Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.
Eu tinha comentado com a Fab dia desses que demorou pra aparecer o vídeo em que o Jarvis Cocker aparece aloprando a apresentação do Michael Jackson no Brit Awards de 96, coisa que a gente só conhecia dos NME da vida. Eis que ela me manda o link hoje.
Um guia intruso numa febre já (já? já) antiga: o blog de MP3
Já tinha falado disso em um post passado, mas depois que o Denis pediu pra reproduzir minha matéria sobre o Nick Drake no blog dele, eu me deparei com uma série de blogs dedicados ao estranho hábito de ripar discos em MP3, zipá-los em arquivos compactados e disponibilizar pelos blogspot da vida. Junte isso à hipermutação que a banda larga e a gigacapacidade de armazenamento em HDs dos últimos meses (essa pequena “era YouTube” que vivemos hoje é fruto apenas disso, mas é só o furinho na represa) e dê fim ao P2P via web. É claro que o formato não mata o P2P (que mal começou a funcionar e pouco tem a ver com troca de MP3 online – veja só fenômeno Torrent pra cair em um dos inúmeros buracos dos coelhos de Alice modernos), mas facilita a vida do povo que é uma beleza. Daqui a pouco, tem RSS presses megaupload e, falando só de música gravada (só pra ficarmos na metáfora na qual tamos mais acostumados a entender) teremos uma imensa audioteca universal com todo som já registrado ao alcance de todos, de graça e 24 horas. Questão de anos, meses talvez… Enquanto isso, segura os links:
Feijão Tropeiro – Tá em fase classic rock (o primeiro do Led, o Paranoid do Sabbath, o Made in Japan do Purple, a edição de luxo do Who’s Next), mas vai de acordo com o gosto do freguês, indo de Manu Chao a clássicos perdidos brasileiros da virada do milênio (do EP do Zémaria ao primeiro do Vulgue Tostoi, da estréia do Sheik Tosado ao Por Pouco do Mundo Livre), de Gil & Jorge a discos do Cure, do b-sides do Pixies ao 4-Way Street do CSN&Y e todos do Lenine e do Belle & Sebastian.
Loud – Indie que só, tem discos do Muse, dos Shins, Decemberists, Hard-Fi, trilhas do OC e, no lado Brasil, Lado2Estéreo e Cartola.
Lágrima Psicodélica – O nome se explica? Teoricamente, nos primórdios do blog, porque hoje a seleção vai bem além da psicodelia e progressivo tradicionais. Pra cada discografia completa do Yes completo tem um Killing Joke, todos os discos do Pink Floyd ao lado de discos da Rollins Band, toda obra solo do Fish (vocal do Marillion) tá junto de coisas do Mother Love Bone, e segue assim, trilha sonora do Last Days e Eloy, Kinks e Coney Hatch, Social Distortion e Talking Heads. O nível da disparidade pode ser resumido no fato de ter todos os discos do Dire Straits e a estréia do Detrito Federal. Só pra ficar na letra D.
Conexão Cordel – Música brasileira roots, com foco em Pernambuco: Maciel Salu, Maracatu Leão Coroado, Novos Baianos, Antônio Nóbrega, Lenine e Lula Queiroga e o livro Batuque Book.
360graus – Um giro pelo mundo do blues. Dos Blues Brothers ao Baseado em Blues, passando por Little Feat, Bo Diddley, Etta James, Freddie King, Elmore James, Otis Rush, Robert Johnson e o escambau dentro desse nicho.
Mercado de Pulgas – Tem de tudo (Mulatu Astatke, Zoot Woman, Pink Martini, Cosmic Game), com mais ênfase em música brasileira: Samba de Monalisa, Céu, Tom Zé, Velha Guarda da Portela, Luiza Possi, Shirlei de Moraes, Mundo Livre S/A, DJ Dolores, Wilson Batista x Noel Rosa, Adoniram Barbosa, Clube do Balanço, Cristina Buarque e Roberta Sá.
Cápsula de Cultura – Música brasileira xiita (tem um Miles no meio, mas não pega nada), só filé, sem gordura emepebística: Nara e Menescal, Ismael Silva, Cartola, Baden Powell, Mano Décio da Viola, Paulinho da Viola, Elton Medeiros, Alaíde Costa, Jackson do Pandeiro e Gordurinha, Sivuca e Rosinha da Valença e até o PDF do Chega de Saudade, do Ruy Castro!
Musicoteca – Tudo bonitinho, dividido em seções, por autor e tem de tudo, de 14 Bis à trilha sonora da minissérie JK. Mas a fleuma do slogan (“Biblioteca de Música de Qualidade”) dá um filtro básico que os posts mais recentes (AfroReggae, Clube da Criança, As Melhores da Copa do Mundo) pareciam apenas insinuar…
Música do Bem – Me parece um rótulo melhor do que “de qualidade”. E mistura tudo: Stevie Wonder com tributo ao Cartola, Neil Young com Fernanda Abreu ao vivo, Anita Baker e João Gilberto, Rick Astley e Céu, Ibrahim Ferrer e Kate Bush, Otto e Headhunters, John Coltrane e Eurythymics, Mark Farina e Leonard Cohen, Bajo Fondo Tango Club e Diana Krall. Tem uma ou outra palhice, mas no geral a seleção é boa…
MP3 Place – Rock é rock mesmo! Grandfunk Railroad, J.J. Cale, Lynyrd Skynyrd, Faces, U2, Foo Fighters, jam do Jimi Hendrix com o Traffic, Who, Janis, James Brown e um disco do DJ Hum (?!?!).
E cada um desses blogs tem uma lista com outros tantos blogs (quer que eu facilite? Vai e fuça: Chocoreve, El Mundo de Mimi, Large-Hearted Boy, Rato Records, só pra começar…), então o esquema é puxar o cordão e ir atrás…
A ironia aos poucos vai matar a publicidade. Enquanto isso…
Antes de abandonar os palcos, os Beatles começaram a experimentar em estúdio, guiados por música erudita, pop norte-americano, aventuras técnicas e drogas psicodélicas, continuando à frente de seu tempo com o fundamental Revolver
Paul McCartney incentivando os Beatles a fazerem pequenos trechos de sons superpostos, inspirados em John Cage e Karlheinz Stockhausen. John Lennon querendo soar como o Dalai Lama no alto do Himalaia ao cantar letras inspiradas na versão do Dr. Timothy Leary para O Livro Tibetano dos Mortos. O dedo oriental de George Harrison em uma canção sem mudanças de acordes. A bateria frouxa e hipnótica de Ringo Starr, mais tarde ressuscitada por moderninhos como Beck (“New Pollution”) e Chemical Brothers (“Setting Sun”). O produtor George Martin obrigando funcionários dos estúdios Abbey Road a sincronizarem gravadores em colagens aleatórias de som. O técnico Ken Townshend inventando os vocais ADT (Artificial Double Tracking) e o engenheiro de som Geoff Emerick metendo a voz de Lennon numa caixa Leslie dentro de um órgão Hammond. E isso tudo no primeiro dia de gravação do sétimo disco dos Beatles, a quarta-feira dia 6 de abril de 1966, para uma única canção. A música se tornaria “Tomorrow Never Knows”, mas ali, no início do álbum, o grupo assinalava a faixa como o começo de uma nova fase, batizando-a sem modéstia de “Mark I”.
Fato – afinal, um ano antes estavam gravando a popzinha “You’re Going to Lose that Girl” e dois anos antes era a vez do rock “A Hard Day’s Night”. A distância era muito grande. “Tomorrow Never Knows” era o início de uma era de experimentação na música popular que iria explodir na renascença psicodélica do ano seguinte, transformando o horizontes da cultura pop no caleidoscópio de referência que conhecemos hoje. Com Revolver, os Beatles entravam numa escalada artística que iria dar em obras-primas como Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band, o Álbum Branco e Abbey Road, finalmente atingindo o topo do mundo pop. Até então, com o jovem e moderno Rubber Soul, eram uma banda pop exercitando todo seu potencial. De 1966 em diante, passariam a explorar as novas fronteiras da arte contemporânea, mas sem perder o senso de perfeição que haviam mirado no álbum anterior.
De repente, descobriam as vantagens da manipulação sonora depois de gravada. “Revolver estava sendo conhecido como o disco em que os Beatles diziam: ‘OK, está ótimo, agora vamos inverter isto ou acelerar ou arrastar”, lembra Emerick no livro The Complete Beatles Recording Sessions, “eles tentaram tudo de trás pra frente, só pra ver como soava”. “Quando experimentamos o som de trás pra frente, eles passaram a inverter tudo”, concorda George Martin em seu Summer of Love – The Making of Sgt. Pepper. As inovações técnicas iam além da distorção, aproximando a microfonação o máximo possível: microfones dentro de instrumentos de sopro, grudados em violoncelos, colados na bateria. “Eles ouviam um monte de discos americanos e ficavam perguntando: ‘Como podemos ter este som?’”, recorda o produtor.
Mas enquanto a técnica entusiasmava o lado juvenil de George, Geoff e Ken, o grupo estava sendo ousado mesmo nas novas composições. As drogas exerciam um papel fundamental na nova fase do grupo. “Dr. Robert” cantava sobre um médico pronto para levantar o astral de quem quisesse, uma versão musical para Max Jacobson, o farmacêutico-mor da marginália nova-iorquina; “Got to Get You Into My Life” é sobre o entusiasmo de Paul McCartney com fumo (“é o meu primeiro arroubo sobre maconha”, confessa Paul na autobiografia Many Years from Now); assim como a preguiçosa “I’m Only Sleeping”, de Lennon; e as duas faixas que fechavam cada um dos lados do vinil – “She Said She Said” e “Tomorrow Never Knows” – são sobre viagens de ácido: a primeira disfarça um tour lisérgico que Lennon teve com o ator Peter Fonda (vertido em “she” na faixa, para não dar na cara) e a segunda escancara a exploração de realidades induzidas em versos nada discretos (“Desligue sua mente”, “ouça as cores do seu sonho”).
Por outro lado, abriam continuavam entrando em portas musicais abertas nos discos anteriores. “Eleanor Rigby” é a evolução natural de “Yesterday”, com “cordas à Bernard Herrman”, como pediu Paul ao produtor Martin. “Taxman”, “Yellow Submarine” e “I’m Only Sleeping” brincavam com efeitos sonoros e arranjos superpostos. “Love You To” é George Harrison em sua primeira incursão de cabeça à cultura hindu que havia flertado em “Norwegian Wood”. “Here, There and Everywhere” e “For No One” – esta com solo barroco de trompa – transformavam Paul McCartney num jovem Schubert, compondo pequenas sinfonias em vez de baladas de amor. “Good Day Sunshine”, “Got to Get You Into My Life” e “I Want to Tell You” fazem a ponte com o pop norte-americano, enquanto “Dr. Robert” e “And Your Bird Can Sing” ajudavam a country music em sua própria evolução. Os assuntos abordados pelo disco iam da cobrança de impostos a contos infantis, passando por existencialismo, psicodelia, fossa amorosa, amor à vida, paixão latente, crítica social e metáforas diversas.
Poucos meses depois do lançamento do disco (no dia 5 de agosto de 1966), o grupo encerrou definitivamente a primeira fase de sua carreira, ao anunciar que não iria mais tocar ao vivo. A partir daí, o desafio do grupo seria sintetizar os anseios e dúvidas de uma geração – e assim fizeram ao serem os primeiros a darem o primeiro passo adiante, até seu fim, em 1970. Revolver encontra o grupo no exato momento da mudança, um sofisticado registro da melhor música pop de 1966 que flagra a mudança de parâmetros de toda uma era. “A mudança toda foi gradual”, conta John Lennon no livrão Anthology, “mas estávamos conscientes que, se havia uma fórmula ou algo do tipo, esta era mover-se para a frente”.
Revolver
1966
Produção: George Martin
A capa do disco já havia sido criada por Robert Freeman (uma colagem em espiral das metades de cima dos rostos dos quatro Beatles repetidas vezes) quando o grupo pediu ao velho amigo Klaus Voorman para recriá-la. Voorman, um dos ‘exis’ (grupo de jovens artistas existencialistas alemães no começo dos anos 60), conheceu o conjunto na época em que eles tocavam em Hamburgo, antes de gravarem o primeiro disco. A capa proposta por Klaus agradou em cheio: “Gostamos da forma que ele nos colocava como pequenas coisas saindo do ouvido das pessoas. E ele nos conhecia o suficiente para nos capturar de uma forma bonita em seus desenhos”, lembra Paul, “nos sentimos elogiados”. Na colagem da capa, Voorman usou duas fotos (uma de John e outra de George) que já haviam saído na contracapa do disco anterior, Rubber Soul. – As faixas “Paperback Writer” e “Rain” foram gravadas nas mesmas sessões de Revolver, mas serviram de aperitivo ao público para o novo álbum, sendo lançadas como um compacto no primeiro semestre de 1966 (em maio nos EUA e em junho na Inglaterra). “Rain” trazia a primeira gravação invertida da história da música gravada à luz do dia. “Fomos nós os primeiros”, resmungava John Lennon, “não foi nenhum Jimi Hendrix ou o fuckin’ The Who”.
Uma segunda-feira fria de julho, um célebre bar na esquina mais famosa de São Paulo vê um verdadeiro panteão reúne-se ao redor de uma mesa para contar a história do DJ de hip hop no Brasil. Sentados lado a lado estavam Grandmaster Ney, precursor do hip hop nas equipes de som black dos anos 70 e 80; DJ Hum, que fez seu nome ao lado do rapper Thaíde; KL Jay, a base musical dos Racionais MCs e organizador do festival Hip Hop DJ; King, que manipula as picapes para Xis, entre outros; e Nutz, que fez seu nome ao lado do Planet Hemp.
Além de seus trabalhos originais, todos eles são veteranos na noite paulistana e tocam em várias casas noturnas, produzindo discos e se apresentando por todo o Brasil. Ou seja: não foi fácil reunir esses caras. Mas uma vez reunidos, os caras soltaram o verbo. Primeiro, KL Jay, Hum e Ney contaram sobre os primórdios e a fase da São Bento, sempre de um ponto de vista bem-humorado e saudosista. Nutz e King participaram de leve, comentando e ajudando os três se lembrarem de datas, nomes e detalhes que cresceram ouvindo falar. Depois, os dois entraram no papo de uma vez e ajudaram a contar a história de suas vidas – e do hip hop brasileiro.
Ney: Eu nasci com disco no sangue. Toda minha família, os irmãos da minha mãe, organizava bailes. Meu tio, o falecido Zé Carlos Vitrola, foi o primeiro DJ a tocar só com a vitrola, separado do resto do equipamento. Daí veio o nome dele. Era uma época em que os DJs tocavam sentados. Não tinha mixer, fone, feltro no prato pra parar o disco… Nada disso. O pessoal tocava os discos no tato. Isso no final dos anos 60, quando os bailes tavam começando a tocar as coisas mais antigas, voltando pro soul e eu comecei a procurar as coisas novas.
KL Jay – Minha mãe escutava rádio AM e ouvia muito Roberto Carlos, John Lennon, trilha de novela… Mas o pessoal começou a falar de FM, de umas rádios que tocavam um tal de funk: Excelsior, Jovem Pan, Cidade, Antena 1… Meu pai tinha um radinho que pegava FM e quando ele ia trabalhar eu botava na FM e ficava ouvindo os sons, Gap Band, One Way…
Hum- Quando eu mudei pra Ferraz de Vasconcelos, meu tio me falou “leva uns discos” e aos poucos eu fui vendo que essa era a diversão do pessoal, tocar discos na rua, fazer bailinhos. Comecei assim, tocando em bailinhos pra arrecadar grana pra formatura da oitava série. Todo mundo começou tocando em bailinho. Eles foram a grande escola. A gente levava os discos que tinha, não tinha essa de discos mais tocados. Eu lembro que tinha o famoso questionário: você chegava no lugar e o pessoal começava a perguntar o que você tinha. “Tem o álbum tal? O meu é de 77”, “o meu é de 79”.
Ney – Meu tio morreu de tuberculose aos 26 anos, em 73, e antes de morrer ele falava que ia me levar pros bailes que ele tocava: Maison Suíço, SP Chic, Telefunken… Mas ele morreu antes. E depois de ele morreu, eu toquei em todos essas casas que ele falou.
Hum- Era uma época em que os DJs tocavam de costas pro público, com um espelho na frente, pro pessoal ver. Mas não encarava o público.
Ney – Eu comecei a manipular os discos, mas eu não fui o primeiro. O primeiro foi o Paulão, que foi preso e depois sumiu… Tem muita gente que acha que eu inventei a roda, mas ele foi o primeiro. Comecei tocando em bailinhos com o meu irmão e aos poucos fui evoluindo. E as coisas também. Costumo dizer que, dos anos 70 pra cá, tudo que aconteceu de inovador veio da música negra.
KL Jay – Tudo veio da África, tudo veio do tambor.
Hum- Nos anos 70, o negro brasileiro tinha dois estereótipos, o carnavalesco e o que depois começou a ser chamado de black. Foi importante porque era uma época que a gente não tinha informação e as equipes de som – como a Chic Show, a Black Mad, a Zymbabwe… -, apesar de ter um lado burocrático, eram quem deixava a gente um pouco informado sobre o que acontecia lá fora.
Ney – Foi quando as coisas começaram a mudar. Apareceu o Grandmaster Flash e ele virou meu ídolo. Eu tocava tudo quando era estilo usando as bases do Flash, as referências que eu usava eram dele. E o Mister Gil, que se apresentava comigo, começou a me chamar de Grandmaster Ney, que acabou ficando. Era uma época que ainda existiam os vendedores ambulantes de disco, eu mesmo vendi disco. A gente vendia para umas equipes e outras ficavam sem. E os discos iam ficando raros.
Hum- As equipes eram concorrentes e todo mundo concorria com todo mundo: o melhor DJ, o melhor dançarino, a melhor rádio. Todo mundo tinha um “escutador”, pra reconhecer as músicas que os outros tocavam e pra ouvir se o equipamento de som era bom mesmo. Quando o som era bom, o tímpano voava! E ninguém se metia a ser o “escutador” do Chic Show, por causa da altura do som.
Ney – A gente ia pro Rio comprar disco importado, que chegavam direto no porto. O Rio era o melhor mercado de disco de vinil do Brasil, o dobro de São Paulo. Na volta, a gente vinha apagando o rótulo.
KL Jay – A fogueira das vaidades! Era o medo de informar, pra você ver!
Ney – Tinha aquela história de subir na mesa e ficar rodando a cabeça pra conseguir ler o rótulo!
Hum- Mas o Rio era muito organizado, até hoje ainda tem a associação de equipes de som.
Ney – E a cultura dos bailes já era administrada pelos DJs: as equipes tinham o equipamento e chamavam os DJs que traziam o material. Uma organização absurda! Não tinha o que tinha em São Paulo, os DJs de lá trocavam informação, discos, “me empresta teu disco que eu vou tocar no meu baile”.
Hum- Esse lance da informação começou a ser quebrado na época da São Bento, quando a gente começou a ouvir aquele funk falado, que depois a gente descobriu que era o rap.
KL Jay – Tinha isso da troca, na São Bento. Eu comecei lá dançando break, vendo os vídeos, Beat Street, o do Malcolm McLaren, o Chic… E essa onda começou a me levar.
Ney – Eu tocava nos bailes que não permitiam que se dançasse break, rolava discriminação. Mas eu tinha ficado fissurado naquilo, roubei a fita do Beat Street da locadora, que eu tenho até hoje.
Hum- O pessoal do punk, que na época tava saindo da São Bento, passou muita informação pra gente, mostrou muita coisa, The Clash… A gente era vanguarda, era uma coisa diferente dos bailes.
KL Jay – É bom frisar que o que acabou com os bailes foi a mesquinharia. O Ney era o único cara do Chic Show que não tinha o pensamento dos caras.
Ney – Lembro do DJ Hum com toca-discos Garrard no chão, procurando um ponto de luz pra ligar e botar os caras pra dançar break. Foi quando começou o rap em São Paulo. O Nelson Triunfo (pioneiro do break no Brasil) foi praticamente o pai de tudo.
KL Jay – O esquema da dança de soul e funk era uma espécie de protesto visual, uma auto-afirmação. Mas o hip hop era mais agressivo. O DJ pegava o disco e “falava” usando as mãos: “Polícia filha da puta!”, “Racismo o caralho!”.
Hum- Em 82 eu vim pro Centro e vi o Nelsão dançando break, os caras tipo robôzinho… Naquela mesma noite eu ia tocar em um casório. E eu pensei em levar os caras, pra dançar na quebrada. Eu morava num lugar que se eu não fizesse nada, ou os caras passavam o dia fumando maconha ou saíam metendo bala. Então eu era meio “empresário” no lugar. Catei dois neguinhos, ensinei os caras como era a dança e levei pro casamento. Foi a pior coisa que eu fiz na vida (risos). No meio da festa – isso numa sala, o sofá de um lado, a estante do outro, o retrato de Nossa Senhora num canto… -, parei o som e disse: “Agora com vocês, dois caras que eu trouxe da cidade”, olha o 71 (risos), “que vão mostrar a nova dança, a dança do robôzinho!”. E os caras não sabiam fazer direito e neguinho ficava se perguntando: “Que palhaçada é essa?” (risos).
Ney – Fiquei com medo quando eu vi o break na abertura da novela das oito (Partido Alto, da rede Globo). Porque era só ir pra Globo pro negócio falir, foi assim com a discoteca, com o Dancin’ Days. Pensei que o break ia morrer. Tanto que ficou um tempo meio sumido, meio parado…
KL Jay – Rolava uma zoeira do pessoal do samba, que era mais arrumadinho e falava: “ih, lá vem aqueles caras que gostam de limpar o chão com o corpo, de fazer vuk-vuk nos discos”. Mas entre os DJs, tanto de funk quanto de hip hop sempre teve um respeito mútuo.
Ney – Mas eu fui interrogado na São Bento, “o que é que você tá fazendo aqui?”, porque eu era da Chic Show. Mas o negócio começou a crescer tanto que foi quase mágica, logo estava em todos os lugares, tinha crescido muito. E o Luizão do Chic Show me chamou pra fazer um disco de rap, com o MC Jack e o Naldinho.
Hum- Foi quando a gente descobriu que existia uma maquininha chamada mixer. A gente não sabia como os DJs faziam. “Como é que eles fazem isso?”.
KL Jay – A gente achava que os caras é quem produziam o som. Só depois que a gente soube que eles pegavam músicas de 10, 20, 30 atrás.
Hum- Todos nós copiamos o Eazy Lee, o DJ do Kool Moe Doe, que veio para o Brasil.
Ney – Foi o que quebrou a gente. A gente nunca tinha visto um DJ fazer performance até o cara fazer os scratches com os discos do Tim Maia.
KL Jay – Com discos de música brasileira! Eu pirei! “Você mentiu-ti-ti-tiu!”. Nossa, mano! Que mágica!
Hum- Um dia, um cara me viu fazendo scratch e falou que eu tocava igual aos americanos. E me levou pra uma festa, a maior das equipes amadoras. E o cara anunciou: “Agora vamos trazer aqui o Humberto, que faz igual os americanos!” (risos). E eu fazendo a mixagem na mão, com a vitrola de madeira. E o cara: “Faz que nem os americanos, os caras tão aqui pra ver!” (risos). E neguinho achando que eu ia dançar break, jogar basquete (risos).
Ney – Quando a gente tocava no interior, o Natanael (Valença, um dos fundadores da equipe Chic Show, já falecido) chegava e falava: “Faz aquelas performances!”. E eu fazia os back-to-back, pintava e bordava… E quando desligava o toca-discos, ficava todo mundo ali parado , olhando pra minha cara.
Hum- É difícil…E show de rap? “Com vocês, Fulano de Tal!”. Podia ser quem fosse, podia estar estourado no rádio, e os caras ficavam lá, batendo o pé…
KL Jay – Virava de costas!
Hum- Isso quando o show era bom. Se fosse ruim, os caras tacavam coisas…
Ney – Aí o Natanael sacou que tinha que preparar o povo, explicando: “Ele fica repetindo a mesma frase nos dois discos…” e aí sim o pessoal gostava. Mas da segunda vez não dava mais, não tinha mais novidade. Aí quando eu voltei a fazer interior, pensei: “Vou chamar outro DJ pra tocar comigo”.
Hum- Pra fazer igual os americanos… (risos)
Ney – A primeira vez que a gente se apresentava era legal, mas da segunda vez o povo virava e “pô, esse negócio de novo?”. Aí eu pensei em fazer algo diferente, em inovar. E convidei o Humberto pra fazer back-to-back de dois…
Hum- Isso foi legal…
Ney – Eu saía e o Humberto entrava, ele saía e eu entrava… E a casa veio a baixo. Mas na segunda vez, de novo, já não valia mais a pena, porque o público não gostava. Aí levamos três e a gente corria em volta da mesa! (risos) Chegou uma hora que não tinha mais o que inventar. Eu subia na mesa e mexia com o pé, que me valeu uma dor na coluna que eu tenho até hoje…
Nutz – E não tinha aquela coisa de mexer o fader com a bunda?
Hum- Tinha. Tinha um truque que era maior embromation, mas o pessoal gostava. O cara tirava o tênis e mexia no crossfader e a galera: “‘Ó lá, o cara fez com o tênis!”. (risos)
Ney – O Ricardo Medrano falou que ia fazer com o pé, só que ele era deficiente físico. Aí no meio da apresentação, ele não me tira a perna mecânica pra fazer os scratches? (risos)
KL Jay – E ainda mostrou a bunda depois da apresentação, com o Olympia lotado.
Ney – Isso foi no segundo DMC (campeonato de DJs realizado em São Paulo entre 88 e 97). Nós três, eu, o Kléber e o Humberto, competimos nos três primeiros. O primeiro tinha só amigo da gente. Eu lembro do KL Jay ir lá na rádio que eu trabalhava e dizer que tinha um 12 polegadas do “It Takes Two”, do Robbie Bass: “Eu tenho um bagulho louco pra fazer com esse som, mas eu não tenho o outro”. Como não tem? Aí eu fui lá no case do Chic Show e roubei o álbum emprestado. E pedi: “Não coloca uma marca nesse disco, pelo amor de Deus!”. Ele fez a performance, eu devolvi o disco e até hoje ninguém sabia disso.
Hum- Houve um estudo, um aprendizado autodidata, isso no fim dos anos 80, 88, 89… A gente fazia umas audições e ficava pensando como é que os caras faziam aquilo. A gente não sabia o que era um sampler, sampleava as coisas usando fita. Até que começou o SPDJ, no Santana Samba, que foi a primeira festa feita para DJs de hip hop, direcionada para DJs.
Ney – Foi a época que eu saí da Chic Show. As equipes proibiam você de falar que músicas você tocava, se você fosse funcionário. Eu toquei a primeira música do Soul II Soul no Brasil por um ano e meio, sem que ninguém soubesse o que era…
KL Jay – Mas você foi o primeiro que tocou A Tribe Called Quest em São Paulo. O Luizão do Chic Show tocou o Princess of the Posse, da Queen Latifah, quando saiu sem falar pra ninguém o que era.
Ney – E quando você saía da equipe, você tava morto, porque os discos, os equipamentos, os contatos… Tudo era da equipe. Fora que neguinho falava que você tinha saído porque roubava. E eu que ensinei todo mundo: Duda, Eazy Nylon, Don Black… E vi uma das pessoas que montou o Chic Show, o Natanael, ser discriminado lá dentro. Aí eu entreguei os discos e saí. Eu não tinha mais como crescer ali dentro. Foi quando eu comecei a tocar nos Jardins. E o Natanael me viu saindo e tomou coragem pra sair. Foi quando começamos a tocar direto no interior, Campinas, Sorocaba, Jundiaí… E montamos o SPDJ, que era uma festa itinerante. E depois nos instalamos no Santana Samba, nas quartas-feiras, e a comunidade abraçou. As festas especiais do mês lotavam, todo mundo queria tocar, mesmos os consagrados. Eram quatro mil pessoas espremidas num cubículo, gente pendurada no exaustor.
KL Jay – Foi a época que o CD começou a se popularizar. E a maioria do pessoal abraçou o CD. Vendeu os toca-discos! Vendeu os discos! O que você via MK2 baratinho vendendo, quase dada!
Nutz – Eu comecei nessa época. O pessoal falava: “Não compra MK2!”. Isso em 92, 93… Antes tinha uma coisa até saudável, de ir todo o fim de semana na Truck’s ver os discos que tinham chegado. Comecei fazendo som em festas, na sexta, sétima série. A equipe chamava DJ Action e eu ouvia as coisas na 105. A equipe acabou e eu conhecia a galera, o centro, a São Bento, e continuei tocando. Comecei a tocar na noite ainda menor de idade.
King – Eu já acompanhava o pessoal montando som, mas só fui entrar mesmo quando vi os Racionais tocando no Tom Tom, uma casa lá em Suzano, que era onde eu morava. Fiquei só olhando o Kléber e depois comecei a seguir o cara, o Humberto, o MC Jack. Como eu morava muito longe, não peguei a São Bento no início, mas ouvia a Zymbabwe, a Black Mad… Comecei nessa época, do Santana Samba, dos shows no Projeto SP. Eu pegava trem e era uma época que eu tinha que andar com um povo, porque tinha os carecas, os white power, que davam porrada. Na época eu trabalhava no banco e conheci o Ico, que tinha um programa de rádio com o Armando Martins na Manchete, e ele vendia as fitas no banco. Foi quando eu comecei a ir nos bailes da Chic Show e ver o Eazy Nylon, o Duda, o Macarrão, o Ney… Na época eu rodava o disco na mão, pra fazer como os caras. Primeiro numa CCE de plástico, depois numa Garrard de madeira.
Hum- Aí as coisas já estavam bem populares, a cultura já era mais conhecida. E a gente montava os shows sem ter informação nenhuma, sem saber como era. A gente só entendeu quando o Public Enemy tocou no Brasil, que tinha um logo, que tinha uma produção… O show do Public Enemy marcou todo mundo.
King – Lembro que a Kazkata’s ia sortear um mixer chorus e eu escrevi 400 cartas pra ganhar (risos). E eu fui burro, devia ter xerocado, mas não, faltei na escola a semana inteira escrevendo aquelas cartas. E quando rolou o sorteio, outro cara, que escreveu 10 cartas, foi sorteado, mas ele não já tinha ido embora. O segundo nome foi o meu e eu já fui com o RG na mão…
KL Jay – Até que ficaram dois anos sem ter o DMC e eu, como todo DJ de hip hop, sabia que havia vários DJs bons e que a minha missão era revelar esses caras. Aí eu troquei uma idéia com o Xis ali no Ponto Chic: “Queria fazer um campeonato de DJs chamado Hip Hop DJ”. Eu tocava no Soweto e disse que as eliminatórias podiam ser lá. Isso já em 97. Perguntei: “Vamo fazer? Eu tou com um dinheiro aqui, você pode dar alguma coisa?”. Ele topou e fizemos. Foi o maior sucesso.
Hum- É legal porque voltou a valorizar o DJ e o vinil. Hoje tem loja, como a Porte Ilegal, que só vende vinil.
KL Jay – O mais importante é que revela muitos caras: o Cia, o próprio Nutz, o King, o Fábio Soares… E é um negócio underground. Não vai pra TV, não é divulgado como aula de DJ de drum’n’bass.
Hum- Quem não conhece a cultura hip hop, descobriu o DJ pela eletrônica. Mas os DJs de eletrônica curtem hip hop. Ninguém fala do Marky tocando na Sound Factory, na Penha, em 98. Ou o Patife abrindo a pista de eletrônica na Toco.
KL Jay – A música eletrônica é muito aceita na periferia.
Hum- Acompanha o meu raciocínio: nos anos 80, o legal era ter uma banda de rock. Já nos 90, era axé e pagode. Agora, século 21, todo mundo quer ser DJ – tem oficina, curso, informação acessível… Mas como hoje não tem mais equipe de som, o pessoal não sabe por onde começar. Tem gente que nunca pegou num disco! E esse é um dos papéis do Hip Hop DJ. O DJ está começando a ser visto não só como um artista, mas como um artista de performance, como um skatista… Mas enquanto a eletrônica tem a mídia e os patrocínios, o hip hop não consegue nada.
KL Jay – No fim a gente nem quer, porque acaba se expandindo sozinho.
King – Hoje eu tou tocando só em casa de classe alta, com ingresso a 50 e 60 reais, em Maresias. Outro dia eu toquei numa festa e quem tava do meu lado era o Chiquinho Scarpa (risos). Sem noção. Ele olhou pra mim, me viu, assim, vestido todo colorido, e isso agrediu o cara. E eu comecei a rir: “Olha onde eu tou, olha quem tá ouvindo meu som”.
Hum- Eu sempre repito uma frase que é do KL Jay – o hip hop pode ter tudo, mas não tem grupo mais unido que os DJs.
King – DJ é igual judeu (risos).
KL Jay – A gente troca idéia, cumprimenta, pergunta que som o outro tá ouvindo e tá tocando. Não tem essa entre nós, mas com os outros caras… A gente tem a mente mais aberta.
Nutz – Pra você ter uma idéia, eu tocava numa festa, mas me tiraram para o King assumir. Não deixei de freqüentar a festa por causa disso.
KL Jay – O DJ é como um disco, redondo, gira e vê todos os lados, em 360º, igual a Terra. Ele toca para 500, 1000, 5 mil pessoas ao mesmo tempo. E conversa com as pessoas, fala usando as mãos, os discos. A gente sabe ir e voltar.
Esta entrevista foi publicada em versão ultrarreduzida na primeira edição da falecida revista Volume01, que está hibernando sabe-se lá até quando. É a primeira vez que ela é publicada na íntegra.
Baladinha de ontem na rua foi classe AA, quem foi, sabe. Por isso, talvez role de novo na quinta, pós-jogo. Se confirmando, eu aviso.
Updeite: E, cariocada, chego hoje sexta de tardede noite no Rio.
Depois de um jogo vagabundo de estréia e um imprevisto de sexta-feira, que tal juntar a comemoração de domingo num Baile R.U.T.S.? Na rua e de graça, o que é melhor. Colem lá, vai ser o bicho…