Patti Smith escreve sobre Tom Verlaine: “Não havia ninguém como Tom”

, por Alexandre Matias

Dois ícones da cultura do final do século 20, Patti Smith e Tom Verlaine foram pilares da cena independente nova-iorquina que forjou a cultura punk e ajudou a cidade norte-americana a reerguer-se culturalmente nas três últimas décadas do século. Mais do que isso: eram ídolos do rock e heróis da poesia, reverberavam dois cânones aparentemente alheios na mesma frequência e o que era improvável nos anos 70 tornou-se um cânone em si mesmo, dando uma sobrevida ao rock e alimentando corações e mentes de gerações posteriores e em inúmeras cidades pelo planeta. Patti Smith foi convidada pela revista New Yorker para escrever sobre o amigo íntimo que perdeu esta semana e abaixo traduzo o texto que a poeta escreveu para o guitarrista:

Ele era Tom Verlaine
Patti Smith lembra-se de seu amigo, que possuía o dom infantil de transformar uma gota d’água em um poema que de alguma forma gerava música

Ele acordou com o som de água pingando em uma pia enferrujada. As ruas abaixo estavam banhadas por um luar medieval, que reverberava o silêncio. Ele permaneceu ali lutando com o terror da beleza, enquanto a noite se desenrolava como uma tela chinesa. Ele permaneceu tremendo, vidrado por movimentos trêmulos de alienígenas e anjos enquanto as palavras e melodias de “Marquee Moon” se formavam, pingo a pingo, nota por nota, num estado calmo embora sinistro de excitação. Ele era Tom Verlaine, e assim era seu processo: um tormento delicado.

Nascido Thomas Joseph Miller, criado em Wilmington, Delaware, ele deixou a casa dos pais e trocou seu nome, uma pele descartada enrolada no canto de uma garagem modesta entre pilhas de aparelhos de ar-condicionado usados que exigiam a atenção profissional constante de seu pai. Havia tacos de hóquei, uma bicicleta e pilhas de jornais velhos de Tom espalhados no fundo, cobertos com contornos fantasmagóricos de objetos distorcidos; ele passava por cima de latas até ficarem achatadas, quase irreconhecíveis, e então as pintava de dourado, suas esculturas bidimensionais, cada uma delas representando uma frase musical arrebatadora. No colégio, ele tocava saxofone, abraçando John Coltrane e Albert Ayler. Ele também jogava hóquei e, quando um disco do jogo quebrou seus dentes da frente, ele se viu obrigado a largar o saxofone e a se dedicar à guitarra elétrica.

Ele morava a vinte e oito minutos de onde fui criada. Poderíamos facilmente ter entrado na mesma loja de conveniência na fronteira entre Wilmington e South Jersey atrás de achocolatados ou bolos de caixa. Poderíamos ter nos encontrado, duas ovelhas negras, em algum trecho rural, cada um carregando livros de poesia dos simbolistas franceses – mas isso não aconteceu. Não até 1973, na rua 10 do lado leste, em frente à Igreja de São Marcos, onde ele me parou e disse: “Você é Smith”. Ele tinha cabelo comprido e nós acabamos nos reconhecendo, os dois ecoando o futuro, os dois usando roupas que não usavam mais. Percebi a maneira que tanto seus longos braços e suas mãos igualmente longas e bonitas pendiam, e então seguimos rumos separados. Quer dizer, até a noite do domingo de Páscoa, 14 de abril de 1974. Eu e Lenny Kaye pegamos um raro táxi do Ziegfeld Theatre depois de assistir à estreia de “Ladies and Gentlemen: The Rolling Stones”, direto para o Bowery para ver uma nova banda que se chamava Television.

O clube era o CBGB. Havia apenas um punhado de pessoas presentes, mas eu e Lenny fomos imediatamente apaixonados, com aquela mesa de sinuca, aquele balcão estreito e aquele palco baixo. O que vimos naquela noite foi familiar, nosso futuro, uma fusão perfeita entre poesia e rock’n’roll. Enquanto via Tom tocar, pensei: Se eu fosse um menino, teria sido ele.

Eu ia ver o Television sempre que eles tocavam, principalmente para ver Tom, com seus olhos azuis claros e seu pescoço de cisne. Ele abaixou a cabeça, agarrando sua Jazzmaster, que soltava nuvens ondulantes, estranhos becos povoados por homenzinhos, assassinatos de corvos e os gritos de pássaros azuis correndo por uma réplica do espaço. Tudo transmutava-se em seus longos dedos, quase estrangulando o braço da sua guitarra.

Nas semanas seguintes, nos aproximamos. Enquanto caminhávamos pelas ruas da cidade, improvisaríamos histórias contínuas, nossas próprias Mil e Uma Noites. Descobrimos que ambos amávamos a obra do compositor armênio-americano Alan Hovhaness, e nossa obra favorita era “Prayer of St. Gregory”. Examinando as estantes uns dos outros, ficamos surpresos ao descobrir que nossos livros eram quase idênticos, mesmo aqueles de autores difíceis de encontrar. Cossery, Hedayat, Tutuola, Mrabet. Nós dois éramos exploradores literários independentes e passamos a compartilhar nossas fontes secretas.

Ele devorava poesia e donuts com cobertura de chocolate amargo, engolido com café e cigarros. Às vezes, parecia sonhador e distante, então de repente explodia às gargalhadas. Ele era angelical, ainda que levemente demoníaco, um personagem de desenho animado com a graça de um dervixe. Foi quando o conheci. Gostávamos de dar as mãos e passar horas perambulando pelas prateleiras da Flying Saucer News, íamos para a rua 48 ficar olhando guitarras que ele nunca poderia comprar, pegávamos a balsa da Staten Island depois de três shows no CBGB e subíamos seis lances de escada até o apartamento na rua 11 leste e deitávamos juntos em um colchão olhando para o teto, ouvindo a chuva e ouvindo outras coisas.

Não havia ninguém como Tom. Ele possuía o dom infantil de transformar uma gota d’água em um poema que de alguma forma gerava música. Em seus últimos dias, ele teve o apoio generoso de amigos dedicados. Por não ter filhos, ele acolheu com agrado o amor que recebeu de minha filha, Jesse, e de meu filho, Jackson.

Em suas últimas horas, vendo-o dormir, viajei no tempo. Estávamos no apartamento e ele cortara meu cabelo, e algumas mechas ficaram para fora e ele me apelidou de Cabeça-de-Asa. Nos anos seguintes, apenas Asa. Mesmo quando ficamos mais velhos, sempre Asa. E ele, o menino que nunca cresceu, no alto do Ômega, um filamento dourado na vibrante luz violeta.

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