Escrevi lá no meu blog no UOL sobre como a intérprete da Princesa Leia criou o ícone feminista definitivo.
Infelizmente não foi apenas um susto. O ataque cardíaco que Carrie Fisher sofreu em um voo entre Londres e Los Angeles na última sexta-feira a vitimou definitivamente nesta terça-feira, encerrando uma curta mas intensa biografia de uma atriz que tornou-se um dos principais rostos da história do cinema devido a um único papel. Mas por mais que a princesa Leia possa ter sido um fardo em sua própria carreira, ela sempre soube da importância da nobre imaginada por George Lucas. Mais do que um símbolo cultural incontestável, ela foi o ícone definitivo do feminismo para as massas.
Porque a princesa Leia é a grande novidade da primeira trilogia Guerra nas Estrelas. Como Matrix trinta anos depois, o terceiro longa-metragem de George Lucas não era uma história original e sim um imenso mashup de referências e iconografias de ícones pop do passado. O cenário era semelhantes às das aventuras de Buck Rogers e Flash Gordon nos anos 30, Luke Skywalker tinha um quê de Príncipe Valente, Han Solo era um caubói reimaginado no espaço sideral, Obi-Wan Kenobi um novo Gandalf e Darth Vader e o Império ecoavam as tropas nazistas. George Lucas escreveu o filme com a Jornada do Herói de Joseph Campbell debaixo do braço, mas um elemento especifico neste amálgama de citações era completamente novo: a princesa.
Não era mais uma donzela em pânico esperando ser salva por seu herói, mas ela mesma era uma heroína e fazia parte da gangue. E em Carrie Fisher a personagem cresceu significamente – ao ser interpretada por uma atriz nascida no showbusiness (filha do cantor Eddie Fisher e da atriz Debbie Reynolds), a personagem ganhava uma dose de cinismo, arrogância e despeito que nunca estiveram em uma personagem mulher num filme que atingira um público tão grande. Ela era herdeira direta das protagonistas dos filmes da nouvelle vague francesa: Luke, Leia e Han Solo pareciam ser uma versão norte-americana do trio protagonista do Jules e Jim de Truffaut e uma frase do próprio Godard (“Tudo que você precisa em um filme é de uma garota com uma arma”) é a base para sua presença na tela durante os três primeiros filmes da saga Skywalker. E, claro, assistir as transformações sociais do mundo nos anos 60 ainda criança fez que ela levasse aqueles valores para um personagem que iria mudar a forma como as mulheres se viam fora do cinema.
Por isso não entendo o mimimi de machistas desmamados que reclamam da forte presença feminina nos dois filmes mais recentes da Lucasfilm. Rey (do Episódio VII) e Jyn (de Rogue One) são herdeiras diretas do vigor da princesa Leia, de um feminismo que não apenas reivindica a igualdade entre os gêneros, mas que proclama sua autossuficiência, e que ensinou para gerações de meninas que ser princesa (ou melhor, ser mulher) não era sinônimo de uma fragilidade indefesa. E que ensinou para gerações de meninos que as princesas não estão apenas esperando serem salvas passivamente, mas que são parceiras no sentido literal da palavra – alguém com quem você pode contar.
E isso sem abrir mão da beleza e da delicadeza femininas, embora a Leia de Fisher sempre também tenha deixado claro o quanto ficava desconfortável no papel de mulher-objeto. Uma das principais revelações da primeira trilogia é a revelação que Luke e Leia são irmãos – e o filme do final de 2015 deixa no ar a possibilidade de Leia (e talvez Rey) também poder ser Jedi. O Episódio VIII já foi filmado e estreará daqui um ano – e é bem possivel que teremos uma confirmação deste tipo durante o filme. E que deve ser a confirmação do grande legado da atriz: que a mulher pode ser o que ela quiser, pois a Força também está com ela.
Escrevi lá no meu blog no UOL o meu tributo a um dos principais artistas pop da virada do século.
Mais uma vítima deste trágico 2016, George Michael, que morreu ontem, no dia de Natal, aparentemente parece não pertencer ao mesmo panteão dourado que reuniu David Bowie, Prince e Leonard Cohen com o passar do ano. Mas, sim, o jovem de parcos 53 anos é um ícone de semelhante estatura. O que talvez tenha a ver com a natureza de sua musicalidade – compositor refinado e popular ao mesmo tempo (características quase excludentes hoje em dia), ele exaltou as culturas dance e gay e ele elevou a música pop a outro patamar.
George Michael era Pop com “P” maiúsculo – “P” de popular. Músicas reconhecíveis por diferentes gerações, refrões que todos nós sabemos cantar, um buquê de hits que poucos conseguem equiparar. Mesmo com a fugaz dupla Wham!, com quem lançou apenas dois discos ao lado de Andrew Ridgely no meio dos anos 80, já havia deixado sua marca, enfileirando músicas que estão no tecido musical dos anos 80, como a irresistível “Wake Me Up Before You Go-Go”, “Everything She Wants”, a primeira versão de “Freedom”, “Last Christmas” e a imortal “Careless Whisper”, que, por um capricho de algum executivo de gravadora, foi relançada como música solo (abrindo com o clássico solo que, na versão original, entrava só pela metade). Mas a versão original da balada que George Michael compôs aos 17 anos havia sido registrada ainda na dupla que o apresentou ao planeta.
Sua carreira solo, no entanto, não deixa dúvidas. Um rosário de hits que embalou a virada dos anos 80 para os anos 90 com finesse e personalidade, levando para as massas conceitos que, se lançados por outros artistas, talvez não tivessem o impacto que tiveram. “Freedom 90”, “Faith”, “Heal the Pain”, suas versões para “Killer”, “Papa Was a Rolling Stone” e “As”, “Too Funky”, “I Want Your Sex” – é música para não deixar ninguém parado. A imagem que criou para si mesmo – um galã sofisticado que não tinha pudor em descer até o chão – foi o principal veículo para suas canções, mas elas, por si só, eram pérolas que poderiam ter sido escritas por Elton John e Freddie Mercury, dois dos maiores ídolos de George Michael, sem precisar se ater à fórmula ou à estética do rock.
Essa é uma de suas grandes contribuições para a nossa cultura: um compositor vigoroso e requintado que abandonava as amarras do rock em busca de uma nova musicalidade. Ele a encontrou na pista de dança e foi um dos grandes nomes – ao lado de outros titãs dos anos 80, como Michael Jackson, Prince e Madonna – a reinventar a dance music como uma das principais linguagens na transformação musical que aconteceu durante os anos 90. Se esta cultura não é mais vista como subproduto pop ou como uma cena descartável, é inegável a importância de George Michael nesta transição.
Isso sem contar seu papel como baladeiro – e não estou falando de noitadas e sim de grandes composições quase em sua maioria compostas ao piano. Compositor escolado na tradição da canção do século passado, escreveu baladas que, sozinhas, já garantiriam seu status ao lado de nomes como Irving Berlin, Hoagy Carmichael & Stuart Gorrell, Stephen Sondheim, Billy Joel, Leonard Bernstein, Carole King, Elton John e Paul McCartney. “Father Figure”, “One More Try”, “Jesus to a Child”, “Older”, “Kissing a Fool” – música para embalar corações apaixonados ou despedaçados.
E há, claro, toda a questão ligada à sua sexualidade. George Michael passou grande parte de sua carreira escondendo sua orientação sexual, que era clara para seus fãs e detratores – o ícone tornou-se inclusive sinônimo derrogativo para os gays. Não é exagero dizer que ele foi tão – ou mais – importante para seus pares que Madonna. Enquanto a cantora norte-americana abraçava a cultura gay como ponta de uma transformação social que finalmente saía do armário nos anos 90, George preferia colocar-se acima desta discussão, talvez por considerá-la irrelevante para sua carreira. Mas seus fãs sabiam que não era e o abraçaram desta forma, mesmo que ele não quisesse transformar-se em uma bandeira deste movimento.
Talvez tenha sido melhor assim. Deixando sua vida pessoal fora, ele reforçou a importância de sua grande musa – a música. E, com tantos hits e canções grudadas em nosso inconsciente coletivo, talvez ele possa ser resumido na versão que fez em 1990 para o quase-hit “Freedom”, catapultando-a para uma das músicas mais emblemáticas de nossa era. Uma música que foi lançada sem a presença do cantor no videoclipe, contrariando todas as exigências do mercado de entretenimento da época. Saindo de cena, ele deixava a música brilhar sozinha. E a letra, que traduzo
I won’t let you down
I will not give you up
Gotta have some faith in the sound
It’s the one good thing that I’ve got
I won’t let you down
So please don’t give me up
Because I would really, really love to stick aroundHeaven knows I was just a young boy
Didn’t know what I wanted to be
I was every little hungry schoolgirl’s pride and joy
And I guess it was enough for me
To win the race, a prettier face
Brand new clothes and a big fat place
On your rock and roll TV
But today the way I play the game is not the same, no way
Think I’m gonna get me some happyI think there’s something you should know
I think it’s time I told you so
There’s something deep inside of me
There’s someone else I’ve got to be
Take back your picture in a frame
Take back your singing in the rain
I just hope you understand
Sometimes the clothes do not make the manAll we have to do now
Is take these lies and make them true somehow
All we have to see
Is that I don’t belong to you
And you don’t belong to me
Freedom
I won’t let you down, freedom
I will not give you up, freedom
Gotta have some faith in the sound
You got to give what you take
It’s the one good thing that I’ve got, freedom
I won’t let you down, freedom
So please don’t give me up, freedom
Cause I would really, really love to stick aroundHeaven knows we sure had some fun boy
What a kick just a buddy and me
We had every big-shot goodtime band on the run boy
We were living in a fantasy
We won the race, got out of the place
Went back home got a brand new face for the boys on MTV
But today the way I play the game has got to change oh yeah
Now I’m gonna get myself happyI think there’s something you should know
I think it’s time I stopped the show
There’s something deep inside of me
There’s someone I forgot to be
Take back your picture in a frame
Take back your singing in the rain
I just hope you understand
Sometimes the clothes do not make the manWell it looks like the road to heaven
But it feels like the road to hell
When I knew which side my bread was buttered
I took the knife as well
Posing for another picture
Everybody’s got to sell
But when you shake your ass
They notice fast
And some mistakes were build to last
That’s what you get
I say that’s what you get
That’s what you get for changing your mind
And after all this time
I just hope you understand
Sometimes the clothes do not make the manI’ll hold on to my freedom
May not be what you want from me
Just the way it’s got to be
Lose the face now
I’ve got to live
Valeu por tudo George Michael. Descanse em paz.
Morre Andrea Tonacci, um dos grandes do cinema marginal brasileiro – e se você não o conhece, pare tudo o que está fazendo para assistir ao seu clássico Bang Bang, um dos grandes filmes da nossa cultura.
https://www.youtube.com/watch?v=NaVnuFdtgWM
Escrevi no meu blog no UOL sobre a colagem que viralizou reunindo os mortos de 2016 em uma capa ao estilo de Sgt. Pepper’s.
Como resumir um sentimento em uma imagem? Esta é a premissa básica que reúne fotógrafos e artistas em uma busca que pode sintetizar emoções a uma única visão. O diretor de arte inglês Chris Barker coseguiu fazer isso ao reunir, enquanto matava o tempo, fotos de personalidades que haviam morrido em 2016 em uma paródia da clássica capa do disco Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, que os Beatles lançaram em 1967.
“Que ano, pensei, primeiro David Bowie, o Brexit e agora isso”, escreveu em seu site ao revelar que a ideia da montagem surgiu durante a madrugada da apuração do resultado das urnas para a eleição norte-americana, que de uma hora para outra mostrava Donald Trump disparando rumo à Casa Branca. “Muita gente especulou que Bowie era a cola que mantinha o universo reunido. Certamente tem sido um tanto diferente depois de sua trágica morte. Por isso pensei que já que eu teria de ficar acordado por horas e que minha mulher e os filhos estavam dormindo, poderia fazer uma colagem que resumiria como este ano foi estranho. Não era para ser uma montagem de celebridades mortas no estilo de Sgt. Pepper’s, no começou. Na verdade, o elemento Sgt. Pepper’s veio bem depois.”
Entre os integrantes da capa fúnebre estão Prince, David Bowie, Muhammad Ali, Gene Wilder, Kenny Baker (o ator que interpretava o robô R2D2), Anton Yelchin, Leonard Cohen, Robert Vaughn, Maurice White, Alan Rickman, entre outros (além de referências ao Brexit e à eleição de Trump). No meio da capa, o vocalista do Motörhead, Lemmy, surge como um dos mortos neste ano – só que ele morreu ao final de 2015. Barker preferiu manter o erro a consertá-lo, pois acredita que ele tenha sido responsável pela viralização da imagem: “Isso me fez perceber que as pessoas gostam de coisas imperfeitas. Se está perfeito, eles não têm nada a dizer”, escreveu em seu site, “a verdadeira beleza está em permitir que o espectador ser metido a inteligente. Sempre digo que se você quer que seus amigos respondam uma mensagem em grupo sobre um encontro, basta deixar um erro de digitação de propósito e ninguém conseguirá resistir a responder apontando-o. Foi assim que Lemmy me ajudou a me tornar viral.”
O cantor e compositor Daminhão Experiença, o nome mais radical e extravagante da música brasileira volta ao seu Planeta Lamma – este texto no Yahoo (que acho que é do Alex Antunes, me corrijam se estiver enganado) fala mais da importância do sujeito, mais uma vítima de 2016.
Escrevi lá no meu blog no UOL sobre a importância de não lamentar a morte do homem que nos ensinou o que é ser adulto.
Vamos deixar de mimimi. Não venha com “2016, que ano horrível”. Leonard Cohen já havia avisado que estava pronto para morrer. Dias depois voltou atrás, falando que iria viver até os 120 anos, provavelmente depois de ter tomado um puxão de orelha de alguém mais próximo. “Não, não fala uma coisa dessas”, alguém deve ter dito. Mas ele sabia. Estava com 82 anos, ergueu uma trajetória ímpar, cronista da constante consciência da maturidade. Provavelmente olhou para o curto futuro e falou “é isso”. Cumpriu seu papel. Encerrou seu ciclo. Hora de acabar. Tudo bem.
Não o envergonhem com emoticons chorosos, lamúrias autoindulgentes, um luto egocêntrico que parece mais festejar a importância do sofredor do que a obra do morto. A morte é o único destino definido, o outro momento (após o nascer) que nos define como seres humanos. É uma determinação biológica, não escolhe vencedores. Todo fã – ou mero ouvinte – de Leonard Cohen devia saber disso. O fim é inevitável, o que importa acontece antes.
Ouvi-lo dizer que estava “pronto para morrer” me causou uma sensação indescritível de respeito. Não sei se ele sofria de alguma doença terminal ou se estava apenas farto (acontece) de repetir a rotina interminável entre despertares e adormeceres. Olhou para o rastro que deixou em sua existência e suspirou contente. Creio que Lou Reed deva ter passado por sensação semelhante. David Bowie. Prince, embora ainda mais precoce. A sensação de ter deixado sua marca na história da humanidade só deve ser próxima à da criação de tal legado. Como deve ser compor “Heroes”? “Purple Rain”? “A Perfect Day”? “Suzanne”? “Bird on a Wire”? I’m Your Man”?
Cohen, temporão, começou sua carreira fonográfica aos 34 anos, idade que qualquer diretor artístico, empresário ou produtor desaconselharia um início de carreira na música pop. Acadêmico, romancista e poeta, já havia publicado vários livros no início dos anos 60 e, depois de desistir das letras impressas, resolveu abraçar a canção. Associou-se à Factory de Andy Warhol e no mítico 1967 de Sgt. Pepper’s, The Piper at the Gates of Dawn, do primeiro do Velvet Underground, dos Doors e de Jimi Hendrix, lançou seu disco de estreia, o irretocável Songs of Leonard Cohen, que dizia com seu timbre essencialmente masculino, embora não másculo, que era hora de começar a amadurecer.
Sua grande contribuição à história do pop é justamente a consciência da maturidade, algo que artistas contemporâneos começavam a tatear. Os Beatles, Dylan, The Who, os Kinks, o próprio Velvet Underground e as Mothers of Invention de Frank Zappa olhavam para um futuro próximo à medida que deixavam a adolescência. Mas Cohen já vislumbrava os quarenta anos e sua base literária contemplava um futuro em câmera lenta, de timbre áspero, sonoridade gasta. Cohen dava adeus à eletricidade, à pressa, ao ritmo frenético e ao refrão inevitável. Cantava como contava, cronista de seu tempo, flertando com o cinema (Robert Altman nos anos 70) e a TV (Miami Vice nos anos 80, True Detective nos 2010) sem nunca perder o prumo de sua identidade musical. Sempre cético e cru, pavimentou o caminho para autores modernos do calibre de Tom Waits, Nick Cave, Patti Smith, Bruce Springsteen, Cat Power, Jeff Buckley, Ben Harper, Father John Misty, Laura Marling, Elliott Smith, Elvis Costello e PJ Harvey.
Nos anos 80 compôs seu grande hit, “Hallelujah”, eternizado por vozes tão diferentes quanto Jeff Buckley, Rufus Wainwright e John Cale, que lhe pagava as contas ao figurar em hits modernos como Shrek e a versão cinematográfica de Watchmen. “Hallelujah” era a “Imagine” de Cohen, a versão mais adocicada dele mesmo que lhe dava liberdade para compor o que quisesse.
E manter-se com o cigarro, uma dose de destilado, o terno bem cortado, a penumbra, dores e amores. “Primeiro, Manhattan; depois Berlim” – o tom grave e solene cantava delírios de grandeza, dores de crescimento, seduções latentes, devaneios arruinados, desilusões amorosas, fins de relacionamentos. “Vida que segue”, parecia murmurar cúmplice ao ouvinte, entornando outra dose gorda de scotch.
Ao final de sua vida, compôs discos que, vistos em retrospecto, soam como manifestos e epitáfios simultâneos: Old Ideas, de 2012, e You Want it Darker, lançado há pouco mais de um mês. Discos que, sabendo do capítulo final de sua biografia, ganham um contexto e uma profundidade a mais, como o último capítulo de David Bowie, Blackstar.
Não há, no entanto, tristeza, nem lamento, nem arrependimento, nem dor. Velho desde jovem, Cohen morre tão enfático, decidido e sutil quanto em seus primeiros discos, uma alma quase fantasmagórica que agora vive para sempre em uma curta (14 discos em quase meio século) mas profunda obra.
Por isso não chore. Não ceda às emoções. Não entregue-se ao pessimismo. A morte de Leonard Cohen era tão certa quanto foi seu nascimento. Não sofra por um futuro sem ele, iríamos viver isso. Aproveite este último capítulo para celebrar sua existência e comemorar a sua própria maturidade.
Pernambuco se cala com a passagem de um mestre. Lá se vai o mítico “Baile Betinha” para o outro lado. Saudades do carnaval de 2006…
Conhecido pelo bordão de seu arquetípico antiprograma de TV Comando da Madrugada (“Vem comigo!”), Goulart de Andrade ensinou a mais de uma geração o que era comunicação experimental, como é que dava pra tirar leite de pedra dos assuntos mais improváveis, que jornalismo pode ser entretenimento sem deixar de ser jornalismo (e vice-versa), que nenhum assunto é tabu e que o submundo é muito maior do que a vida que aparece na TV. Um mestre que viveu a vida intensamente e soube aproveitar das brechas para passar lições e revelar talentos – e que nos deixa mais cedo que esperávamos. Pude participar de um longo papo com o velho Goulart no Resfest de 2007 (valeu Clarice e Farinha!), quando o entrevistei ao lado do Tas. Felizmente há registros da conversa, feita pela querida Alê Marder. São apenas poucos minutos do papo, mas servem para mostrar sua importância, que ainda não foi medida.
Como o diretor revolucionou a TV, a música e o jornalismo ao sair de cena e como esta estratégia o torna vivo para sempre – escrevi sobre este incrível legado em minha coluna de maio da revista Caros Amigos.
Ele era mesmo baixo e chamava a todos por este seu apelido – ou por variações dele. “Baixo, baixa, baixinha, baixinho” – não importava a estatura de seu interlocutor. Este quase sempre o via de cima, pois Fernando Faro, que morreu no final do mês de abril, sempre se sentava próximo ao chão quando ia entrevistar seus convidados.
Era um esperto macete de cena que quebrava completamente o gelo das apresentações de seu programa Ensaio, que fazia na TV Cultura desde o início dos anos 1970, depois de lançar o programa na falecida TV Tupi na década anterior. Ao sentar-se um nível abaixo de seus entrevistados, Faro – ou Baixo, como todos o conheciam – quebrava a defensiva típica erguida por quem faz música quando chamado para falar sobre sua vocação. Aquilo tirava a solenidade do estúdio, fazia músicos se esquecerem das câmeras, deixava a atmosfera mais casual, branda, leve – e a música fluía melhor, mais emotiva, mais próxima e mais quente.
E este nem era seu grande truque. Seu Ensaio entrou para a história quando ele mesmo se colocou fora das câmeras. E até dos microfones. Criador e apresentador do programa, Faro não aparecia. Nem sequer sua voz. Muito menos quando perguntava. As perguntas – que ele entendia como redundantes e achava que causavam certo ruído no fluxo da fala de seus convidados – não eram ouvidas durante o programa. Víamos os músicos assentindo com a cabeça, calados ouvindo as colocações do mestre de cerimônias, mas em momento algum víamos quem perguntava ou ouvíamos o que era perguntado. A questão vinha embutida na resposta, por vezes literalmente, mas em muitos casos só entendíamos a pergunta com o desenrolar da explicação dada pelo artista.
A ausência das perguntas em um programa de entrevistas era a marca registrada de seu Ensaio, mas não era a única. A ambientação meio escura, quase sempre com sombras carregadas, mesmo com as cores da TV colorida, davam um clima preto e branco que conversava tanto com o cinema europeu do final dos anos 1960 quanto com o cinema da Boca do Lixo paulistana. As imagens ganhavam profundidade ao revelar as minúcias de seus entrevistados. Músicos olhando para o lado, quase nunca olhando para a câmera, cobertos por uma escuridão acolhedora, que, como a posição de Faro, também tornava o clima do estúdio menos hostil e mais familiar. Os closes nas mãos dos instrumentistas, na textura da pele de seus entrevistados, nas rugas e recôncavos faciais, nas rachaduras dos lábios dos cantores. Havia uma proximidade intensa entre a câmera e seu foco que aproximava o telespectador do entrevistado. Não era um show, não havia maquiagem, figurino nem efeito especial – eram pessoas tocando em sua própria casa.
Havia ainda a amplitude do leque musical de Faro, um rígido crítico musical que não precisava de adjetivos ou notas para mensurar o trabalho alheio. Bastava ser chamado para o Ensaio para entrar num enorme panteão que recebia sambistas, chorões, sertanejos, roqueiros, bossanovistas, virtuosos, rappers, intérpretes e instrumentistas sem a menor distinção de hierarquia ou degraus de importância. Só o fato de estar lá já significava fazer parte de um grupo específico designado pela escolha do dono da festa. Tanto faz se fosse Cartola, Elis Regina, Los Hermanos, Racionais MCs e inúmeros artistas quase anônimos que o tempo esqueceu – Baixo tratava-os todos da mesma forma.
E também havia a longevidade do programa. Foram quase cinco décadas ininterruptas de shows semanais, ladeando artistas em ascensão que se tornaram os mestres de hoje em dia com novatos que despontaram para o anonimato, músicos de imenso apelo popular ou queridinhos da crítica musical, veteranos que não foram celebrados em seu auge e conjuntos instrumentais. A estética, o estilo, a mensagem que o meio passava, tudo se mantinha quase idêntico por todos esses anos. Essa longevidade na TV brasileira necessariamente depende de um apresentador carismático para esticar-se por décadas (como Fausto Silva, Sérgio Groissman ou Inezita Barroso) e são raros os programas que se esticaram por tanto tempo sem depender de um rosto conhecido ou mesmo mantendo a própria assinatura.
O foco no entrevistado, o clima intimista, a estética como assinatura, a amplitude de gêneros e a firmeza em manter o próprio trabalho eram as qualidades intrínsecas ao Ensaio, que é o grande legado que Faro nos deixa. Agora interrompido por questões biológicas, todo o acervo do programa – que já começou a ser lançado em DVD, tem um próprio canal no YouTube, mas não está inteiro disponível on-line – surge como uma imensa obra única, uma herança monumental sobre uma das principais contribuições da cultura brasileira para o mundo, a música.
A sacada de Faro para entrar para a história da TV, do jornalismo e da música brasileira foi sair de cena. Décadas antes de Quincy Jones colocar uma plaquinha na porta do estúdio de gravação do encontro de popstars dos anos 1980 USA for Africa, em que pedia para os intérpretes da música “We Are the World” (figurões do quilate de Michael Jackson, Bob Dylan, Stevie Wonder e Bruce Springsteen) deixarem seus egos do lado de fora do estúdio, Faro deixou o próprio ego fora da história que queria contar para que seus personagens brilhassem mais que ele.
É claro que sua ausência será sentida, mas não vista – como era em sua vida. Seu legado é um olhar lúdico sobre a diversidade e profundidade emocional e viva da música brasileira e seus autores e intérpretes, deixando que estes falassem por si. Mesmo morto Faro continuará fazendo as perguntas que ninguém ouve – e seu Ensaio continua mesmo que não seja mais gravado.