Morre George Romero, o pai dos zumbis, o criador solitário de um gênero dramático inteiro.
Escrevi sobre a importância do mestre que acaba de nos deixar lá no meu blog no UOL.
Todo mundo se lembra de “Eu Sou Boy”, talvez o grande hit new wave brasileiro, sem dúvida o grande hit da new wave paulista. Uma geração lembra de vê-lo apresentando bandas novas que não tocavam no rádio ao vivo em diferentes programas da TV Cultura, outra lembra de vê-lo apresentando clipes de bandas que não tocavam no rádio na MTV. Poucos o conheceram como um dos primeiros punks do Brasil, que reuniu os codinomes de dois dos DJs que discotecavam antes dos shows do Clash para eternizar uma persona que, meio nerd, meio rocker, carregava a cultura da música em seu próprio nome. Mas quem o conheceu sabe o quanto Kid Vinil, que morreu nesta sexta-feira, foi memorável – e crucial para alimentar gerações de fãs de música numa época em que era difícil descobrir qualquer outro tipo de música que não tocasse no rádio.
Para a geração que nasceu com a internet à mão, aplicativos de streaming, torrents de discografias, megastores, lojas especializadas e música digital, os tempos pré-digitais eram uma espécie de Idade Média cultural, especificamente no Brasil. Os poucos sortudos que conseguiam sair do país traziam na bagagem de volta discos que nunca foram vistos na América do Sul, testemunhos de shows de artistas que nunca tocariam – nem tocaram – sequer no rádio brasileiro. Uma época em que música estrangeira era vista como alienante, imperialista e descartável que atrasou a evolução musical brasileira deixando a programação musical do país na mão de poucas gravadoras, rádios e emissoras de TV.
Kid Vinil furava este bloqueio. Era um Napster humano, trazendo notícias do front da cultura pop para um país isolado culturalmente do resto do mundo. Radialista, DJ, jornalista, crítico musical, apresentador, curador, programador musical – o velho Antônio Carlos Senefonte sempre buscava uma brecha para mostrar novidades que ele sempre trazia em primeira mão. Se não eram discos, eram as canções, se não eram as canções, eram as histórias, se não eram as histórias, as ideias. Ele é um dos personagens centrais na história do punk brasileiro e também uma das forças por trás do novíssimo rock que surgiu por aqui durante os anos 80 – quando não era apenas agente, mas protagonista. Liderando o grupo Magazine, ele furou o bloqueio do rádio para falar da vida estressante em São Paulo com os hits “Eu Sou Boy” e “Tic-Tic Nervoso”, além de ter uma música (escrita por Caetano Veloso!) na abertura de uma novela da Globo.
Passados os anos 80, ele entrou nos anos 90 disposto a desbravar a fronteira do rock alternativo e aos poucos cruzava o Brasil para espalhar novidades. Espertamente usava programas de rádio e de TV para mostrar que era possível viver de música longe dos rádios e das TVs, mostrando como funcionavam as coisas na Europa e nos Estados Unidos e traçando paralelos com a novíssima cena indie no Brasil. Na década seguinte foi diretor de lançamentos internacionais da gravadora Trama e seguiu traçando pontes entre a gravadora brasileira e tradicionais selos alternativos estrangeiros.
O conheci pessoalmente quando ele apresentava o programa Lado B, da MTV, logo após a fase clássica do programa, liderada por Fabio Massari. Kid – escudado do guitarrista do Pin Ups, então diretor na MTV Brasil, José Antonio Algodoal – mudou o foco do programa para dar mais atenção às bandas brasileiras que comiam pelas beiradas. Já o conhecia sem conhecê-lo – sua personalidade midiática era uma versão idêntica à sua identidade pessoal. Uma enciclopédia musical, um poço de saber, mas, principalmente, um coração incrível, uma dessas raras pessoas que conectam-se facilmente com todos.
Kid nunca era a alma da festa nem o centro das atenções, preferia ficar no canto, puxando papo para conversar sobre discos, artistas e, claro, sobre a vida. Isso só mudava quando ia para o palco e se esbaldava ao brincar com essa possibilidade que, no fundo, sabíamos que era real: ele era o protagonista de uma história subterrânea que só brincava com os holofotes para sentir o gostinho de estar lá. Como ficou eternizado no título de uma de suas bandas e em sua própria biografia, ele era um herói do Brasil. De um Brasil moderno, plural e musical, que fugia dos centro para valorizar uma cultural essencialmente marginal. Deixa um legado e uma saudade tão grandes quanto sua coleção de discos.
A última música que Chris Cornell tocou antes de morrer citava o clássico de despedida do Led Zeppelin – publiquei o vídeo lá no meu blog no UOL.
Não bastasse ter morrido enforcado exatamente no mesmo dia em que outro suicida do rock tirou sua vida (Ian Curtis, do Joy Division, se enforcou em 18 de maio de 1980), a surpreendente notícia morte de Chris Cornell, vocalista do Soundgarden, veio acompanhada de outra infeliz coincidência, quando ele incluiu trechos da letra do épico “In My Time of Dying”, do Led Zeppelin (cujo título pode ser traduzido como “Na Hora em Que Eu Morrer”) no meio da canção “Slaves and Bulldozers”, última canção que tocou com sua banda, no Fox Theatre, em Detroit, poucas horas antes de se matar. Assista ao vídeo filmado por alguém no público:
O trecho da letra do Led Zeppelin é mencionado a partir dos seis minutos e meio do vídeo – mas isso não queria dizer que ele teria anunciado sua morte, pois Cornell já havia citado “In My Time of Dying”, um clássico do rock pesado, em outras versões desta mesma música.
Outro fã gravou a íntegra do show e é desconcertante ver como Cornell estava bem no palco – nada indicava que aquela seria sua última apresentação ou que ele se mataria em algumas horas.
Eis o setlist deste último show:
“Ugly Truth”
“Hunted Down”
“Spoonman”
“Outshined”
“The Day I Tried to Live”
“My Wave”
“Burden in My Hand”
“Jesus Christ Pose”
“Rusty Cage”
“Slaves & Bulldozers”
Que triste essa notícia…
Resgatei, lá no meu blog no UOL, uma entrevista que Belchior deu em 1976 que captura a essência do Dylan cearense falecido no fim de semana.
“Viver é melhor que sonhar” – se conseguisse escolher um único verso para lembrar da importância de Belchior seria esse, parte do monumento chamado “Como Nossos Pais”, esse pequeno livro de contos em forma de canção eternizado por Elis Regina e também uma das melhores músicas da história de nosso país. Morto neste fim de semana, o ícone cearense finalmente foi eternizado após seu sumiço definitivo, em vez de ironizado como tantas vezes foi em outros sumiços recentes. Inevitavelmente o preço de seus discos em vinil irá disparar, mas felizmente ele pode ver seu clássico Alucinação ser reverenciado como um dos grandes discos da nossa história recente. Como acontece quase sempre, sua morte servirá de gatilho para entusiastas se debruçarem sobre sua obra, neófitos vagarem com mais atenção por sua discografia e para apresentá-lo para pessoas que só o reconheciam pelo nome – ou pelo indefectível bigode.
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Não vou emendar mais um texto sobre sua importância (deixo este a cargo de seu atual biógrafo, o grande Jotabê Medeiros, que escreveu a análise definitiva sobre o autor). Em vez disso, chamo o próprio compositor para falar em seu nome, resgatando uma entrevista que ele deu há mais de quarenta anos, à revista Hit Pop, quando lançava seu já festejado segundo álbum e destrinchava a filosofia daquele verso favorito meu, citado ao início: “O que é velho tem, realmente, que morrer”, reforçava na entrevista. Encontrei-a a reprodução do texto de Eduardo Athayde no ótimo blog Velhidade (vale perder umas duas horas fuçando em suas tags) e transcrevo-a a seguir:
Belchior: O que me interessa é amar e mudar
A cara larga de vaqueiro. A fome insaciável pelo novo. A rebeldia. A provocação. O indiscutível talento. Tudo isso somado, resulta em Belchior, nascido Antonio Carlos Gomes Belchior Fontinelli Fernandes, cearense de 29 anos.
E afirma, apenas, que é um “rapaz latino-americano”. E eu digo que isso quer significar três coisas: não cede, não concede, se impõe.
O seu novo LP, intitulado Alucinação, vai fazer a cabeça de todos os que estiverem atentos à música e principalmente à letra. É o LP do ano, não tenho a menor dúvida. Quem não se tocar, dançou. Reparem no repertório selecionado, todo de lavra sua: “Apenas um Rapaz Latino-Americano”, “Velha Roupa Colorida”, “Como Nossos Pais”, “Sujeito de Sorte”, “Como o Diabo Gosta”, “Alucinação”, “Não Leve Flores”, “A Palo Seco”, “Fotografia 3 x 4”, “Antes do fim”.
Vou pecar pela repetição, mas acho que o trabalho de Belchior se resume no verso: quero que meu cantotorto feito faca corte a carne de vocês. O torto, no caso, talvez se reflita na simplicidade do fraseado musical. Mas o afiada da faca pinta em cada um dos versos que ele faz, ele que é um letrista da pesada.
É esse Belchior que vem com tudo – seu canto torto e sua lâmina afiada – nesta entrevista concedida com exclusividade para o Hit-Pop. É um papo comprido, do geral ao particular, sempre denso de ideais e ideias. Eu dou fé.
É possível rotular sua música?
Olha. Fundamentalmente, eu faço música nordestina contemporânea. Transo de xaxado, xote, baião. Mas não dispenso o elemento eletrônico e tampouco as influências que recebi. E foram várias, variadas: Luiz Gonzaga, Beatles, cantadores de feira, ciganos nas estradas do Ceará, música de igreja. Some esses elementos todos e você terá, digamos, uma arte mestiça…E a latinidade? Qual é, de fato, a dimensão deste (novo) elemento musical chamado som latino-americano ou influenciado por ele?
O que me impressiona é a possibilidade de nós, latino-americanos, podermos nos comunicar com uma linguagem nova, comovente, revolucionária. Aliás, o tango argentino é a autêntica linguagem das minorias latino-americanas. É claro que não sou contra o blues, forma de expressão dos negros americanos. Nem sou contra o samba ou contra o rock – um grito da juventude. O que eu não gosto – de músicas ou letras apenas contemplativas, passivas. Eu falo – e devo falar – dos enganos que nós, os jovens, sofremos por ver nossas esperanças caírem por terra. Assim, não abro mão da agressão. Acho que é preciso fazer um trabalho irreverente e insolente. Caso contrário, vira aquele negócio de música de fundo de restaurante, sabe como é? As pessoas estão comendo e a arte serve apenas de relaxante, entretenimento. Facilitador da digestão.
Se o meu canto vai chegar a todas as pessoas, eu não sei. O que eu sei é que mantenho meu trabalho sob controle absoluto. Eu digo: “sou apenas um rapaz latino-americano sem dinheiro no banco. Por favor, não saque a arma no saloon, eu sou apenas o cantor…”Você imagina ter sua obra imortalizada, assim com os clássicos da música popular brasileira?
Não me interessa, como artista, produzir e criar pensando na eternidade da obra. Eu quero dar toques, e isso é fundamental para mim, pois o homem é o fim e o objetivo de si mesmo. Eternidade não é um dado humano, comum. Aliás, em qualquer nível é uma farsa, uma mentira. Sou contra. Eternidade é o tédio dos deuses, que gostariam de ser mortais. Minha ligação é com a terra, ouça: “Eu não estou interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais. Longe o profeta que a Laranja Mecânica anuncia. Amar e mudar as coisas me interessa mais!” Essa é a minha proposta. Isto é, suportar o dia-a-d-a e a experiência com coisas reais.Seu novo LP está na praça, seu talento é reconhecido, a crítica elogia. Como você encara o sucesso?
O sucesso me interessa porque me dá possibilidade dedizer e cantar até chegar às pessoas. O disco é a chance que o artista tem, em se oferecer integralmente, com suas ideias, mensagens, reflexões. Neste momento, estou montando minha banda, para correr todo o Brasil. Já estou com o Liminha, o Áureo de Souza, o Rick, só busco um tecladista.
O meu disco tem um título que eu gosto, Alucinação. Sabe, viver é mais importante que pensar sobre a vida. É uma forma de delírio absoluto, entende? A alegria, a ironia, a provocação, são tão importantes quanto sorrir, brincar, amar. Acho importante provocar. Um trabalho novo só aparece através da agressividade. Eu estou tranquilo quanto às consequências do meu trabalho. Acho importante que ele cause polêmica. É para desafinar mesmo! Desafinar sempre, que esse é o desafio. Hoje em dia, já não se pode mais criar sem correr riscos. E eu quero enfrenta-los. Minha expectativa é para os jovens compositores. Sobre eles, recaem todas as dificuldades pra fazer qualquer coisa. E também costumo tomar o trabalho de compositores mais velhos como marco para começar tudo de novo. Artista reconhecido é importante, claro, mas no momento eu quero dar as mãos a Fagner, Alceu Valença, Luís Melodia, Ednardo, Marcos Vinícius… A todo o pessoal dessa geração violentada. Temos que encontrar uma forma de mostrar que estamos vivos. E isso só se consegue fugindo do convencional, optando definitivamente pela juventude. A cultura precisa se rejuvenescer sempre voltada para a nossa realidade. O que é velho tem, realmente, que morrer. Até agora, com raras exceções, a música tem sido uma forma artística com tendências à fuga, à evasão. Meu trabalho é uma colocação do real, pois nada muda por si mesmo…Essas transas de misticismo, ioga, oriente… Elas têm significado pra você?
Fui criado comendo boi com abóbora, no interior do Ceará. Por isso, tenho a mente aberta para ver se existe algo, nisso tudo que você fala. Mas sou completamente desinteressado. Não acredito, não quero nenhuma nova teoria que me decepcione depois. Sou um cara mais preocupado com toques imediatos, do presente. A arte não pode viver de ilusões. Sinto necessidade de falar das aspirações imediatas: dormir, comer, sentir alegria, dor, prazer, tristeza, coisas claras, entende? Não sou, de fato, místico. Sou mal comportado por opção: “Não me peça que eu lhe faça uma canção como se deve: correta, branca, suave, muito limpa, muito leve. Sons, palavras, são navalhas e eu não posso cantar como convém sem querer ferir ninguém.”Como é que foi sua vinda para o sul, a barra que você encarou?
Minha família é nordestina, patriarcal. Somos 23 irmãos, vendo com grandeza e honradez o trabalho que fazíamos com as mãos. Aos 16 anos, eu não aguentei a barra, saí de casa, tentando buscar uma alternativa… Não vejo mal nenhum em sair por aí, botar o pé na estada. O nordestino tem a alma de emigrante, é uma ave de arribação, como diz Luiz Gonzaga, em “Asa Branca”. O jovem nordestino quer, um dia, voltar para lá, mas sempre tem necessidade de sair. Agora, quem põe o pé na estrada precisa estar preparado para aguentar a barra. De 1971 até hoje, o negócio não foi fácil. Dormi em muita calçada. Segurei de perto a barra da Lapa (RJ). Senti fome e frio. Fiquei de pires na mão, nas salas de espera das gravadoras. Hoje, comparando, digo que fazer beicinho porque o papai não deu grana pro cinema é a mais completa infantilidade. Não passa disso. As soluções estão dentro da gente, é lá que a gente deve ir buscá-las. É como digo em “Fotografia em 3 x 4: “Em cada esquina que eu passava, um guarda me parava, pedia meus documentos e depois sorria, examinando o 3 x 4 da fotografia e estranhando o nome do lugar de onde eu vinha.”Qual a alternativa que você sugere?
Cada um tem a sua. Pelo amor, sexo, conhecimento, experiência de vida, o jovem, isolado, terá tempo de refletir e encontrar o seu próprio caminho. É o toque que eu dou, por exemplo, na música “Como o Diabo Gosta”.
Valeu, rapaz.
Mais do que um grande diretor, Jonathan Demme, que morreu nesta quarta, também foi um dos grandes diretores de vídeos musicais – em especial de um favorito pessoal, o impressionante Stop Making Sense, dos Talking Heads, que pode ser assistido na íntegra neste vídeo abaixo:
https://www.youtube.com/watch?v=EoUKMRtv0Fk
Grande perda.
Escrevi sobre a importância de Chuck Berry lá no meu blog no UOL.
Há referências sobre o termo “rock and roll” nos anos 20 e desde antes da quebra da bolsa de valores norte-americana em 1929 que brancos e pretos caipiras começavam a aproximar o country e o rhythm’n’blues pelo ritmo frenético e pelo rebolado na dança. O groove aproximou duas etnias que viviam separadas e a eletricidade uniu dois cânones musicais distintos em uma novidade que só foi encontrar eco comercial nos anos 50. E por mais que Elvis Presley tenha sido o principal nome a fazer aquele novo estilo musical transformar-se em fenômeno, foi Chuck Berry, que morreu neste sábado aos 90 anos, quem começou aquilo tudo.
Não dá para dizer que é o pai do rock (talvez o diabo, mas isso é outra história), mas Chuck Berry sem dúvida estava na sala de parto. Elvis já havia dado seus primeiros passos fonográficos, mas o primeiro rock a se tornar um sucesso nacional foi “Maybellene”, em 1955, um ano antes de Elvis Presley tornar-se mania. Na verdade, aquele primeiro single tinha tudo que caracterizaria um gênero que ainda não tinha sido batizado.
Lançado pela Chess Records a partir de uma dica de Muddy Waters, o disco sintetizaria tudo que seria associado ao rock’n’roll nos anos seguintes: ritmo frenético, canções curtas e rápidas, foco na juventude, no consumismo e em símbolos de status, o timbre sujo da guitarra elétrica, um riff de apresentação. A letra descreve uma perseguição entre dois carros – um V8 Ford que perseguia um Cadillac Coupe DeVille – e a história de um amor traído. Chuck Berry, inspirado por ídolos do entretenimento negro como o band leader Louis Jordan, o guitarrista Charlie Christian (o primeiro guitarrista elétrico) e o próprio Muddy Waters, adaptou um velho country do final dos anos 30 (“Ida Red”, imortalizado por um dos primeiros grupos de rock antes da invenção do gênero, Bob Wills and his Texas Playboys) para uma nova cultura que ele começou a perceber nascer a partir do pós-guerra: consumista, competitiva, jovem e querendo diversão. Viu o nascer do adolescente como público-alvo e formatou seu blues para aquele novo público. Acertou na mosca. “Maybellene” vendeu mais de um milhão de cópias só no ano que foi lançada.
Chuck Berry preparou o terreno não apenas para Elvis Presley, Buddy Holly, Little Richard, Fats Domino, Jerry Lee Lewis, Johnny Cash e outros pioneiros da primeira geração do rock, mas também deu a cartilha de mão beijada para toda a segunda geração – é impossível imaginar a invasão britânica dos EUA formada por Beatles, Rolling Stones, Animals, Who e Cream sem a figura de Buddy Holly. Quase todas as bandas da primeira safra dos anos 60 gravou versões de clássicos de Chuck – como “Roll Over Beethoven”, “Rock and Roll Music” e “Johnny B. Goode” – como também foram influenciados por sua técnica ao instrumento. Ao praticamente forjar o conceito de riff de guitarra – a frase inicial que faz o público reconhecer a música antes da entrada da canção em si -, não é exagero dizer que Chuck Berry é o primeiro guitar hero da história.
E também um dos primeiros bad boys da cultura pop. Ao contrário de Elvis, Chuck não escondia sua má índole e, bom malandro, fazia que não era com ele. Mas foi enquadrado ainda na adolescência por assalto a mão armada e inevitavelmente entrava em confusões envolvendo dinheiro, armas e a polícia. Gangsta avant-la-lettre, ameaçou John Lennon a dar-lhe os créditos por “Come Together”, que teria sido surrupiada de “You Can’t Catch Me”, e enquadrou os Beach Boys quando ouviu sua “Sweet Little Sixteen” em “Surfin’ U.S.A.”. Não levava desaforo pra casa e não temia por sujar sua reputação.
Sua fama de mau fazia parte de seu senso de showbusiness. Ele sabia posar para a foto, dar seu melhor sorriso, inventou o “passo do pato” para sublinhar seus solos de guitarra ao vivo. Um popstar que construiu a própria reputação e viveu como quis. Não à toa suas músicas e mensagens sobreviveram icônicas em momentos centrais do pop moderno, como no Pulp Fiction de Quentin Tarantino, na principal cena de De Volta para o Futuro ou no primeiro disco dos Simpsons. Chuck Berry foi quem apresentou o rock’n’roll para as massas – pioneiro ao forjar um gênero musical que tornou-se um estilo de vida.
Ave, rock’n’roll!
Vi num post do Magrão compartilhado pelo Nuts e não botei fé – mas era verdade: Alex Cecci, o Don KB, havia sofrido um infarto fulminante na praia de Maresias neste sábado e não resistiu. Morreu antes de completar seus 50 anos – um produtor, promotor e DJ que ajudou a moldar a São Paulo (e o Brasil) musical que vivemos hoje.
Nos tempos em que as poucas casas noturnas decentes que existiam em São Paulo tinham maior foco em um só gênero musical, o Jive, que fundou com seu irmão Marcio, surgiu como uma alternativa que mostrava que a cultura DJ ia para muito além de um único estilo musical. Depois de começar na Rua Caio Prado, estabeleceu-se em seu endereço mais tradicional – no número 376 da Alameda Barros -, ao lado do tradicional Clube Piratininga, em Santa Cecília. Decorado com as pinturas com motivos tiki do MZK, o clube era gerido por Don KB, que, ao lado do próprio ZK, era seu principal DJ e cuidava da programação da casa. Além de discotecagens de monstros das picapes brasileiras de todas as vertentes (de Nuts ao DJ Hum, do Tony Hits ao DJ Primo, do DJ Patife ao KL Jay), a casa também recebeu shows de artistas que o próprio KB agenciava, como o Mamelo Sound System, Black Alien, Max BO e Speedy e até um dos pais fundadores do hip hop, Afrika Bambaataa, que ele trouxe três vezes ao Brasil – duas em aniversários de sua casa.
Era uma época em que quem curtia rock só ouvia rock, o povo do samba não se misturava com o pessoal do reggae e muitas festas black não tocavam hip hop. Era uma época também que a internet começou a demolir barreiras entre gêneros, quando novos colecionadores de música juntaram-se aos escavadores de sebos de disco fuçando em HDs alheios discografias inteiras e raridades lendárias surgiam gravadas em CD-Rs. Isso ajudou a popularização do samba-rock, gênero até então considerado “menor” no cânone da música brasileira, educou uma nova geração de rappers, DJs e MCs, ajudou a proliferação do dub e pérolas desconhecidas de gêneros diferentes começavam a se popularizar nas pistas. Outros lugares tiveram seu papel nesta transição musical – como o AfroSpot, o KVA, o Susi, o Sarajevo, o Grazie a Dio, o Green Express, o Avenida Club e o Hole -, mas o Jive com certeza era o mais ousado, abrindo espaço até para rock e para uma noite de música da Polinésia.
Se hoje a cultura de São Paulo respira a música dos vinis, vive a conexão direta entre a África e o Brasil, transita bem entre gêneros de diferentes naturezas e seu hip hop vai muito além do gangsta dos anos 90, não há dúvida que isso aconteceu por causa de uma série de transições musicais que tiveram no Jive seu ponto de encontro, seu trampolim, sua inspiração. Claro que Don KB não foi o único responsável por isso – a abertura do Jive foi consequência de uma transformação que ele havia detectado -, mas não dá para dissociar seu nome da raiz desta fase atual.
Pedi pro Nuts escrever sobre a importância dele pra cena:
“Os seus sets ajudaram a revelar o samba rock para um público jovem e até então norte-americanizado, Uma opção fora do circuito tradicional de bailes de nostalgia, eu aprendi aplicar muitas dessas musicas na pista com ele, comecei a visualizar que seria possivel utilizar esses discos que até então estavam só na prateleira. Alguns desses temas marcaram a época do Jive, vejo assim, depois junto com o Zé e DJ Primo tive a oportunidade de fazer uma festa de rap semanal sempre fui bem recebido pelos dois irmãos e equipe todos firmeza, descanse em paz Cabeçada”
Valeu, KB! Seguimos por aqui, inspirados pelo que você conseguiu mostrar e fazer por todos nós.
Segue uma amostra de seu som num set gravado ao vivo há três anos, no DJ Club: