Fiquei sabendo há pouco sobre a morte de Nick Tosches, que passou para o outro lado no último dia 20, três dias antes de completar 70 anos. O jornalista norte-americano ficou conhecido por escrever sobre música mas levou sua pena para outras tantas paragens. Traduzi parte de seu ótimo Country: The Twisted Roots Of Rock ‘n’ Roll, lançado em 1977, um de seus ótimos livros sobre os primeiros anos do rock’n’roll (a biografia de Jerry Lee Lewis Hellfire, que ele publicou em 1982, é outro deles), que a editora Conrad editou como o pequeno Criaturas Flamejantes, um dos poucos livros da ótima coleção Iê-Iê-Iê, bem como o entrevistei para a Ilustrada há 13 anos sobre seu ótimo A Última Casa de Ópio – e a inspiradora entrevista foi uma desculpa para ele divagar sobre a arte que compartilho com ele: a literatura de não-ficção que também chamamos de jornalismo.
Americano narra tempo esquecido das casas de ópio
Nick Tosches critica mundo massacrado pelo consumismo desenfreado a partir de metáfora do fim das tradições
Livro mescla reportagem jornalística com ficção para falar do modo de vida pós-industrial que destruiu o prazer de ser humano
A milenar arte de se desprender da realidade num luxuoso clube reservado parece ser o delírio mais narcisista da história ou um convite para a completa alienação social, mas nas mãos do escritor norte-americano Nick Tosches se tornou a melhor metáfora para um tempo humano que passou. Assim é A Última Casa de Ópio, curto relato sobre a procura por uma perdida tradição sagrada que funciona como um testamento para um mundo massacrado pelo século 20.
Mais do que uma simples apologia a um hábito lendário que o vazio abarrotado de nossa época tornou tabu, A Última Casa é um libelo individualista com a força juvenil de um Thoureau ou Hakim Bey, mas com sarcasmo e desprezo sábio por tudo aquilo que, apesar de parecer nobre, é supérfluo: a alta cozinha, o culto fresco-intelectual ao vinho, a globalização e o tráfico internacional de drogas como recalques diferentes de um detrator modo de vida pós-industrial que destruiu o sabor de ser humano. Tosches conversou com a Folha sobre este assunto.
A Última Casa de Ópio é, ao mesmo tempo, um romance, uma reportagem e um artigo, com momentos que podem ser verdadeiros ou falsos, além de uma narrativa que é pura digressão.
Verdade. Ficção. Lenda. Literatura. Jornalismo. São categorias, marcas. Nós amamos categorias, amamos marcas. Elas nos impedem de termos de perceber por conta própria. Mas, no fim das contas, dá no mesmo. No caso de A Última Casa de Ópio, direi que tudo é verdade: a verdade da experiência, a verdade do meu coração.
À medida em que você guia o leitor pelo livro, você também descreve a destruição de um velho mundo pelo modo de vida consumista da sociedade ocidental. Que outros prazeres foram esquecidos além do ópio?
Perdemos o maior prazer de todos que é o prazer de sermos nós mesmos. O amor pelo dinheiro, se tornar um rato numa cultura guiada pelo consumo destes tempos, faz de nós fraudes. Quando passamos a maior parte de nossas horas acordados num trabalho, fingindo que gostamos do trabalho, fingindo que gostamos de nosso chefe, fingindo que estamos interessados no nosso trabalho, então o fingimento se torna um estilo de vida. Nós nos tornamos o que T.S. Eliot chamava de “homens ocos”. Quase tudo o que consumimos, quase tudo o que compramos é placebo. Esses produtos de uma cultura consumista vazia é que são as verdadeiras drogas perigosas. Nossa “guerra contra as drogas” deveria ser contra essas coisas.
Vivemos em dias em que até a crítica musical é considerada uma arte.
“Arte” é uma palavra besta. Há muito tempo, homens pintavam imagens em cavernas. Hoje, as chamamos de arte. Para eles, era magia. Agora não temos quase nenhuma magia e tudo é chamado de arte. O pior cantor de música pop é agora um “artista”. De novo, “arte” se torna uma categoria sem significado.
Como as pessoas podem sair da segurança e do conforto da vida diária e voltar a gostar do risco?
Tendo a força e a coragem para não ligar para nada, percebendo que este é o mundo dos aristocratas e não o seu, percebendo que o dom imenso e belo de respirar vivos é tudo o que temos.
Você acha que espiritualidade, drogas e expansão de conhecimento estão conectadas umas às outras ou isso é mais uma bobagem new age?
As drogas não tornam ninguém espiritual. Mas a espiritualidade pode melhorar as coisas. Tudo, das drogas à consciência da brisa no ar. Mas o ópio tem uma certa magia. É uma vergonha podermos comprar toda a heroína que quisermos e ser tão difícil achar ópio. Mais uma vez, isso é culpa de nossa cultura consumista: ópio vale mais dinheiro quando se torna heroína. E também, hoje em dia, todo mundo quer o ritmo rápido da vida. Ópio é uma lenta e luxuosa sedução. Eu posso andar 20 minutos de onde moro e comprar armas, heroína, crack. Mas eu não acho ópio de verdade. Eu não posso nem fumar um cigarro no bar. É ridículo.
E assim começa Criaturas Flamejantes:
“Palavras como realismo, neoclassicismo, minimalismo e Dada são caprichos intelectuais, termos inventados para descrever estéticas. Cada uma delas tem uma definição de fácil aprendizado, uma origem clara e precisa. Leia a palavra Dada e lembre-se que, sim, Tzara a inventou, em 1916, para chocar o mundo. Quer dizer “cavalo de pau” em francês.
Mas palavras como juke, jazz, honky-tonk ou rock-and-roll são indefiníveis. Nenhuma delas foi inventada para o propósito da arte. Cada uma parece ter sua própria alma, de onde a arte evoluiu, como uma obscura e primitiva palavra mágica. Negros veteranos dizem que pararam de tocar o blues porque era a música do demônio. Pastores brancos berram contra a propensão ao pecado do rock-and-roll. E não é impossível que a palavra juke, encontrada originalmente entre os negros da Flórida e do litoral da Geórgia, no final do século XIX, tenha a mesma origem que a palavra dzug em úlof, que significa levar uma vida depravada.”
Livraço, vale muito à pena.
Morre um gigante da música de vanguarda brasileira. Walter Franco fez parte de uma linhagem da nossa música que expandiu os horizontes daquilo que foi cogitado pelo tropicalismo no final dos anos 60. Ao lado de artistas como Tom Zé, Jards Macalé, Itamar Assumpção e Jorge Mautner (que o tempo colocou na infame prateleira de “malditos”, coisa que felizmente está mudando), entortava a canção para formatos impensáveis à época, conseguindo atingir o grande público mesmo fazer experimentos que chocavam e confrontavam os padrões. Autor de clássicos como “Canalha!”, “Respire Fundo”, “Cabeça” e “Me Deixe Mudo”, ele compôs duas obras-primas que mantiveram seu nome entre os grandes, mesmo quando ele estava afastado dos holofotes: Ou Não (o disco da mosca, de 1973) e Revolver (1975). Este último – cujo título é o verbo e não a arma, não há acento – é um dos discos mais importantes da música brasileira do século passado e um dos meus discos favoritos. Walter havia sofrido um AVC no início do mês e estava internado desde então – preocupados, amigos e conhecidos esperavam que ele pudesse se recuperar, o que infelizmente não aconteceu.
Pude conhecê-lo no final de 2017, quando tive a oportunidade de agradecer sua importância ao conceber dois shows em sua homenagem no Centro Cultural São Paulo. Propus que ele tocasse seus dois principais álbuns ao vivo em duas apresentações distintas – a primeira dedicada a Ou Não, a segunda a Revolver. Ele preferiu não reler Ou Não pois é um disco essencialmente de estúdio – Walter chamou Rogério Duprat para arranjar o disco e o maestro preferiu picotá-lo e reeditá-lo, transformando-o em um dos primeiros discos cujo principal material foi concebido após a gravação. Assim, em vez de tocar Ou Não na íntegra, sugeriu que tocasse algumas músicas daquele disco – mais fáceis de tocar ao vivo – e outras de seu repertório que não estavam naqueles dois álbuns. Perfeito, assim contemplaríamos todo seu legado.
O fim de semana que chamei de Viva Walter Franco ainda teve a graça de ter uma das datas caindo em seu aniversário de 73 anos e, capricornianos de janeiro eu e ele, rimos da coincidência numérica: os shows festejavam 45 anos de carreira de um autor nascido em 1945 e o aniversário de 73 anos de um artista que lançou seu primeiro disco em 1973. Antes dos dois shows, o jornalista Thales de Menezes, que estava escrevendo a biografia do mestre, entrevistou Walter em frente ao público. Bonachão e tagalera, Walter terminou o segundo show em êxtase, quase sem conseguir falar direito – cercado pelo público no palco da mítica Adoniran Barbosa (na foto abaixo que até hoje está como imagem de capa de sua página no Facebook). Me chamou no canto, depois de cumprimentar os fãs um a um, enxugou os olhos, ajeitou os óculos e me disse baixinho: “Obrigado Matias, esse foi um dos dias mais felizes da minha vida. Que presente que você me deu.” Chorei junto.
Eu que agradeço seu Walter. Por tudo.
Abaixo, a íntegra dos dois shows.
Morreu Ric Ocazek, fundador do grupo new wave Cars e produtor de discos clássicos do Weezer, Bad Brains, Bad Religion e Suicide.
“True Love Will Find You in the End” – que triste notícia.
Morre um dos maiores nomes da história do samba.
Morre Pedro Bell, autor das capas clássicas da cosmogonia do senhor George Clinton, que inclui discos do Funkadelic, Parliament, Bootsy Collins, entre outros projetos da vasta genealogia do funk.
Lá se vai Sonia Abreu, a primeira DJ mulher do Brasil e um dos principais nomes do nosso rádio. Que tristeza.
Que notícia triste – além de autor de um dos melhores discos dos anos 90 (American Water, dos Silver Jews) e um dos grandes compositores de sua geração, Dave Berman se despede deste plano logo após ter lançado um grande disco, o primeiro em dez anos, sob o nome de Purple Mountains. Abaixo, reproduzo a curta entrevista que fiz com ele, por email, em 1999, justamente quando estava lançando seu disco clássico.
O que é a Nova Abertura?
É um nome de mentira para uma iniciativa real: a rejeição da ironia como uma estratégia artística. No Estados Unidos, a ironia se tornou um gás sufocante que sai da boca de qualquer figura público. A idéia é simples: diga o que você quer, queira o que você diz.
E isso não te torna bastante público? Não é como se despir em público?
É justamente o contrário. Expressar seus sentimentos é uma necessidade que todos têm. Nossa cultura definharia e morreria sem isso. Todos viveriam melhor se pudessem andar sem as roupas na rua.
Você tem algo contra a ficção ou a fantasia?
Precisamos de música e de arte que cubra toda uma área. Fantasia é tão valiosa quanto a dura realidade. O conflito entre as duas é o impulso que nos faz progredir.
E como esta idéia lírica se encaixa com a música? Como você encara a música dos Silver Jews?
Eu gosto de acordes leves e machucados. Sons orgânicos feridos. Resoluções pacíficas. Paz que parece morte, mas que não é morte.
E sua relação com o Pavement? Você sente-se mal ao ficar na sombra do grupo?
Eu gosto, porque as pessoas descobrem a música. Não importa como eles cheguem, pra mim está bom. Se a associação com o Pavement persiste depois que as pessoas me conhecem é um tanto desolador, mas é minha culpa se a música não se destingue como própria o suficiente para ser percebida como própria.
O nome Silver Jews vem de onde?
É inventado. Ninguém se lembra direito. Apareceu num dia e parecia ser o ideal. São apenas duas palavras legais de serem ditas em voz alta.
E o nome do disco, American Water, como surgiu?
Tem uma raça de cachorros que se chama American Water Spaniel. Eu estava levando meu cachorro ao veterinário quando eu vi este nome num pôster sobre raças de cães. Aquela noite eu sonhei com este nome e ele ficou.
E qual sua relação com a crítica? Você lê suas resenhas?
Eu leio as resenhas. Eu não acho que a imprensa musical aqui consegue fazer seu trabalho. Aqui nos Estados unidos não existem críticos com suas próprias vozes. Eles são apenas cafetões do status quo. A escrita é muito semelhante à da publicidade. Eles são uma droga e é uma situação chata.
Por que você não faz shows?
São muitos motivos para serem listados. Não é digno, pra mim. Eu acho que os discos bastam. Turnês interromperiam o ritmo da minha vida. É como uma infância suspensa. Estou tentando viver como um adulto. Não nasci para estar sob os holofotes, num palco. Eu sou o observador, não o observado. É que parece errado para a minha natureza.
O que você está ouvindo hoje em dia?
Blue Öyster Cult, Jerry Jeff Walker, Jackson C. Frank, U.S. Maple e O Clube da Esquina, do Milton Nascimento.
Apesar de inevitável, a notícia da morte de João Gilberto veio como uma pedra no peito – doeu fundo. Ele é o maior nome da música brasileira e talvez o maior de nossa cultura, um autor que inventou um Brasil em que vivemos até hoje, Brasil que infelizmente vemos se despedaçar no momento de sua morte. Pude vê-lo em uma de suas últimas apresentações (obrigado mais uma vez Lillian), no dia 14 de agosto de 2008, no Auditório Ibirapuera, num show perfeito, em que ele visitou minha parte favorita de seu repertório (seus três primeiros discos). Temendo ser flagrado filmando e comprometer aquele contato supremo, liguei a câmera apenas no final, registrando sua despedida.
Mal sabia que estava vendo o primeiro de sua última série de shows. Ele faria mais um show no dia seguinte em São Paulo, no dia 24 no Rio de Janeiro e no dia 5 de setembro, em Salvador. Mal sabia que estava me despedindo de um dos meus maiores ídolos. Obrigado, João.
Ainda abalado pela notícia da morte de João Gilberto, fui chamado pelo UOL para escrever sobre a importância do mestre no momento de sua partida – leia lá a minha análise.