Pop definitivo

, por Alexandre Matias

“Billie Jean”: a melhor canção pop de todos os tempos

Sempre discotequei por prazer – nunca por dinheiro, fama, tiração de onda. Ainda moleque, eu levava fitas para as festas porque sabia que se eu não fizesse isso, iam simplesmente deixar um disco qualquer tocando, e eu sempre me preocupei com a trilha sonora da minha vida. Quando resolvi, pela primeira vez, colocar músicas para botar pessoas que eu não conhecia para dançar, o único intuito era me divertir fazendo estes estranhos – que no começo era uma grande turma de amigos – ouvirem música boa. E isso aconteceu em Campinas, entre 96 ou 97 (memória-lixo, não repare), quando eu e mais três compadres, Serjão, Roni e William, resolvemos botar nossas coleções de vinil e músicas recém-descobertas em ação.

Éramos os quatro uma espécie de gangue adolescente dentro do Diário do Povo: Serjão, o mais velho de todos (acho que ele é de 1970, se não me engano) e já editor de fotografia do jornal; eu era editor de arte (e não de cultura, perceba a diferença) e ilustrador do mesmo jornal e meu único colega de editoria era o Roni. Ali eu também editava a versão impressa do Trabalho Sujo com o auxílio luxuoso dos dois – Serjão era meu inseparável dupla na cobertura de qualquer show que a gente quisesse ir e o Roni desenhava o logotipo da coluna, que mudava toda edição. O William ficava ali quietinho, só de butuca, sacando as conversas e inevitavelmente acabou entrando na turma. Os três eram os betatesters do Sujo impresso – discutia pautas que queria abordar e mostrava versões diferentes do desenho da página ou de um determinado texto. Logo, resolvemos migrar nossa paixão por música para uma festa. Nem eu nem Serjão nunca tínhamos discotecado de verdade, o William era DJ de hip hop e atendia pela alcunha de W/Break e o Roni fazia umas fitas psicopatas de deixar fã de Mike Patton sorrindo de orelha a orelha – com o cut & paste mais roots do planeta, na base do rec e pause do toca-fitas.

A festa não tinha nome – era informalmente chamada de “festa black”, numa clara referência ao sucesso da verdadeira Festa Black de Campinas, que acontecia na Unicamp e tinha no comando meus compadres Cris Pesadelo e o DJ Paulão. Mas criamos uma alcunha pra empreitada – era o Quarteto Funkástico. A pegada, óbvio, eram grooves setentistas, mas jogávamos tanto pra música brasileira (Serjão, anos depois, consagraria sua discotecagem especificamente nessa praia), pro hip hop, disco music e algum rock com um mais groove (eu sempre dava um jeito de botar “The Mexican” no meio da festa e “Sure Knows Something” mais pro final). E mesmo revezando entre quatro DJs, inevitavelmente rolavam umas cagadas – alguém esbarrava na mesa com o som, o disco emperrava, a próxima música cortava completamente a onda da anterior, um pedido de alguém que foi atendido mas só uma turminha curtiu… Enfim, coisas de quem estava começado a caminhar a trilha da edição da realidade sonora de uma noite (porque, afinal, todo DJ é um editor).

E nesses primeiros passos, aprendia-se alguns macetes. Desde dizer que a música que a pessoa já pediu já foi tocada (ou que às vezes não era mentira) a aprender quem que discotecava melhor com quem em que parte da noite. E um dos principais aprendizados nessa etapa é o às na manga. Você precisa ter uma música para salvar tudo quando tudo der errado – se a pista esvazia subitamente, se alguém desliga uma tomada, se o CD-R deu problema na hora de ser lido no CD-player (que ainda eram daqueles de mesa…). Você precisa ter uma rede de segurança, uma bala na agulha, um colete salva-vidas sonoro que, ao mesmo tempo em que te tira do apuro de esvaziar a pista, ainda resgata o ânimo de pessoas que só queriam dançar e pegar alguém depois de um dia de trabalho.

À medida em que descobríamos quais músicas despertavam diferentes instintos no público, convergimos para “Billie Jean”. Era o meio-termo perfeito, a equação exata, o equilíbrio pleno entre melodia e ritmo, groove e atitude, sensualidade e robótica e o gosto musical de nós quatro. Seus elementos iniciais são capaz de despertar a felicidade interior que se traduz em dança – Michael Jackson equilibrando-se entre o sexo e suingue, a pura sacanagem e o funk. O compasso reto, aberto por uma bateria metronômica e seguido por uma das linhas de baixo mais abusadas já escritas, logo vinha acompanhado de um teclado minimalista, que só pontua os passos dos outros dois instrumentos. Antes mesmo de Michael começar a soluçar e sibilar sílabas e gemidos, aquela base instrumental continha calor suficiente para incendiar uma selva ao mesmo tempo em que disposto mecânicamente, num ritmo quase industrial.

É tocar “Billie Jean” e tudo se resolve: o apuro, a pista, a noite. Por diversos outros momentos da minha vida fui percebendo que a faixa não era apenas uma segurança pessoal, mas universal – e presenciei, como você inevitavelmente já deve ter presenciado ou presenciará, infalivelmente. Mais do que um truque de luxo, a faixa tinha lugar de honra em vários sets, em diferentes lugares e situações. Ouvi em festivais de música eletrônica, em festas badaladas de São Paulo, em bailes funk no Rio, durante o carnaval do Recife, festa em casas de amigos – uma música perfeita, o ápice de dois gênios, o balé perfeito entre duas forças de diferentes naturezas: Quincy Jones e Michael Jackson.

“Billie Jean” é a melhor canção pop de todos os tempos. Não é pouco. A lista de concorrentes não é fraca e quase todas pendem à perfeição. “Like a Rolling Stone”, “Bohemian Rhapsody”, “Imagine”, “One”, “Stairway to Heaven”, “Strawberry Fields Forever”, “Superstition”, “Le Freak”, “God Only Knows”, “Hey Ya”, “Dancing Queen”, “Detalhes”, “Smells Like Teen Spirit”, “Walk On By”, “Faith”, “Hey Jude”, “Love Will Tear Us Apart”, “Anarchy in the UK”, “One More Time”, “Satisfaction”, “Crazy”, “What I’d Say”, “Kiss”, “(Sittin’ On) The Dock of the Bay”, “Garota de Ipanema”, “Last Nite” – são músicas que te abrem para universos inteiros, complexos, cheios de interpretações e possibilidades, ambientes virtuais imensos de emoções sinceras, mas condensados em poucos minutos e palavras, melodias quase sempre simples e diretas, mas arranjadas e interpretadas com precisão assombrosa. Nenhuma vogal é gratuita, nenhum ruído é exagerado, há um entrosamento perfeito entre músicos e técnicos de som e o arranjo apresentado na pós-produção é tão importante quanto a composição ou a letra de cada uma delas.

Mas, ao mesmo tempo, ela tem algo imperfeito – um elemento indefinível, que caminha entre o groove sem rosto da linha de baixo e a bateria que teima em seguir o compasso do teclado. Michael surpreende como compositor, ao propor um tema nada leve para a canção, e como intérprete, ao convencer que está sendo acusado de ter um filho bastardo. Sem contar o que faz sua voz – gravada em apenas um take, ela percorre todos os tons propostos por Michael, do grave ao falsete, com direito aos gemidos, gritinhos e estalos que se tornariam marca registrada em praticamente todas suas faixas a partir de então. Mesmo com a sensualidade exata, coisa pra pouquíssimos – Tina Turner, Gal Costa, Mick Jagger, Robert Plant, David Bowie, Isaac Hayes, Prince, Marvin Gaye, Madonna, Serge Gainsbourg em sua “Je T’Aime (Moi Non Plus)”, Alicia Keys, James Brown -, “Billie Jean” é sintética, fria, robô. A precisão mecânica era um obsessão recente em Quincy Jones, que tinha em Michael Jackson seu vínculo com a contemporaneidade que deu ao mundo a disco music e o hip hop, que ele traduziu com perfeição neste arranjo noturno e sombrio. E, principalmente, adulto.

Mas antes de coroarmos Jones, lembre-se quem é o Rei do Pop. Foi Michael que exigiu quase meio minuto de introdução instrumental, alegando que era essa introdução que o fazia ter vontade de dançar. Ele insistiu na inclusão da faixa em Thriller, no tema e até mesmo no título (que Jones queria batizar de “Not My Lover”) e é responsável por sugerir os principais ingredientes da música – até mesmo o “do think twice” ecoado aos 2:15.

Não bastasse “Billie Jean” ser esta fissão nuclear em câmera lenta, ela ainda veio acompanhada por um clipe que reinventava Michael Jackson como o mais próximo de um super-herói que um popstar já chegou – e um super-herói mágico, sutil, transcedental, humano. Seus superpoderes eram o de acender a calçada a cada passo e o de deixar a música encarnar em si, como se pudesse absorver toda força de qualquer canção que interpretasse. E no clipe de “Billie Jean”, com a tensão sexual talhada milimetricamente pela faixa, qualquer movimento era música. E Michael Jackson, em quase cinco minutos, fazia com jovens nascidos nos anos 70 o que os Beatles e Elvis Presley fizeram com duas gerações, só que ao mesmo tempo: criava um momento histórico e definitivo, que ao mesmo tempo tinha ares de aparição divina quanto de simpatia juvenil. Era 1983 e todo mundo que o viu pela primeira vez se apaixonou e queria ser Michael Jackson.

Lembro que Thriller foi o primeiro disco que eu pedi para comprar – até então só ganhava discos infantis da Disney e começava a passear pela coleção de MPB dos meus pais. Quando “Billie Jean” iniciou o reinado de Michael Jackson, era inevitável que milhões de crianças e adolescentes fossem seus primeiros súditos. Adultos o viram crescer e carregavam a imagem da criança-prodígio que finalmente chegou lá. Nós, não: o conhecemos apenas como o que ele realmente queria ser, um deus da música, um imortal jovem. Ele é a conclusão das engrenagens que começaram a se mover com Elvis e Beatles, o artista-marca, um nome inatingível, um personagem quase fictício, que movia fortunas e que pode criar seu mundo paralelo que, na década seguinte, se tornaria o mundo bizarro que infelizmente tornou-se sinônimo de Michael Jackson.

Mas entre Thriller (83) e Dangerous (91), Michael Jackson foi o maior artista do planeta, o ícone inalcançável que justificava toda a indústria do entretenimento e alimentava sonhos de fama e fortuna numa escala inimaginável até então. Todos – o público, a mídia, os outros artistas – viviam à sua sombra. Este reinado se transformaria num hospício, à medida em que todos os atos de sua rotina passaram a ser tratados como extravagantes e ele perdeu completamente o vínculo com a realidade.

E do mesmo jeito que ele foi o símbolo de um tipo de fama e de sucesso que não existem mais, também antecipou a realidade fake que nos acostumamos a levar no século 21 – entre plásticas deformantes, hábitos alucinados, escândalos sexuais, decadência financeira, drogas, filhos e processos judiciais, Michael Jackson foi o primeiro astro de um dos primeiros reality shows que nos acostumamos a acompanhar (o outro, o de Lady Di, já foi cancelado na marra em 1997). Até a semana passada.

Mas mesmo com toda histeria, velocidade, susto e dimensão que a morte de Michael Jackson atingiu, ela não chega nem de perto a ofuscar sua música. Por maior que tenha sido sua vida de celebridade máxima durante os anos 80 ou a de homem-elefante pós-moderno nos anos que se seguiram, estas facetas são passageiras e pertencem ao mosaico de imagens que chamamos de história. Uma enorme parte de seu repertório, não – e consegue soar moderna mesmo com um quê de nostalgia. Menos “Billie Jean”, que parece uma música que ainda nem foi lançada, tamanha atualidade e apuro estético, carregando, como toda obra-prima, o viço de novidade e a carga de emoção de seu primeiro impacto. E quando você ouvir o tum-tá, tum-tá, tum-tá, tu-tá acompanhado do baixo tun-dundundundundundun-tun-dundundundundundun e o teclado que acende a calçada quando pisa, já sabe: hora de ir pra pista. Não é nem seu cérebro que manda – é o seu quadril que vai.

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