A mensagem que apareceu no telão em todos os shows de Roger Waters no Brasil deixava tudo evidente. Foi ali que, para muitos, a ficha caiu. Não era uma paranoia ou uma teoria da conspiração: o neofascismo está aí. O ódio saiu do armário e está pronto para sair grunhindo suas maldades amplificadas por ferramentas que se embrenharam em nossas vidas. Redes sociais, sites de vídeo, smartphones e programas de troca de mensagem forjaram uma nova realidade digital distorcida cujo flerte intenso com a teocracia e o autoritarismo não é mais um alerta distante – é real e palpável. Uma das principais lições deste ano é lidar com esta inevitabilidade e simplesmente resistir. Erguer suas crenças e pensamentos ainda mais alto e manter foco no próprio trabalho, resistindo ao pânico, ao medo e à raiva, sentimentos mais próximos do reacionarismo do que a construção de um horizonte próximo, única meta possível nestes tempos sombrios. Só assim poderemos fazer uma política possível diferente desta orquestração de interesses que ocorre a cada quatro anos – e que está cada vez mais suscetível a influências sinistras.
Os Smiths sempre se posicionaram politicamente contra sistemas políticos autoritários, principalmente por conta da presença incisiva de Morrissey, seu líder e vocalista. E mesmo fora de atividade, o grupo não deixou de se pronunciar em relação à controversa presidência de Donald Trump, ao cravarem a frase “Trump matará a América” em uma edição limitada para o single com uma versão crua para “The Boy with the Thorn in His Side“, lançado no Record Store Day passado.
E como o fã Øystein D Johansen notou no Twitter, o responsável pela arte do single é chamado apenas de Esteban nos créditos – a versão em espanhol para o prenome de Morrissey, Steven.
Sleeve design by Esteban <3 #RSD17 #TheSmiths pic.twitter.com/bbPnp6POdK
— Øystein D Johansen (@Oystein_David) April 20, 2017
Deixando a Casa Branca no final deste ano, o presidente norte-americano Barack Obama fez sua saída extraoficial do cargo na semana passada, ao resumir – em uma jam session de funk lento – os feitos de seus oito anos de mandato. Acompanhado do apresentador Jimmy Fallon e dos Roots, Obama oficializa seu mandato também como o de um presidente preocupado com sua imagem a ponto de descer dos degraus da pompa decadente da política tradicional para tratar o cargo com uma métrica mais atual. Afinal, não é exagero dizer que, seja ocupado por quem for, a cadeira de presidente dos Estados Unidos transforma qualquer um em um dos maiores popstars do mundo – e Obama aproveita a oportunidade com maestria. O que nos leva àquele velho adágio do saudoso Zappa, que a política é o entretenimento do complexo industrial-militar ou dos inúmeros avisos de Aldous Huxley, George Orwell e Alan Moore sobre como o entretenimento é só uma face da política (papos de ópio do povo, pão e circo, você sabe). Essa apresentação de Obama é o futuro da política hoje:
E para a atração musical do mesmo programa não ser completamente ofuscada por Obama, Jimmy Fallon ainda conseguiu Madonna como convidada, voltando a nada menos que “Borderline”, seu primeiro hit, também acompanhada pelos Roots.
A pedidos da redação, escrevi um artigo para o Aliás do Estadão sobre como a inaptidão da classe política brasileira com os meios digitais pode nos levar a um estado de vigilância típico de ditaduras.
Enterrados no passado
Proibir o WhatsApp ou tentar limitar a navegação na rede pode até render piadas. Mas mostra como políticos brasileiros ainda não entendem a internet
Nas últimas semanas, a internet voltou ao noticiário quando se começou a falar sobre o limite de consumo de acesso à rede em pontos fixos e devido à proibição do aplicativo de troca de mensagens WhatsApp. Duas questões aparentemente distintas, mas que têm uma base comum apoiada sobre dois preceitos atrasados: a distância etária de nossos representantes eleitos do funcionamento prático das novas tecnologias e como essas mesmas tecnologias podem ser fortes ferramentas de controle da sociedade.
O desnível etário entre as autoridades políticas e a realidade digital do século 21 é rotineiramente noticiado quando legisladores são flagrados visitando sites pornôs ou trocando imagens por WhatsApp nas assembleias. Até o áudio do discurso de posse do hoje presidente em exercício Michel Temer (dono de ótimo 4G, para vazar 14 minutos de áudio “sem querer”) ou o vídeo em que a deputada Jandira Feghalli flagrou o ex-presidente Lula exaltando-se ao celular são exemplos de que não importa o espectro ideológico, os representantes políticos ainda estão aprendendo a lidar com a tecnologia. Qualquer adolescente sabe da importância de observar o que se fotografa, mesmo num simples selfie, de reler algo antes de enviar e da existência da navegação anônima.
Claro que não é um problema só das lideranças brasileiras. O presidente americano Barack Obama, num jantar mês passado em Washington, comparou Hillary Clinton, de seu próprio partido, com um parente velho que acabou de entrar no Facebook. “Cara América, você recebeu meu cutucão?”, disse Obama, fazendo voz de senhora de idade. “Está aparecendo na sua timeline? Não sei se estou usando isso direito. Com amor, tia Hillary.”
Só agora a geração que dava as cartas no mundo até metade dos anos 90 começa a entender a internet. E não apenas políticos. Empresários, acadêmicos, artistas, agentes do terceiro setor (e, triste dizer, jornalistas) que nasceram entre o fim da Segunda Guerra e o início da Guerra Fria até há alguns anos tratavam a rede como moda passageira, novidade adolescente, bobagem descartável como o bambolê ou o chá-chá-chá. A geração que viu a TV engolir o rádio recusava-se a crer que nos computadores havia algo tão revolucionário.
Até que a geração seguinte, que cresceu ciente do potencial dos novos meios, começou a dar certo. E empresas como Google e Facebook passaram a dominar a rede de forma avassaladora. A transposição da internet dos PCs para os celulares acelerou exponencialmente a inclusão digital, e até os pais desses políticos e empresários já trocavam memes e vídeos dos anos 90 em grupos de WhatsApp – mesmo assim, eles ainda achavam que não passava de moda passageira.
Não é. E a tão festejada disrupção proporcionada pela internet já reinventou mercados, negócios e políticas. Da mesma forma que algumas das maiores empresas do mundo hoje não têm nem vinte anos de idade, há pequenos grupos de jovens empresários desconstruindo impérios inteiros a partir de aplicativos para celulares ou serviços online. Não é só o Netflix matando as locadoras, o Spotify substituindo o rádio ou o Uber deixando os táxis no passado. É um novo sistema de funcionamento da sociedade a partir da concentração da população mundial em cidades (um fenômeno recente) e das novas tecnologias. O NuBank e o Bitcoin podem reinventar as finanças, enquanto o fundador do PirateBay quer virar a publicidade do avesso como fez com o mercado de entretenimento, desta vez associando seu sistema de micropagamentos Flattr com o sistema de bloqueio de anúncios Adblock Plus. Bloqueio de anúncios? Sim: esses dispositivos estão cada vez mais populares e podem até matar a fonte de renda de Google e Facebook, detentores de imensa parte da publicidade digital.
E qual a reação dos CEOs e políticos do planeta a esse novo funcionamento das coisas? A proibição. A censura. O controle. Embora as suspensões do WhatsApp gerem piadas engraçadinhas sobre não ter que responder mensagens o tempo todo, muita gente, que usa o aplicativo para seus negócios, perdeu dinheiro com isso. E as piadas perdem a graça quando não é o WhatsApp suspenso por uns dias, mas o Facebook fora do ar.
Rimos quando soubemos, há dez anos, da vontade da modelo Daniela Cicarelli de tirar o YouTube do ar por causa de um vídeo comprometedor que havia caído na rede. Hoje não dá mais pra rir – isso é uma possibilidade. Basta uma decisão judicial feita em qualquer uma das comarcas coloniais que tomam conta do País para que nosso acesso à internet seja cortado. Imagine você suspender a transmissão da televisão por causa de um programa de uma emissora? Ou cortar a linha telefônica de alguém cujo filho passou um trote? É uma decisão tão arbitrária quanto essa, que não é percebida assim justamente por causa dessa descompensação de entendimento entre quem regula as leis digitais e quem as utiliza. Os primeiros rascunhos de legislação digital brasileira exigiam que se digitasse o CPF toda vez que a internet fosse acessada, e que o histórico de navegação fosse guardado por meses. Imagine o dinossauro burocrático que estaria nascendo…
Associe isso a um Congresso Nacional e a assembleias legislativas comprometidas com empresas interessadas só no lucro e você tem um país dando um cavalo de pau de volta ao início do século 20. Época em que uma providência desse tipo também foi tomada de forma abrupta. O rádio era tão universal quanto a internet, qualquer um com transmissor falava de casa com o mundo inteiro. O Estado percebeu o poder mobilizador desse meio e determinou que só o governo poderia dizer quem podia utilizá-lo. Emissoras de rádio foram concedidas a grupos políticos ou familiares que o usaram também como curral eleitoral, transformando celebridades radiofônicas em políticos e distorcendo notícias. Não por acaso grande parte de nossos legisladores são descendentes dos primeiros donos de rádios, pouco interessados em compartilhar seu poder.
E isso é muito perigoso. Não bastasse a crise institucional na política do País, ainda começamos a conviver com um fantasma que pode tirar nossa capacidade de mobilização, formas de interação digital, velocidades de conexão. A suspensão de serviços digitais fere diretamente a base da teia mundial de dados, a chamada neutralidade de rede, e transforma a internet não em canal de comunicação, mas em central de vigilância. Não é exagero comparar essas decisões com a natureza de ditaduras herméticas e descoladas da realidade mundial. Quem protestar pode ficar sem acesso à internet, o que funciona hoje como exílio forçado. Dormimos no Brasil e acordamos na Coreia do Norte.
Isso não é brincadeira. Não é motivo de piada. É uma das situações mais sérias que um País pode passar, um controle sofisticado das comunicações tocado por pessoas com a cabeça enterrada no século passado. E isso não mudou com saída de um presidente e a entrada de outro, interino. Então, quem não quiser fazer parte disso, muda de país? Forja a própria morte e deleta-se da internet? Entra no modo “radio silence” para fugir do controle?
Falei sobre duas iniciativas que nasceram a partir da crise política brasileira estão ajudando a cena musical se organizar lá no meu blog no UOL.
Em momentos tensos como estes é importante se posicionar, por isso assinei o manifesto contra o golpe em curso contra a presidência da república ao lado de dezenas de outros donos de sites, blogs, selos e artistas independentes. A íntegra do manifesto pode ser lida neste site, em que é possível também manifestar seu apoio.
Meu comentarista político favorito esmiuça imigração e corrupção num país em que a violência aflige o negro, pobre, periférico e índio.
Gregório Duvivier acerta mais uma vez na veia da nação canarinho ao expor a transformação do Vaticano em república bolivariana:
Assino embaixo do meu comentarista político favorito neste raio X que ele fez deste Brasil 2015, especificamente a frase: “Melhor o fascismo exposto do que oculto”.
Não tenha dúvida.