Vou tentar exercitar meus poderes telepáticos, de origem místico-científica, e arriscar um palpite: essa não é a primeira resenha, crítica ou análise do Series Finale de LOST que você, leitor, está lendo. E digo mais, provavelmente a maioria das análises que você já leu discorriam não apenas sobre o enredo de Lost, mas também sobre a experiência pessoal do autor com a série, certo?
A métrica mais infalível para discernir uma obra de um fenômeno cultural é avaliar o quanto da própria vida as pessoas associam à vida da obra. Não tenho vergonha de admitir que Lost está para sempre misturada à história dos meus vinte-e-muitos anos. Muito mais do que uma série televisiva em 114 capítulos, Lost era, no início, uma obssessão de tempo integral, que permeava hábitos de leitura, pesquisas na Wikipedia, horas e horas surtando em sites enigmáticos cuja relação com a série era vaga, na melhor das hipóteses. Era uma das melhores desculpas para fazer amizades de toda a década de 00, e grande parte do meu círculo social atual nasceu nas madrugadas desesperadas atrás de links para baixar os episódios, que eram assistidos sem legenda, conforme iam chegando, para serem então discutidos até quando o sono permitisse. Qualquer coisa levemente parecida com uma pista perdida num canto de um frame que só era visto na transmissão em HD era motivo para mil teorias. Os erros de continuidade e de produção não eram perdoados. A mitologia da série se misturava à “mitologia” do próprio grupo de amigos que se conheceu através dela. Como entre os personagens da série, também houveram muitos romances, muitos rompimentos, brigas, polarizações, alguns bebês, e – felizmente – nem de longe tantas mortes, mas certamente um ou dois sumiços dramáticos e inexplicáveis. Como eu disse na análise de “What They Died For,” a linha entre os protagonistas e os espectadores de Lost é tênue, e portanto não tem como analisar a jornada completa de Lost sem passar pela contribuição pessoal.
Durante essa minha jornada particular, eu vivenciei bem cedo a revolta que muitos agora direcionam para o Series Finale. Apesar de ter sido rotulado de “massa de manobra de seita messiânica” por causa do meu review positivo de “Across the Sea,” a verdade é que eu desencantei da vertente pseudo-científica de Lost muito antes da maioria das pessoas, no final da segunda temporada, quando “eletromagnetismo” era um eufemismo para “energia que faz o que os roteiristas quiserem que faça.” Meu lado sci-fi geek é MUITO geek. Não precisou chegar nem perto de viagem no tempo, que dirá de luz mágica dentro de caverna, para que eu me afastasse de Lost, esfriasse a cabeça, e depois me reaproximasse já encarando a série como um drama sobre pessoas onde a mitologia é um veículo, não um destino.
Sob essa abordagem, a de que nem toda mão de treinador de cavalo em cena é uma pista, e de que os mistérios servem para testar a fé dos personagens, não para premiar telespectadores-detetives que venham a desvendar “o final” com antecedência com algum troféu imaginário – nesse aspecto, “The End” é um finale absolutamente digno para uma série que, dentro de seus acertos e (não poucas) falhas, fez história como um verdadeiro marco cultural e pairou acima da maioria das obras televisivas desse início de século.
Antes de qualquer coisa, vamos tirar da frente algo que me incomoda profundamente em qualquer conversa sobre Lost: é evidente que os produtores foram escrevendo a história ao longo da série. Isso não é detrimento NENHUM ao roteiro. Toda história foi escrita em algum momento. Lost começou como uma cena imaginada na cabça de J.J. Abrams durante um vôo. Naquele momento, não existia final, nem mistério, nem nada, era apenas uma queda de um avião. Li em algum lugar que, quando fez o pitch da série para a ABC, Abrams só tinha planejado até o momento da descoberta da escotilha. Ainda não existia final. Os bad numbers, que viraram ícone da série, foram criados por David Fury quando ele ainda trabalhava na série, antes de deixá-la por 24 Horas sem ter escrito qualquer explicação lógica para eles – a explicação ficou por conta de Javier Grillo-Marxuach (que por sinal foi o criador da Iniciativa Dharma) num ARG que ele comandou depois de ter saído, ele mesmo, da série, ao final da segunda temporada, e que foi criado justamente para tentar fechar algumas das questões que não eram centrais à trama, mas que tinham sido introduzidas pelos roteiristas na época em que Lost ainda era uma série sem data para acabar (e consequentemente carente de enredos que a mantivessem por tempo indefinido).
Encaremos a realidade dos fatos. Até o final da segunda temporada, Lost era uma série muito rentável que a ABC pretendia estender por quanto tempo pudesse. Durante dois anos, o importante era sustentar a narrativa, e não dosar meticulosamente pistas para um final que já estava garantido. Foi só durante a crise do mid-season da terceira temporada que Damon Lindelof e Carlton Cuse resolveram ter uma conversa séria com a ABC e exigir que a galinha dos ovos de ouro deles ganhasse uma data de fim, e temporadas mais curtas que não tentassem competir com 24 Horas no número de episódios. Era isso, ou sacrificar ainda mais os índices de audiência, porque o público não ia mais comprar jogo de espelhos e fumaças por muito tempo, e a série precisava de um rumo. A partir daí, sim, as temporadas passaram a ter coesão narrativa e uma espinha dorsal que unia as pontas.
Assim como a maioria das pessoas, eu também passei por uma fase na infância e adolescência em que escrevia contos. Eram uns contos bem sem-vergonhas, mas a maioria deles germinava de uma cena que brotava na cabeça, e daí crescia para sua explicação. O importante era a ambientação e o impacto da cena. Essa filosofia também era aplicada nas mesas de RPG que eu mestrava. Muitas aventuras de mistério e terror que meus players lembram até hoje (sempre fui fã ardoroso de Ravenloft, nem imagino o porquê) nasciam de cenas soltas que eu imaginava serem assombrosas para os jogadores, e dali em diante, conforme o desenrolar das aventuras, a explicação dos mistérios ia surgindo como consequência das pistas, e não o contrário. Me desculpem se estou decepcionando alguém, mas as duas primeiras temporadas de Lost foram certamente escritas da mesma forma. Com muito mais técnica e competência envolvidas, claro, mas ainda assim, Lost é um mistério escrito de fora pra dentro. Isso significa que os produtores trapacearam? Claro que não. Vocês ficariam surpresos com a quantidade de histórias com reviravoltas e enigmas que são escritas desse jeito, e para desbancar de vez a tese de que elementos inseridos depois do primeiro capítulo são irrelevantes e/ou encheção de linguiça, só menciono dois personagens que surgiram como participações especiais e foram ampliados por causa da resposta do público: Desmond David Hume e Benjamin Linus. O quão irrelevantes eles soam para vocês?
Pronto, agora que isso saiu do meu peito, posso falar sobre “The End” em paz. Não vou repetir o que muita gente mais entendida que eu já falou sobre como Lost reinventou sua própria estrutura estilística ao longo das temporadas, e como isso é genial e tudo o mais. Quem me conhece sabe que um dos momentos mais chocantes da minha vida enquanto telespectador de teleséries foi o último capítulo da terceira temporada, em que todos assistimos por mais de uma hora a cenas do futuro sem saber do que se tratavam, e tomamos na cara aquela aparição de Kate e aquele “We have to go back!” Nenhum outro momento de “te peguei” na séire desde então teve um impacto tão forte quanto aquele. Nem mesmo a última reviravolta de “The End,” aquela que explica finalmente a “realidade paralela” que vínhamos acompanhando desde o início dessa temporada, mas rapaz – chegou bem perto. Ao ponto de eu por um momento não entender o que estava vendo, e subitamente, como um raio, tudo ficar claro, e meus olhos se encherem de lágrimas. Não me importo que tenha sido a reviravolta mais descaradamente espiritual da série até a data – nunca me incomodei com espiritualidade em obras de ficção científica, inclusive porque é um recurso manjadíssimo pra quem não estreou no universo nerd com Lost – aquela cena me deixou moído, com cara de paisagem, me sentindo mais uma vez ludibriado, da forma boa, pelos produtores (eles sempre disseram que *a Ilha* não era o purgatório… boa, Darlton, muito boa). Injetou significado retroativamente em todos os episódios da temporada, e todas as estranhezas e as coincidências das vidas que os Losties levavam nela se encaixaram de forma cristalina. Eles precisavam uns dos outros. Precisavam se reencontrar, mesmo que além do plano mortal, para seguir em frente. E que metáfora filha da puta para nós, espectadores-protagonistas, que também tivemos que deixar a Ilha, e que também precisamos seguir em frente depois de termos sido parte de Lost por seis anos. A sexta e última temporada de Lost tem na resolução de seu enredo um motivo apenas secundário. O principal, o essencial, era a despedida. O fim da jornada que foi assistir – e produzir – Lost. Um tema que fala forte àqueles que realmente se envolveram com a série, não aos que assistiam aos pedaços, sem atenção, procurando cenas ou diálogos patronizadores que preenhcessem listinhas frias de “perguntas sem respostas.” E por se envolver, quero dizer se envolver com a história, não necessariamente ficar obcecado por cada minúcia, por cada campanha de marketing, por cada spoiler vazado, etc. Quero dizer se importar mais com o bem estar de Jack, Kate, Sawyer, Hurley e tantos outros, do que com a ilha que uniu nossas vidas às deles.
E, diga-se de passagem, para quem tinha se decepcionado com a “Luz dentro da caverna” de Across the Sea, o series finale de Lost deixa bem claro que não sabemos nada de nada. Não havia uma bola flutuante de luz dourada dentro de uma caverna de pedra, e sim um ambiente com sinais claros de intervenção inteligente, com mecanismos, com mais enigmas separando mesmo os candidatos empossados da verdadeira natureza do poder da ilha. Os órfãos da pseudociência podem se esbaldar em teorias pelo resto da vida aqui, desde civilização Atlante até Exogênese, porque essa é a parte que os produtores deixaram de legado para os fãs (e para a Disney, que certamente vai continuar ordenhando essa mitologia por algum tempo). Eles foram bem específicos quando disseram que a história que eles iriam terminar de contar era a dos passageiros do vôo 815 e dos amigos e inimigos que cruzaram seu caminho. O que realmente é a luz, o que realmente é o monstro, o que realmente é a Ilha… para isso existem gazilhões de teorias na internet muito mais elaboradas do que eles jamais se prestariam a criar. A falta de respostas não é uma trapaça, é uma concessão. Lost é dos fãs, também, e já que eles se apropriaram tão ferrenhamente da mitologia, para quê estragar a explicação pessoal de 99,9% deles para fazer 0,1% felizes por uns poucos dias, enquanto ainda tiverem fôlego para dizer “eu avisei”? Não faz sentido.
O episódio final de Lost foi arrebatador porque me deu exatamente aquilo que eu queria ver, e em quase todas as ocasiões, com atuações memoráveis de todo o elenco. Retiro o que disse semana passada, que preferia que a missão de Desmond no flashpurgatório tivesse começado mais cedo na temporada, porque não poderia ter sido diferente. Não ia ter o mesmo impacto ver o “despertar” de cada um dos Losties se não fosse tudo de uma vez, com a trilha sonora do Giacchino debulhando, e culminando na cena da igreja ecumênica. Quase todos os reencontros me levaram às lágrimas, alguns (o ultra-som de Sun, o parto de Claire, e a monstruosa cena de Sawyer e Juliet), confesso, ao choro compulsivo. Só o final de Sayid é que destoou horrendamente do resto, acho que de propósito – já que o Naveen Andrews, apesar de competente em cena, sempre desdenhou da série na mídia para quem quisesse ver. Unindo isso à atuação claramente para-cumprir-contrato da Maggie Grace e tivemos a cena mais dispensável do finale.
Mas essa foi a única cena realmente ruim. Algumas outras ficaram meio dispensáveis, como aquele pulo do Jack na última cena antes do intervalo de seu confronto final com FLocke, que beirou o pastelão. Mas não chegou a estragar a porrada, que foi épica (E um parêntese aqui para quem disse não ter entendido o papel de Desmond na derrocada do Homem de Preto, é bastante óbvio – Desmond tirou a Ilha da tomada e o deixou mortal por tempo suficiente para Kate, numa participação digna da Kate das primeiras temporadas, enfiar uma bala no infeliz e acabar de vez com a ameaça do fumacento. Jacob pensa em tudo!). E eu esperava um tiquinho mais do Jorge Garcia na cena em que – outra reviravolta maravilhosa que me marejou a vista – Jack repassa a ele o bastão de protetor da Ilha antes de dar sua vida pela causa que levou seis temporadas para aceitar. Aliás, que cena fenomenal aquela em que ele diz ao Flockezilla que este desrespeita a memória de John ao usar seu rosto. Jack foi escrito para esse momento, e se seus episódios ao longo da série eram sempre fillers chatos, nesse último ano ele mereceu realmente o posto de protagonista central que estava há tanto tempo guardado para ele. Quanto ao Jorge, ele compensou o deslize nessa cena com duas outras cenas tocantes com Michael Emerson.
Aliás, falando em Emerson, ele e Terry O’Quinn fecharam seus personagens magistralmente. Cada cena com Ben e Locke (e FLocke) nesse episódio é uma aula. O diálogo entre os dois na porta da igreja é possivelmente a melhor cena que eles dividiram na história da série, talvez empatando com a cena final de “The Life And Death of Jeremy Bentham,” sem o impacto violento desta, mas com dois diálogos paralelos acontecendo, um verbal e um só de olhares. Dois gênios em cena. E como negar que Josh Holloway segura a cena com Liz Mitchell em pé de igualdade naquela que foi a mais aguardada e emocionante cena de despertar? Diabos, até a Evangeline Lilly segurou uma cena como “gente grande,” quando tem aquela conversa com Jack no fim do show beneficente. Em seis anos de série, ela nunca tinha me convencido como me convenceu com aquele “I missed you so much.” E o que dizer das expressões de Daniel Dae-Kim e Yunjin Kim quando, já cientes de quem são, conversam com um ainda confuso James Ford no hospital? Poderia rever aquela cena mil vezes.
No geral, The End é um episódio para ser sentido. Tem, sim, sua dose de ação – muito bem dosada e dirigida, diga-se -, de idas e vindas, com o trio Lapidus, Miles e Alpert consertando o avião e parando em cima da hora para Sawyer, Claire e Kate embarcarem, com o confronto final entre Jack-ob e Flocke, e toda aquela autoreferência certeira comparando a caverna com a escotilha da Estação Cisne, mas a essência do episódio está nas atuações, nas resoluções pessoais de cada um dos Losties, nas cenas que os produtores deram para cada um dos membros do elenco, e que a maioria aproveitou muito bem (Até o Dominic Monaghan e a Elizabeth Mitchell, que nem eram mais do elenco fixo, representaram de corpo e alma suas cenas, o que só aumenta minha vergonha alheia pela Maggie Grace e pelo Naveen Andrews). É um episódio sobre a própria série, sobre como nós vivemos intensamente essa Ilha por seis anos, vendo muitos de nossos companheiros se revoltarem e abandonarem a série, vendo a própria série se reinventar para se tornar um projeto fechado, sobre como os episódios bons nos tocaram e os episódios ruins nos revoltaram, e sobre o que fazer agora que as cortinas cairam. Seguir em frente, dizem Carlton Cuse e Damon Lindelof. Aprender com a experiência, guardar dentro de nós mesmos o que ficou de bom, e partir para a próxima. Como temos mais sorte do que os Losties, não precisamos esperar até o próximo passo no ciclo da existência para recuperar os laços perdidos. Estamos todos aqui, bem ou mal. E só esperando a próxima aventura que virá nos tirar o sono e nos fazer viver um pouco da fantasia compartilhada que deixou sua marca em tantas vidas de tantos grupos de amigos.
Como diriam os guardinhas da cena final de O Show de Truman… vamos ver o que mais está passando? 😉
* Rafael publicou este texto em seu blog.