Quem assiste Watchmen?
Afinal de contas, é só um filme
Quem são esses caras? Não estou falando dos Watchmen, embora a pergunta seja cabível – e a resposta é não. Não existe um grupo de super-heróis chamado Watchmen. O termo só une os protagonistas quando somos mostrados às cenas do final dos anos 70, quando a população americana, revoltada com a polícia paramilitar que os super-heróis haviam se tornado, passa a questionar, na marra, os mascarados. E é em uma pergunta pichada nas paredes (“Quem vigia os vigilantes?”) que o nome da HQ aparece, nunca em primeiro plano, sempre com alguém passando em sua frente.
O título Watchmen, como a própria série original – guarda uma série de sentidos paralelos. Além dos “vigilantes” da pichação, o nome também faz referência ao grupo de heróis surgido nos anos 30 e 40, os Minutemen, ao mesmo tempo em que alude à infância do jovem Jon Osterman e seu posterior entendimento da realidade. Osterman, devido a um acidente nuclear, foi transformado em energia pura para, mais tarde, se recompor e renascer como o Dr. Manhattan, o único ser (humano?) com superpoderes de fato. Filho de um relojoeiro, ele aprendeu o ofício com o pai para, depois que se transformasse num cara azul feito de luz sólida, usasse o aparelho relógio em sua metáfora sobre o tempo e o espaço – cada engrenagem posicionada exatamente no lugar onde deveria estar para que o todo funcionasse. Esse relógio metafórico é nos mostrado como a homenagem de Moore à Fortaleza da Solidão do Super-Homem – isolado, Dr. Manhattan usa a areia do deserto marciano para criar um enorme fractal tridimensional de vidro em movimento, seu próprio relógio ficcional. Assim, Moore conecta os dois sentidos do termo “Watch” – relógio e vigia – e entende os super-heróis (ou, se tirarmos a metáfora, as pessoas que mandam no resto do mundo) como engrenagens necessárias para fazer o relógio da humanidade continuar funcionando. Junte isso e temos um dos temas da série, espelhado nas engrenagens mostradas no trailer e no relógio do fim do mundo – que no filme ganha importância extra desnecessária.
Mas eu me referia aos atores – quem são esses caras que estão nos papéis principais de Watchmen? O mais conhecido deles é Billy Crudup (quem?) que faz o filho no Peixe Grande do Burton e o guitarrista do Quase Famosos. Todos os outros são literais anônimos, sem carreira relevante em Hollywood: o Comediante é ator regular em Supernatural e Grey’s Anatomy, o papel mais memorável de Laurie é a loirinha casada com of freak no primeiro filme da dupla maconheira Harold & Kumar, o ator que faz Adrian Veidt veio do teatro, Rorschach era ator-mirim que teve a carreira revalorizada em Little Children e o segundo Coruja é o sujeito torturado por Ellen “Juno” Page em Menina.Má.com. Percebem um padrão de cultura pop de nicho nas conexões com o elenco? Acha pouco? Pois o primeiro Coruja é um namorado psicólogo da Elaine de Seinfeld, o ator que faz Dollar Bill é velho conhecido da saga Stargate e o ator que faz Moloch é ninguém menos que o mesmo sujeito que personificava Max Headroom. E para os fãs de Seinfeld há ainda uma pequena surpresa…
Isso sem contar o excesso de referências e reencenações históricas, que ao mesmo tempo em que conta a História com H maiúsculo (o assassinato de Kennedy, Fidel e a União Soviética, o Vietnã, o homem na Lua) consagra a cultura pop como a verdadeira cultura desses tempos – Lennon, Yoko, Rockwell, a disco music e, claro, Andy Warhol. Num mundo em que super-heróis fantasiados e coloridos são alçados ao patamar de arquétipos mitológicos (e esse mundo é o nosso, não o de Watchmen), é inevitável constatar que o rock’n’roll, a música pop e o cinema dos anos 70 sejam mais importantes para o final do século 20 do que todas as seis artes tradicionais juntas. O filme peca ao não incluir quadrinhos nessa homenagem – uma das poucos referências à nona arte é quando um dos personagens explica que ele não é “um vilão de histórias em quadrinhos”.
As referências históricas – e pop – continuam filtrando o filme por outro aspecto: Watchmen é uma festa anos 80, sem medo de ser feliz e chegar tarde no trabalho no dia seguinte. E tome amarelo-limão, rosa-choque e neons espalhados e espelhados pelos becos e poças no asfalto, fumaça que parece gelo seco, glow natural saindo das cores dos personagens e das explosões e uma trilha sonora que ousa reposicionar Tears for Fears como muzak em uma cena pra lá de ambígua. A trilha sonora é outro pequeno achado. Embora guiada pelas citações de Alan Moore (em certo sentido, ele é o discotecário do filme, mostrando que a força do DJ também é narrativa), a escolha das músicas consegue casar cenas fortes e canções manjadas criando painéis audiovisuais que são os grandes trunfos cinematográficos de Watchmen. Dylan e Hendrix soam majestáticos, grandiosos, enquanto Nena, Nat King Cole e Simon & Garfunkel transcendem seus próprios clichês e se relêem de forma quase cínica, como o quadrinho original. O único ponto fraco é a música que encerra o filme, uma versão sem graça do My Chemical Romance pra “Desolation Row”, do Dylan. Deixa aparecerem as versões reeditadas pelos fãs que alguém coloca a música original no lugar – com a maior duração possível.
A ação, que é mínima no quadrinho, foi ampliada para dar dinâmica e fôlego ao filme, que se arrasta demais em sua primeira parte para correr demais na segunda – dá pra ver exatamente em que ponto o diretor abriu mão para desengordurar a meia hora de filme pro lançamento comercial. E as atuações – fora uma – não chegam a comprometer. Matthew Goode se esforça, se esforça, mas é um Veidt pífio, sem densidade, sem o drama necessário para o papel e sem a panca de Lex Luthor (ops) civilizado que o original tinha. O Ozymandias do filme é quase um ex-integrante de boy band que foi pro mundo dos negócios, o equivalente pop branco do Jay Z. Ele tira onda, mas não funciona.
Outros, passam: Malin Akerman é uma Laurie OK, Crudup não é o Manhattan perfeito mas segura o papel sem parecer ridículo (o que já é um pequeno trunfo, convenhamos), Carla Gugino está bem como ex-vedete e o mashup de Javier Barden com Robert Downey Jr. que faz o comediante parece uma caricatura do personagem original – o que não soa mal. Há um subtexto que indica até que ele seria o Elvis deste universo bizarro, ao recriar a famosa foto de Elvis com Nixon – outra caricatura em movimento, no filme.
Mas dois atores – que conduzem a história – salvam o filme. Jackie Earle Haley é um Rorschach de Método, o cara afundou no personagem e virou ele, com ou sem máscara. E Patrick Wilson faz o Bruce Wayne da vida real, cheio de rugas de preocupação e expressões de autopiedade, um cara fascinado pelo que lhe fez tornar-se um herói (pássaros, aviões, ciência) a ponto de frustrar o pai magnata. No fim, a opção por anônimos talvez tenha sido crucial para o filme, pro bem e pro mal.
E eu não terminei de falar do filme ainda…
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