O rolêzinho de Renata Simões por Fortaleza

O antigo Hotel São Pedro, inspirador do quinto disco do Cidadão, Fortaleza, visto da varanda do hotel entre pancadas de chuva, fumaça e planos mirabolantes

O antigo Hotel São Pedro, inspirador do quinto disco do Cidadão, Fortaleza, visto da varanda do hotel entre pancadas de chuva, fumaça e planos mirabolantes

Renata Simões, que fez a mediação da primeira edição do Spotify Talks desse ano, é minha comadre velha de guerra e pediu licença para publicar aqui no Trabalho Sujo mais um de seus Rolezinhos, a série de matérias que retratam cidades e lugares e sua relação com as pessoas e com a cultura – como ela explica melhor aqui. Desta vez o destino foi Fortaleza, quando do acontecimento do cada vez mais importante festival Maloca Dragão, que, na edição deste ano, recebeu show do BaianaSystem, homenagem-relâmpago ao recém-falecido Belchior (a notícia, como conta Renata, chegou no meio da edição), da primeira celebração do Cidadão Instigado de seus 20 anos de travessia, em sua cidade-natal e do projeto Praia Futuro. E eu sou besta de não deixar? Fala Renata!

Fortaleza te recebe com 27 graus de temperatura às duas da manhã. O mar do outro lado da janela do hotel promete um frescor que o clima não entrega. Estou na cidade para o Maloca Dragão, festival de artes integradas do Centro Cultural Dragão do Mar (melhor nome de lugar ever).

Os shows, gratuitos, acontecem em palcos montados pelas ruas do bairro da Praia de Iracema, semelhante à Virada Cultural paulistana, mas ao redor do tal Dragão do Mar, que normalmente é o centro de atividades culturais na região da capital. Atrações locais, nacionais e internacionais, da música eletrônica ao teatro experimental, se espalham por vinte palcos. Na lista do “quero ver” o show que celebra os vinte anos do Cidadão Instigado, BaianaSystem, As Bahia e a Cozinha Mineira, Horoyá, Nego Gallo, e mais umas coisas que a turma local indicou. Certeza da vontade de ouvir Praia Futuro, projeto instrumental lançado pelo selo Nublu que não vi no Sesc, ano passado.

Caminhando pela orla, de longe dá para ouvir a guitarra, o baixo, a bateria. De perto, Fernando Catatau (Cidadão Instigado), Dengue (Nação Zumbi) os dois de bermuda e chinelo de dedo, passam o som junto com Kalil, o sexto integrante do Cidadão. Praia Futuro, o disco, foi gravado na cidade, no estúdio Totem, “em janeiro ou fevereiro de 2016, acho, foi antes do Maloca (do ano passado)”.

Kalil estreia nos palcos depois de assinar gravação e mixagem de discos e shows do Cidadão Instigado, Otto, Arnaldo Antunes, entre outros. “Toco bateria desde os onze anos. Quando fui pra São Paulo estudar áudio, vi a possibilidade de estar com todos os instrumentos na minha mão, de sair do ritmo para ter uma banda inteira.” Dengue, pilar do Praia Futuro, convenceu Kalil a tocar: “Foi muito simples, fui enchendo o saco dele e ele foi tocando”.

O projeto começou sem nome, depois do show do Central Park nova-iorquino que comemorava os vinte anos do disco Afrociberdelia, da Nação Zumbi. “Eu conheço o Ilhan (Ersahim, músico e dono do selo Nublu) desde 2000. A gente sempre se falou e nunca falou de trabalho. Nesse dia surgiu esse assunto, e sobre como seria, algo de dub. Acabou que Praia Futuro não tem nada de rótulo, tem coisa de praia”, conclui Dengue.

Formatado como um trio com Pupilo, também da Nação, Dengue e Ilhan, o grupo sofreu alterações na escalação porque o baterista da Nação Zumbi estava envolvido com produção do disco Tropix de sua parceira Céu, e a direção musical do show de Gal Costa. Kalil foi para a bateria e Catatau escalado na guitarra para reforçar as melodias: “Cheguei dentro do estúdio, gravando. Caí de paraquedas e fui cortando as tiras do paraquedas. A gente é amigo, se entende mentalmente tirando som, sempre tocou junto”, explica o guitarrista.

O nome veio de Kalil: “Isso aqui é uma coisa muito louca, é meio relax, o clima é meio praia, e aí foi a minha inspiração: a volta pro início. Voltei pra praia, voltei a tocar bateria como tocava na adolescência na praia do Futuro (em Fortaleza).” Ilhan, que chegaria na cidade às dez e meia da noite, não passou som, perdeu as ondas batendo na orla e o cheiro do mar que invadia o palco.

Eles seguem para o hotel para se trocar, enquanto no Centro Dragão do Mar acontece o Conexões Maloca: produtores, artistas, contratantes, jornalistas, empresários brasileiros e gringos são convidados pelo festival para conhecerem a cena local. Numa espécie de speed date, cada artista apresenta seu trabalho em três minutos para os responsáveis do Circo Voador (no Rio), do Lincoln Center (em Nova York), e de festivais como o Psicodália (em Santa Catarina), a SIM (de São Paulo) e o BR 136 (no Maranhão). O Ceará é o terceiro estado do Brasil em geração de empregos na área da cultura, segundo o IBGE, atrás apenas de São Paulo e do Rio, e com o esquema do Conexões, todas as atrações se favorecem.

Circulando pelos shows, a responsável pelo festival de Cabo Verde assistiu BaianaSystem e articulou uma possível visita da banda ao país. A trupe visitou também o Totem Estúdio para uma audição de Praia Futuro com direito a comidinhas do Uhuuu, restaurante de Marcelo Diógenes que além de rangos incríveis (e do nome inspirado no terceiro disco do Cidadão), produz os melhores discos de Fortaleza.

No primeiro dia de festival deu pra ver Isabel Gueixa, Nego Gallo e Fortal La Mafia representado o hip hop local, e a cantora Nayra Costa. Na Praça Verde, dentro do Centro Cultural, o palco aberto com parte de arquibancada de arena abrigou a celebração dos vinte anos do Cidadão Instigado. A banda está pela primeira vez acompanhada de naipe de metais, com trompete, sax e trombone. Catatau entra sem a guitarra a tiracolo, numa pequena performance. Vinte anos apresentados em uma viagem cronológica pelos álbuns da banda que segue em turnê pelo Brasil.

O hotel é próximo. Sou alertada, pela terceira vez no dia, que melhor não voltar andando, mulher, sozinha e com equipamentos. “Fortaleza tem muito assalto, é muita desigualdade”, repetiam. Da desigualdade e da violência, nós em todas as grandes cidades, sabemos como é. Aceitei a carona de volta entre inesperadas trombas d’água.

Amor encontrado nas esquinas de Fortaleza

Amor encontrado nas esquinas de Fortaleza

Desse tipo de viagem o melhor é o que não está no cronograma: um monte de gente junta que gosta de música na praia falando besteira. Um cachorro deita embaixo do guarda-sol e disputa a sombra com a responsável pela programação do Lincoln Center e nosso ponto de referencia pela tez branca. Melhor coisa de ter gringo no rolê é que você nunca perde o grupo.

Na segunda noite, depois da apresentação d’As Bahia e a Cozinha Mineira e um pedaço do show dos trinta anos da Tribo de Jah, ficamos sabendo que Ilhan ainda não tinha aterrissado em Fortaleza. O show previsto para uma da manhã, atrasa. Quando todos sobem ao palco, começa a viagem instrumental que tem momentos diversos. “É um som astral, tem as partes abertas que a gente pode improvisar bastante”, começa Catatau. “A gente gira ao redor dos temas, olha um no outro, se dá o espaço, é uma coisa muito educada musicalmente falando “ completa Dengue. É surpreendente e leve. “É meio relax, o erro está valendo”, define Kalil. No show, além dos artistas convidados, Lenna Beauty Gadelha, mulher do baterista e bailarina profissional, fez duas participações dançando.

Praia Futuro é também psicodelia visual. Lenna Beauty Gadelha dança no meio da apresentação da banda

Praia Futuro é também psicodelia visual. Lenna Beauty Gadelha dança no meio da apresentação da banda

Findo o show seguimos para o Canuto, mais conhecido como “o bar do reggae”, um lugar sem portas que não fecha nunca e abriga com música, bebida e pastel. O bar vai enchendo sem hora para esvaziar. Na manhã seguinte, a cidade acorda com a notícia da morte de Belchior. Correria para montar uma homenagem ao filho pródigo do Ceará, para fechar o festival depois de (mais um) avassalador show do BaianaSystem. Nayra Costa voltou para cantar “Como Nossos Pais”, Soledad fez “Apenas um Rapaz Latino-Americano” e João do Crato “Hora do Almoço”. O público dança, chora, e canta a plenos pulmões.

O protetor do Bar do Reggae

O protetor do Bar do Reggae

Naquela noite novamente o célebre Bar do Reggae recebe músicos, técnicos, jornalistas `a medida que acabam as atividades. Esticam ao máximo à noite, até ela virar dia. Fortaleza tem um frescor encantador no jeito de levar a vida, mesmo que o calor abafe a temperatura.

Expandindo as fronteiras do jazz

nublu-2016-

Conversei com o músico e produtor sueco-turco Ilhan Ersahin, que também é o idealizador do festival Nublu, que este ano traz Sly & Robbie e Badbadnotgood, entre outros, para o palco do Sesc Pompéia, em São Paulo, lá pro meu blog no UOL.