Eu vi um pai de santo marchar: Dr. John ao vivo no antológico Tim Festival 2005 (ao lado dos broders João Paulo Cuenca, Fabio Bianchini e Renato L) foi desses shows cujo impacto artístico transcende o lado lúdico e bate na essência de si, o groove batendo no peito como uma régua moral, o ritmo américo-afro-latino convergindo blues, jazz, soul e gospel para o mesmo núcleo de energia vital, a beleza encapsulada na música. O mestre se foi, mas a música o mantém vivo.
Pode chorar, morreu um ícone de verdade.
Morre um gênio musical que não fazia distinção entre pop e experimental – abraçando tudo
Morre Dick Dale, um dos maiores guitarristas de todos os tempos, que foi muito mais do que o pai da surf music.
Morre o incendiário do Prodigy 🙁
Soube da notícia da partida do André Sakr ainda no domingo de noite e ainda estou perplexo com essa informação. Nunca fui muito íntimo dele, mas aprontamos algumas juntos, principalmente quando ele ainda morava em Curitiba e agitava a difícil cena local ao lado de alguns outros heróis e amigos. Sempre armava várias histórias, eterno apaixonado pelos seus synths, pela pista de dança e pela música, fazendo conexões, desbravando caminhos, cogitando possibilidades. Fica a lembrança de um workaholic da música pop, um embaixador da dance music, um artista inquieto e engraçado, sempre pronto pra encarar outra. Tatuado na memória (e eternizado no clique da Flávia Durante) o show que sua E.S.S. fez na falecida Funhouse (2003? 2004?) em que eu ficava tirando sarro pelo fato de ele estar de terno no calor insuportável do inferninho de outra era (nossas expressões na foto resumem bem). E no ar essa sensação de que ninguém está sempre bem e que é importante estarmos ao lado, darmos as mãos, falarmos uns com os outros e fazermos mais coisas juntos. Lamento não ter passado mais tempo com ele, tenho certeza que sua estada por aqui foi importante pra muitos de nós. Vai em paz, querido. Abaixo sua última publicação no Facebook, um set em que compila diferentes bandas e fases de sua carreira.
Alma d’O Rappa e um dos principais ativistas de nossa música neste século despediu-se deste plano – escrevi sobre sua importância a pedido do UOL.
É triste a partida de Marcelo Yuka neste momento da história do Brasil. Embora sempre associado ao grupo O Rappa e ao incidente que o deixou preso a uma cadeira de rodas pelo resto da vida, o compositor e baterista, que morreu nesta sexta-feira (18), reconstruiu sua vida para além deste trecho de sua biografia. Foram sete anos com a banda e 18 depois de sua saída. E uma de suas maiores frustrações era ver a ascensão do fascismo à rotina de nosso país, normalizando a violência e tirando o ódio do armário dos brasileiros.
Ele é um dos personagens-chave na música pop do fim do século passado que ajudou o legado cultural brasileiro do período ir além das monoculturas industrializadas da axé music, do sertanejo e do pagode, puxando temas importantes para serem discutidos em canções que poderiam ser simples hits vazios. Sua presença no grupo O Rappa, que ajudou a fundar no início dos anos 90, era mais importante do que seu papel como músico ou compositor, cargo que dividia com seus companheiros de banda.
Yuka era um ativista da arte e sabia da importância da política nos pequenos atos do dia a dia. Pertencia a uma geração disposta a contar a história das ruas em canções que vão para os rádios, como a Nação Zumbi de Chico Science e os Racionais MC’s de Mano Brown. Juntos, os três delimitaram um território musical no imaginário musical brasileiro que via o levante cultural de uma nova periferia como o começo de um rascunho de um novo país.
“Da Lama ao Caos” (a estreia da Nação Zumbi em 1994), “Sobrevivendo no Inferno” (o disco-manifesto que os Racionais lançaram em 1997) e “Lado B Lado A” (o disco d’O Rappa de 1999 dirigido por Yuka) criaram, através da música, uma nova consciência de classe e uniram diferentes focos do público ouvinte brasileiro que não se identificava com o romantismo escapista do pop que tomava conta das rádios da época.
“Lado B Lado A” é um dos grandes discos de nossa música e a responsabilidade é toda de Yuka, que colocou em prática o que sabia em teoria: a música poderia ter um impacto na vida das pessoas para além da simples diversão. Nos discos anteriores (o homônimo álbum de estreia, de 1994, e “Rappa Mundi”, de 1996), o baterista já se destacava como o principal compositor da banda, assinando letras que sintetizavam sua consciência social, como “Todo Camburão tem um Pouco de Navio Negreiro”, “Fogo Cruzado”, “Brixton, Bronx ou Baixada”, “Catequeses do Medo”, “Pescador de Ilusões”, “A Feira”, “O Homem Bomba” e a versão da letra de “Hey Joe”, imortalizada por Jimi Hendrix.
Sem as canções de Yuka, O Rappa, que foi montado às pressas para acompanhar o cantor jamaicano Pato Banton em uma turnê em 1993, talvez nem existisse –ou se existisse seria menos relevante que outros grupos de reggae no Brasil, como Cidade Negra ou Tribo de Jah.
Com Yuka, O Rappa era um colosso. Em seu terceiro disco, Yuka ia além e afundava ainda mais o dedo na ferida brasileira, em canções imortais como “Minha Alma (A Paz que Eu Não Quero)”, “Cristo e Oxalá”, “Me Deixa”, “Tribunal de Rua” e “O Que Sobrou do Céu”, transformando O Rappa em uma potência musical de fortes matizes políticas, como alguns dos artistas que inspiraram o baterista, como Bob Marley, Public Enemy e The Clash.
Mas foi drasticamente interrompido quando, no dia 9 de novembro do ano 2000, ao tentar parar um assalto que testemunhara no bairro da Tijuca, no Rio de Janeiro, Yuka foi vítima de uma chuva de 15 tiros disparados contra seu carro. Um deles atingiu uma de suas vértebras, deixando-o paraplégico. Mas nem as balas foram o suficiente para pará-lo e o músico seguiu com a banda, mesmo sem poder tocar mais bateria.
Lembro de uma noite memorável no Recife, no primeiro dia do festival Abril Pro Rock de 2001, num dos últimos shows com o músico – já cadeirante – na banda, quando dividiram o palco com a Nação Zumbi e o grupo anglo-indiano Asian Dub Foundation e a tensão política atingia o mesmo clímax que a potência musical dos três grupos reunidos. Yuka deixou O Rappa naquele mesmo 2001, insatisfeito com o rumo que seus ex-companheiros queriam dar para a banda. Ele lamentava que o grupo, que encerrou suas atividades em 2017, mantinha-se como “a maior banda cover de si mesmo do Brasil”, sobrevivendo de um repertório que o baterista havia composto duas décadas antes.
A partir de então, ele passou a se dedicar a seu projeto solo, que logo virou um grupo. Resumido na sigla F.Ur.T.O. (Frente Urbana de Trabalhos Organizados), ele seguia a fusão de rap, rock, reggae e punk d’O Rappa acrescentando funk, dub e música eletrônica à mistura, ao lado do guitarrista carioca Maurício Pacheco (ex-Mulheres Q Dizem Sim e Stereo Maracanã) e dos pernambucanos Alexandre Garnizé (do grupo de rap Faces do Subúrbio) e Jamilson da Silva (da banda de DJ Dolores Orchestra Santa Massa). Seu único disco, “Sangueaudiência”, foi lançado em 2005.
O F.Ur.T.O. também o engajou definitivamente em causas sociais e ele era uma voz constante na periferia, sempre lutando pelo desarmamento e pelo diálogo junto aos mais desassistidos pelo estado. Sua luta política foi para a prática: além de filiado ao PSOL, Yuka também foi candidato a vice-prefeito na chapa liderada por Marcelo Freixo, em 2012. Antes disso, foi assunto do documentário “Marcelo Yuka no Caminho das Setas”, dirigido por Daniela Broitman, em 2011, quando tentou, sem sucesso, encontrar-se com os assaltantes que lhe fizeram vítima, e depois lançou sua versão para os fatos na biografia “Não Se Preocupe Comigo”, assinada ao lado do jornalista Bruno Levinson, em 2014.
Em 2017, Yuka lançou seu primeiro disco solo, “Canções para Depois do Ódio”, que contava com participações das cantoras Céu e Cibelle e lidava com o tema da depressão, que o atacou após o incidente de 2001. Sempre engajado, detectou o início da onda reacionária no Brasil quando o público vibrava ao ver os bandidos mortos no filme Tropa de Elite, de 2007, e numa entrevista na TV com um ator global que se gabava de não ler nem nunca ter feito teatro. “Ele só teve coragem (de falar isso) porque existe um pensamento burro no ar que o respalda”, disse em uma entrevista de 2014.
Por isso mesmo é triste saber que ele partiu deste plano sabendo que a lógica oposta à que sempre trabalhou chegou ao poder justamente por orgulhar-se de sua abjeção. Fica, no entanto, seu legado.