórtex descendente de William Burroughs – e, diferente destes, pouco tinha de artista. Encarava a escrita como uma prática, a literatura como sacramento e dedicava seu suor a melhorar esta atividade diariamente, religiosamente. Tanto que em boa parte de suas fotografias ele aparece na frente de uma estante cheia de livros ou atrás de uma máquina de escrever portátil.
O texto continua lá no Blog do IMS.
Capa do Clowes, textos da Jennifer Egan, Anthony Burgess, Ray Bradbury, William Gibson e Margareth Atwood. Coisa fina.
E aí, sentiram saudades?