Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

Crepúsculo dos Deuses (Sunset Boulevard, 1950. EUA). Diretor: Billy Wilder. Elenco: Gloria Swanson, William Holden. 110 min. Por que ver: Se Orson Welles filmasse Cantando na Chuva, o musical de Gene Kelly perderia as canções e a cor para ganhar as sombras e o pesar de Crepúsculo dos Deuses. Talvez o grande filme noir da história de Hollywood, ele confronta todos os elementos do gênero dark e urbano (inveja, cinismo, crimes, falsidade, interesse, negociações paralelas, falta de escrúpulos) com o glamour do star-system da indústria cinematográfica. Crespúsculo começa com um cadáver boiando na piscina de uma mansão em Los Angeles e conta a história de como aquele corpo apareceu ali – para isso, nos apresenta ao trambiqueiro Joe Gills (Holden) e à atriz decadente Norma Desmond (Swanson, a alma do filme, num papel que havia sido cogitado para Greta Garbo e Mae West), que desenvolvem uma relação de interesse mútuo que, à medida em que a conhecemos melhor, se revela falsa e doentia. Gills promete um roteiro para o filme que trará Desmond, estrela do cinema mudo, em decadência comercial, de volta para a frente das câmeras. No decorrer da história, Gills se envolve com a jovem escritora Betty e a partir daí as coisas fogem de controle. Mas nunca de Wilder, que conduz o filme com mão de ferro e cinismo azedo, amparado em atuações precisas e uma ambientação assustadora. Fique atento: Mesmo com pontas de nomes famosos de Hollywood, como o diretor Cecil B. DeMille, o comediante Buster Keaton e a colunista Hedda Hopper, a atuação principal é de Gloria Swanson, que usa das expressões exageradas do cinema mudo para compor uma Norma Desmond caricata, sinistra e perigosa, que revela-se, lentamente, uma psicopata ególatra disposta a fazer tudo pela fama.

A Conversação (The Conversation, 1974, EUA). Diretor: Francis Ford Coppola. Elenco: Gene Hackman, John Cazale, Allen Garfield, Cindy Williams, Teri Garr. 113 min. Por que ver: Basta dizer que é o filme que Coppola fez entre os dois Poderoso Chefão e Apocalipse Now, mas A Conversação é muito mais do que o produto de uma boa fase de um gênio – na verdade, é uma obra-prima muito particular. Acompanhamos o trabalho do detetive Harry Caul (Hackman, em seu melhor papel e filme favorito), um especialista em grampos telefônicos e escutas clandestinas – o melhor, sublinham durante o filme, capaz de registrar uma conversa de duas pessoas em um barco no meio de um lago. Incumbido de gravar um aparente casual papo de um casal que passeia por uma praça movimentada, Caul mobiliza sua equipe, que capta trechos aleatórios da tal conversação do título, que requer diferentes técnicas e aparelhos para ser decifrada. O filme equilibra-se entre o charme vazio registrado por Antonioni em Blow Up e o sonho americano estilhaçado de vez com as fitas de Watergate, que obrigaram Nixon a renunciar. Enquanto Caul trabalha, conhecemos um agente fora-da-lei sem vida pessoal, um detetive noir às claras, sem penumbra para disfarçar o amargo de uma existência vazia e sem sentido. O filme mais europeu de Coppola. Fique atento: À forma com que a conversa entre Mark e Ann vai mudando à medida em que trechos vão se tornando claros, uma dupla homenagem de Coppola à importância da edição em um filme e ao seu editor de som e de imagem, Walter Murch, que foi indicado ao Oscar de melhor som. E à atuação de Hackman, que compõe magistralmente um personagem sem personalidade, escorado na Igreja Católica e no jazz (aprendeu a tocar sax apenas para o filme) como fundações de sua vida. A cena final é free jazz puro, traduzido em imagens.
E mais uma.
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Nem Jeff Beck apazigua o ego do ex-Floyd
Amused to Death é o quarto álbum conceitual da carreira solo de Roger Waters (o sexto, se incluirmos a trilha sonora do filme When the Wind Blows de 1986 e a versão ao vivo para o disco The Wall, do Pink Floyd, encenada sobre os escombros do muro de Berlim, em 1990), lançado originalmente em 1992 e reeditado por aqui graças à passagem do ex-Pink Floyd pelo Brasil. Como seus antecessores, o disco é mais uma obra cabeçuda em que o baixista da cara comprida exercita seus desígnios literários unindo canções intrasigentes entre si – sempre amparados por um bretão sensível nas seis cordas de lá, seja o erudito Ron Geesin (em Music from The Body), o deus Eric Clapton em seus dias de prata (em The Pros and Cons…) ou o discreto Andy Fairweather Low (em Radio K.A.O.S.), todos exercendo o papel que um dia pertenceu a David Gilmour. Amused…, em que Waters aponta sua mira para a televisão, tem o melhor parceiro de Roger até então – ninguém menos que Jeff Beck –, que é colocado quase em segundo plano porque afinal de contas o disco é de Roger Waters e não um dueto entre os dois… E é exatamente essa egolatria típica do homem que um dia foi o cérebro da maior banda de rock em seu tempo que torna o disco um pouco demais, seja nos arranjos, nas letras, no humor, na acidez da crítica. Podia ser menos… Fora que a reedição não acrescenta uma vírgula ao disco original – seja no encarte, faixas bônus, masterização… Nada. Um disco pra bater cartão.
Outra da Rolling Stone de abril.
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Country punk para leigos
Mais uma banda com nome curto vindo da Inglaterra e… opa, o Brakes não é pós-clone de Strokes como seu título faz supor. Gravado em Nashville, o segundo disco da banda, no entanto, tenta fazer pelo country punk o que o novo rock dos anos 00 fizeram pelo pós-punk. Em vão. Seu segundo disco parece uma colcha de retalhos de referências cruas do gênero, com acenos para o alt.country, Supersuckers, Violent Femmes e Minutemen – coisa que qualquer banda brasileira com disposição para o punk caubói tira de letra. Seus melhores momentos talvez sejam os mais aliens (como o andamento ensolarado e o miolo Velvet Underground da faixa-título, enquanto “Mobile Communication” dá saudade do Grandaddy) e as baladas dão vontade que o engano inicial pudesse ser verdade. Qualquer pós-clone de Strokes é melhor do que isso.
Outra resenha das antigas, essa saiu na Play número 5.
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Doze anos se passaram e nada aconteceu ao Fellini. Pioneiro indie brasileiro, a indefectível cult band paulistana volta em versão slim (o núcleo Cadão e Thomas assina todos os créditos do disco) e nem parece que seu último disco saiu em 1990 (o pós-samba Amor Louco). Nesse meio-tempo, Thomas tornou-se correspondente da BBC em Londres e Cadão assumiu a edição de cultura da revista época – enquanto o Fellini descansava no fundo do baú. Ele volta sem perder um milímetro do fôlego tênue das dois vocalistas. Ousando cada vez mais, embora timidamente (a idade nos ensina coisas…), os dois voltam com o que pode ser considerado seu melhor disco, não estivesse o antológico 3 Lugares Diferentes envolto numa mística underground que hoje passa ao largo – certamente, por opção. Afinal, podiam faturar um retorno hermético e bissexto, como bastiões pós-punks do mesmo calibre do grupo (Wire, Pere Ubu, Echo & the Bunnymen) que usam “a volta” como estratégia de marketing. Injetando doses de repetição lírica e saudosismo brasilianista, o grupo faz em Amanhã é Tarde o equivalente dos discos londrinos de Caetano e Gil, no começo dos anos 70. Não seria mal cogitar alguns shows de volta. Nem que seja apenas para ouvir “Gravado no Rio” ao vivo.
Outra resenha da Play, essa saiu no número 3.
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Um dos melhores discos do ano passado (saindo agora no Brasil), o segundo álbum de Ryan Adams (ex-Whiskeytown) não apenas nos dá um contrapontos stonesiano para o beatlesmo de Jeff Tweedy (do Wilco), como entalha um ídolo pop à moda antiga, pronto para fazer sucesso. Mas anos além da adolescência, Adams não está interessado em fazer menininhas gritarem. Disposto a conquistar seu lugar no mercado e na história, ele sintoniza o dial de seu disco na rádio alt.country dos anos 70 e revive parte do country rock estradeiro daquela década, que acabou descambado no dócil soft rock. Falo de um saloon imaginário onde Bob Dylan (de bigodinho Vincent Price) senta-se com sua arma no alpendre, The Band e o Crazy Horse se revezam no palco, Neil Young, Stephen Stills, Gram Parsons e Tom Petty jogam baralho, Roy Orbison atrás do balcão e uma jukebox com apenas dois discos: Exile on Main Street e as Basement Tapes. Como outros novatos antes dele (Springsteen, Cobain, Westerberg, Beck), Adams pede a bênção para cada um dos presentes em citações – timbres de voz, riffs, vocais de apoio, progressões guitarreiras e introspecção caubói. Mas como não está mais na flor da juventude (completa 28 no final do ano), prefere pegar a estrada antes de meter-se a balear alguém, sem correr o risco de sair ferido. O sucesso, para Adams, é poder cantar suas canções do jeito que ele quer. Por isso, estendeu a bandeira americana sobre seu caminhão e colocou um adesivo no pára-choque escrito “OURO”. É uma nação imaginária, um universo particular – mas é o único que lhe interessa.
Mais uma…
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Máquina de groove

Um pouco de história, pra começar? O rock mexicano começou, como o brasileiro, como um arremedo do rock americano, no fim dos anos 50 e assim permaneceu até 1968, quando, devido à ditadura capitaneada pelo partido PRI (Partido Revolucionário Institucional, o mesmo do antigo presidente Carlos Salinas, que conseguiu incluir o país no Nafta e foi acusado de estar envolvido com o tráfico de drogas). Após o assassinato de estudantes pela polícia, o rock começou a se politizar e se interessar por causas sociais, movimento que culminou com o festival de Avándaro, em 1971.
Deste festival surgiu um movimento batizado pela imprensa local de La Nueva Onda, que dividia-se em dois grupos: um composto por conjuntos engajados na política (cujos principais nomes eram os grupos La Malinche e os míticos Caifanes) e outro que só queria diversão (liderado pelos Dangerous Rhythms e pelo Three Souls in My Mind). Mesmo com uma certa popularidade, o rock foi perdendo espaço à medida que a década de setenta corria, muito por conta da repressão autoritária do governo. Parte deste rock sobreviveu na periferia, em festas conhecidas como “hoyos fonquis”. O nome explica tudo: “hoyo” quer dizer, literalmente, “buraco”; e “fonquis” vem da castelhanização de “funky”. Buracos funky, festas que aconteciam em casas abandonadas ou em becos sem saída, que só terminavam quando o dia acabasse. O som? Black music americana, em doses cavalares.
Deste gueto veio a geração do rock mexicano nos anos 80, que historicamente surge após o terremoto de 1985. A principal característica desta nova geração de bandas é o fato de assimilar cultura mexicana e não ter vergonha de cantar em espanhol, sendo o Maldita Vencidad seu principal nome. Esta nova safra rock transformou velhos grupos em novos (o Dangerous Rhythms tornou-se Ritmo Peligroso; Three Souls… virou El Tri) e deu a ignição em todo o rock mexicano atual, que nasce no terceiro disco do grupo Botellita. Este era uma espécie de Raimundos do México, misturando ritmos americanos à cultura nacional (flertando tanto com o folclore quanto com a subcultura televisiva e o comportamento brega do mexicano) com doses de humor grosseiro. Seu terceiro álbum foi um marco: batizado com o impressionante trocadilho Naco Es Chido (que pode ser traduzido por A Estética das Massas é Legal, Lixo é Combustível e Marrom é Lindo), o disco deu origem a uma geração de músicos que manda nas paradas mexicanas atualmente e entra pelas portas dos fundos nos Estados Unidos com o rótulo de “Rock En Español”. Entre os principais grupos, estão Café Tacuba, La Lupita, Cuca, Mana, La Castañeda, Plastilina Mosh, Fobia, Santa Sabina, entre outros.
Chegamos então ao Titan (finalmente!). Surgido no começo da década, o grupo era a continuação do trio experimental Melamina Ponderosa, que fez fama e inimigos ao casar funk com instrumentos eletrônicos e música de vanguarda nos anos 80. Formado pelo guitarrista Julián Lede e pelo tecladista Emilio Acevedo, o Titan tornou-se um trio com a entrada de Jay de La Cuerva (ex-Fobia e ex-Microchips). Todos os três integrantes eram freqüentadores das “hoyos fonquis” e tornou-se inevitável que o grupo se tornasse uma máquina de groove.
Em seu segundo disco, Elevator, inexplicavelmente lançado no Brasil, o grupo prova a inevitabilidade. A fórmula parece simples: o casamento de um irresistível baixo com uma bateria precisa, acompanhado de solos de teclados e guitarras que parecem ter saído dos anos 70. Com vocais repetitivos e constantes, Elevator também pede licença à disco music pela apropriação indevida. Mas o resultado final passa longe do pastiche funk que a fórmula parece trazer.
Indo para o mesmo rumo que o Beck foi em Midnite Vultures, o Titan só assume compromisso com o groove e convida todo mundo pra festa – se o disco fosse um Elevator que se propõe no nome, não subiria com tanto peso ao mesmo tempo. A intenção deve ser esta (“get down”, reza a cartilha funk) e todos cedem à gravidade dos graves: surf music com new wave (1,2,3,4), electro e disco music (“C’Mon Feel the Noise”), Parliament com Carole King (“Corazón”), música mexicana e bateria jazz (“Honey”), guitarras distorcidas num funk James Brown (“King Kong”) e funk sci-fi (“Vaquero”). Mas alguns dos melhores momentos do disco estão nos que apenas nos fazem dançar, sem pensar em referências: “Battle Love” (em que o ritmo parece um pneu de caminhão rasgando o asfalto), “1000 Ninjas” (um monstro boogie), “P.E.C.” (a única com letra, mesmo que apenas “Puta Madre guey iba en un Draxter Guey/ Punk-Exorcista-Caterpillar”), “The Future” (onde sapos cibernéticos conduzem o groove em forma de baixo), “Sawright” (algo como Master P remixado pelo Bomb Squad, do Public Enemy) e “La Frecuencia del Amor” (seu próprio big beat).
Como os nomes das músicas fazem crer (“A Freqüência do Amor”, “Venha Sentir o Barulho”, “Mel”, “O Futuro”), o grupo não está muito interessado em contar histórias, apenas na experiência de dançar. Caprichando no groove do mesmo jeito que calibram as amizades (foram convidados a abrir shows pro Jon Spencer Blues Explosion e alguns dos integrantes do grupo Sukia – apadrinhados pelos Dust Brothers – dão as caras pelo disco), o Titan tem um universo inteiro para construir. Se você por acaso trombar com esse disquinho por aí, não pense duas vezes. Porque o elevador estiver descendo – e só deus sabe pra onde -, deixa descer. Curta o passeio.
Mais uma resenha ressuscitada.
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“Você fica esquisito numa banda”. Desculpa esfarrapada, isso é só Shaun Ryder disfarçando no começo do terceiro disco dos Happy Mondays, Pills’n’Thrills and Bellyaches, lançado no final de março de 1990. É claro que a afirmação é verdadeira e basta pensar em qualquer conjunto de rock que fez sucesso para ver o que acontece com as pessoas que compõem o tal grupo – “esquisito (spooky)” – é pouco. Mas a corja de malandros arruaceiros que saiu do mesmo squat em Manchester já era mais do que estranha antes mesmo de pensar em formar um grupo.
Ryder, seu irmão Paul, Paul Davis, Mark Berry e Gary Whilam já eram um conjunto de rock antes mesmo de fazer música. Agiam em conjunto, atacavam festas e eventos estudantis como uma gangue – sempre todos ao mesmo tempo, como se fossem personalidades diferentes de uma mesma pessoa. Uma pessoa carismática e encrenqueira, daqueles tipos que fazem brigas surgir dos lugares menos esperados e as transformam numa grande piada, antes mesmo do primeiro soco. Shaun Ryder era a encarnação perfeita deste sujeito e quando viu que balbuciava letras legais sobre a música dos outros, convenceu os outros a tocarem numa banda. Seu irmão assumiu o baixo, PD já tocava teclados e Gaz ficou com a bateria. Faltava uma guitarra e Berry não tocava nenhum instrumento. Convocaram um amigo da noite, Mark “Moose” Day, e a formação estava completa. Mark continuaria no grupo, fazendo, ao lado dos amigos, o que sabia fazer melhor: ser ele mesmo – o Bez.
Eles representavam a linha de frente de uma nova geração que surgia em Manchester. Fomentada pela boate Haçienda, do gravadora Factory e do grupo New Order, a vida noturna da cidade aos poucos ia fugindo do padrão pub/casa de shows que a maioria das cidades inglesas estava acostumada. As boates eram mais ecléticas que as extintas discotecas e era possível ouvir não apenas dance music como rock’n’roll. Temperada com as mesmas doses de guitarras inglesas e groove americano, a cena noturna de Manchester começou a ser cada vez mais ampla e tipos de diferentes tribos se entendiam no compasso da dança. O Haçienda era o templo desta vida notívaga. Ponto de referência até mesmo fora da Inglaterra, a casa passou a ter uma aura mágica, que outras casas noturnas pelo planeta tentavam imitar. Mas o ponto crucial desta mística ao redor da boate era uma nova droga, o MDMA, uma pastilha de anfentamina anteriormente usada como afrodisíaco. Usando uma música do New Order para ser aceito pela massa sem o tabu da sigla médica, o ecstasy mais tarde ganharia sua própria sigla urbana – um simples E maiúsculo, código para as incursões anfentaminadélicas que a droga proporcionava.
Os Happy Mondays (nome tirado de outra música do New Order – “Blue Monday”) eram uma espécie de elite bastarda desta cultura. Embora fizessem parte dos personagens mais típicos e conhecidos da noite, eles eram briguentos e gritalhões, se embebedavam à medida que se drogavam, transavam nos banheiros e dançavam até cair. Misto de hooligans com b-boys, eles tinham até uniforme: tênis vagabundo, camisetas listradas na horizontal, franjas compridas e calças largas, baggy. Quando Tony Wilson, dono da Factory, descobriu que aqueles lunáticos tinham uma banda, não titubeou em contratá-los e fazer de tudo para que se tornassem uma das maiores bandas de rock de todos os tempos. Ou que ao menos fizessem o mesmo estrago de uma dessas.
Era fácil. Com o Velvet Underground John Cale na produção, logo lançaram seu primeiro LP, Squirrel And G-Man Twenty Four Hour Party People Plastic Face Carnt Smile (White Out), em 1987. Embora bem recebidos pela crítica, o disco não emplacou. Mas não era motivo para parar. Wilson pôs Martin Harnett (o principal produtor da Factory) para dar um jeito no grupo e este acertou no ponto exato ao introduzir o elemento funk ao rock nortista com rap preguiçoso que caracterizava o som do grupo. Com seu segundo álbum, Bummed, o grupo conseguiu ser notado graças ao hit “Wrote for Luck”. Outro nome ilustre ajudaria o grupo a encontrar seu caminho: Vince Clark, do Erasure, acrescentou a batida house à faixa, transformando num pequeno sucesso nas pistas. Tudo se encaixava na cabeça de Tony Wilson: rock britânico, funk, house music… Os Mondays seriam a banda símbolo da geração Haçienda.
Para o terceiro disco do grupo, os produtores exatos – revelações das incipientes raves urbanas, os DJs Paul Oakenfolds e Steve Osborne encararam os Mondays de igual pra igual. Encharcados de drogas e com sexo saindo pelo ladrão, produtores e banda se enfiaram num projeto pessoal que mudariam suas vidas – e a história do rock. Estúdio de dia, festas à noite – e logo esta equação perdia o sentido, à medida que eles iam dormindo menos e misturando dia e noite, festa e estúdio. Nascia o clássico Pills’n’Thrills and Bellyaches e o principal movimento inglês dos anos 80. Nasciam os anos 90.
O hedonismo setentista desbravado pelos Happy Mondays em seu principal álbum era o mesmo que originaria o Primal Scream, as raves campestres, Quentin Tarantino, Trainspotting, Boogie Nights e a redescoberta do funk e da discoteca. Ao mesmo tempo, ajudava a galvanizar o rock inglês que culminaria com o britpop e as cenas de big beat e trip hop. Sim, eles passeavam pela mesma Paul’s Boutique que os Beastie Boys inauguraram um ano antes, antevendo a década vindoura como um paraíso de sexo, ritmo e noites viradas ainda mais intensa que os anos 60 e 70.
Mas eles não eram os únicos na cena. Da mesma Manchester sairiam os Stone Roses, os Inspiral Carperts e os Charlatans. Os primeiros surgiam como os grandes nomes da cena porque agregavam elementos de rock clássico, reverenciando a psicodelia do verão do amor e dizendo-se “a maior banda de todos os tempos”. Os Carpets tinham Noel Gallagher como roadie, onde ele aprendeu as artimanhas do showbusiness e inventou seu próprio marketing poucos anos depois, com o Oasis. E os Charlatans são os únicos que continuam na ativa, fazendo o elo perdido entre a geração baggy e o britpop.
Baggy? A culpa era das calças largas, mas este novo gênero nunca encontrou um rótulo específico. Uns chamam de indie dance (por unir rock independente e dance music), outros de baggy rock e um trocadilho mapeava geograficamente a cena. Madchester se tornou um termo comum na imprensa musical no final dos anos 80. Mas todas as outras bandas eram comportadas e inofensivas o suficiente para serem arquivadas juntos com o Deee-Lite (que pertencem à outra elite), os Soup Dragons e os EMF. Apenas os Mondays davam à Madchester a cota de loucura para poder ser chamada de “mad (louco)”. Diz o DJ John Peel: “os Mondays são a única banda a qual eu aplicaria o termo Madchester”.
Afinal, a noite não era só uma celebração. Era uma festa como outra qualquer, com velhos hits de discoteca, palavrões, brigas, bebedeiras, overdoses, gente transando, gente dançando, quase todo mundo com os olhos semicerrados à luz orbital do globo espelhado. A perda de sentidos nos faz fazer coisas boas e ruins – mas não tem problema, o que importa é estar lá. Em seu terceiro álbum, os Mondays eram este lá.
Pills… começa com a clássica “Kinky Afro”, o primeiro single do álbum, algo como se o New Order regravasse alguma música do disco Sticky Fingers, dos Rolling Stones. “Eu não tenho nenhum osso decente em mim/ O que você tem é o que está vendo”, sussurra Shaun, ainda magro e com franja, “eu não entendo o que você está dizendo/ Vai, diz aí/ Vem cá e me diz de novo”. O grito que abre o refrão (“Yipe-yipe-ai-ai-ye-ye-yeah”) vem emprestado do hino disco “Lady Marmalade”, da cantora Labelle, e o clima mistura funk, rock e house com o mesmo frescor das noites da Haçienda. Como Tony Wilson havia imaginado.
“God’s Cop” continua o clima de autocelebração e funk rock eletrônico, com Shaun pedindo aos céus pra ajeitar as coisas pro seu lado: “Deus, facilita/ Deus, facilita pra mim/ Deus, que chovam Es/ Deus, que chovam Es em mim”. Pedido aparentemente atendido, o vocalista começa a tirar onda de sua intimidade com o cara de cima. “Porque eu e o chefe somos quase irmãos/ Eu e o chefe ficamos chapados devagar”. A repetição do ritmo e do groove é a arma secreta que faz Oakenfold até hoje ser considerado um dos melhores DJs do mundo e ele exercita-a por todo disco, começando pela seqüência final.
“Seis vagabundos num hotel vazio/ Cada um deles com uma história pra contar/ Dê-lhe pílulas para suas cabeças não pararem”, “Donovan” – batizada em homenagem ao baladeiro folk dos anos 60, com quem excursionaram antes de Pills ser lançado – começa lenta e macia, um groove funk caribenho que serve de base para Ryder inventar a história de sua banda, “meu bando partiu e voltou pro inferno/ Então abri as janelas pra não começar a feder/ Continue fazendo o que estava, porque isso você não faz direito”. Os Mondays fazem todos notívagos se sentirem um pouco marginais, por freqüentarem este ambiente de crimes, dinheiro e sexo gratuito, como uma forma de livrar um pouco sua própria cara.
Mas esta não é sua preocupação. Em “Grandbags Funeral”, ele é forçado a viver seu momento careta no enterro de um avô e pergunta-se porque tanta comoção: “Foi só o avô que morreu/ Ele não sabia o que você fazia/ E todos seus amigos eram brancos”. “Loose Fit” deixa a percussão latina assumir o controle e o ritmo diminui – como a tolerância de Ryder aos outros. “Faça o que estiver fazendo/ Diga o que estiver dizendo/ Vá onde estiver indo/ Pense o que estiver pensando/ Gaste o que tem/ Pague o que pode/ Olhe para onde estiver indo/ Diga o que estiver pensando/ Mate quem estiver matando/ Cante se estiver cantando/ Fale se estiver falando/ Pra mim, tudo bem”. Estamos em plena pista de dança e a sensação é que isto nunca vai acabar. “Right on, right on”, incita “Dennis and Lois”, na mesma sintonia.
“O que você quer ouvir quando faz amor?”, pergunta sussurrando o vocalista, enquanto a dupla de produtores embala um funk lento e sinuoso com acento latino na semipornográfica “Bobs Yer Uncle”, escrita a pedido de Oakenfold (“faça uma sexy para as senhoritas…”). “Step On” ressuscita “He’s Gonna Step on You Again”, de John Kongo, e transformou-se no segundo single do disco. “Holiday” dá uma batida no ouvinte numa praia deserta, enquanto Ryder preocupa-se porque “cheira à droga”. “Harmony” termina o disco em grande estilo, psicodelia com noise do Velvet Underground repetida como um mantra, ela serve de base para Ryder dar a receita da felicidade: “Eu gostaria de ensinar o mundo a cantar em perfeita harmonia/ Corte em pedacinhos/ E dê-os de graça/ (…) O que precisamos é de um grande pote/ Grande o suficiente para cozinhar toda maravilhosa/ Bela, convincente, amável idéia que tivermos”. O detalhe é que “pot”, em inglês pode ser “pote” ou “maconha”.
Musicalmente, o disco obedece à mesma infalível fórmula: guitarras psicodélicas como se fossem tocadas pelo Velvet Underground (ou pelo Jesus & Mary Chain), quilos de teclados legais usados com bom gosto (Hammond, piano, Fender Rhodes, tudo com um pé no soul), um tremendo groove de baixo (geralmente recauchutado pelo estúdio), uma bateria firme e fixa (que também recebia tratamento mecânico pelos dois produtores) e eventuais backing vocals e efeitos. As técnicas de produção seguiam tendências vindas de diferentes fontes: do dub jamaicano, dos DJs nova-iorquinos e de Detroit, das novas possibilidades do sampler (recém-lançado então) e da Stax. O caldeirão de suíngue dos Happy Mondays borbulha na temperatura certa em seu terceiro disco.
O excesso de Kentucky Fried Chicken (a gíria da banda para heroína) fez com que o sucesso dos Mondays fugisse do controle. No auge, o grupo chegou até a tocar no Brasil, com Ryder anunciando à imprensa que desceria para cá com “10 mil pílulas de ecstasy”, para aflição da polícia brasileira. O quarto álbum do grupo, Yes Please, custaria 250 mil dólares para ser gravado em alguma ilha paradisíaca nas Bahamas, com o casal Tom Tom Club (Chris Franz e Tina Weymouth, a cozinha dos Talking Heads) na produção. O disco afundou em todos os sentidos e a banda cedeu à gravidade. Por volta de 1993 ela implodiu de vez. Ryder reapareceria em 1995 com um novo grupo, o Black Grape (também com Bez), uma espécie de reencarnação dos Mondays. Mas mesmo com um excelente disco de estréia, seria difícil barrar os dias de ouro de Madchester. As cores da psicodelia vinham em flyers e comerciais, como insinuava a colagem da capa. Era a cultura rave começando a nascer, em meio às drogas e o idealismo semelhante aos que alimentaram as gerações hippie e punk. Poucos poderiam prever que o futuro pertenceria ao universo traçado pelos Happy Mondays em Pills’n’Thrills and Bellyaches. Talvez apenas eles mesmos soubessem.
Materinha com o Capital pra Rolling Stone de abril. A resenha do disco você lê aqui.
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Agora pra sempre
Tocando para uma nova geração de fãs, o Capital Inicial vive os paradoxos entre a mocidade e a velha guarda e compara sua trajetória com a de Aerosmith e Ramones. Musicalmente juvenil e profissionalmente veterana, eles são uma banda de rock popular brasileiro
Por algum motivo, o Capital Inicial me lembra John Travolta. Sim, é inevitável pensar nos embalos de sábado à noite ao som do primeiro disco do grupo, um dos raros momentos em que o pós-punk brasileiro flertou com a música pop. Enquanto na Inglaterra e nos EUA, quem conseguiu se levantar da briga do punk lentamente dominou as paradas de sucesso (U2, Echo & the Bunnymen, Cure, Talking Heads), no Brasil o gênero que se levantou das cinzas dos Sex Pistols sempre foi visto como um artefato apenas experimental, aparelho de tortura musical em que jornalistas aspirantes a roqueiros tentaram a fama cult. Menos nos dois discos que colocaram Brasília no mapa pop brasileiro: as estréias homônimas de Legião Urbana e do Capital Inicial.
O Capital de hoje, por outro lado, ainda não dança com Uma Thurman em um filme do Tarantino. Pelo contrário, sua segunda vinda ainda está estagnada em algum momento entre um recomeço moderado (Atrás dos Olhos, o disco do retorno em 1998, é musicalmente próximo de Eletricidade, de 1991, o último disco antes da saída do vocalista Dinho Ouro-Preto, e é o modelo ao redor do qual eles reinventaram a banda) e uma versão branda da máquina de nostalgia dos anos 80 (em dois projetos com a MTV, o Acústico, lançado no ano 2000, e o especial sobre o Aborto Elétrico, em 2005). Estamos assistindo às diferentes continuações de Olha Quem Está Falando.
Pra quem passa sem olhar, o renascimento do Capital é apenas John Travolta conversando com um bebê. Quem viu o filme, no entanto, sabe que o truque é justo o contrário: Travolta näo se esforça para ser entendido pelo bebê, e sim conversa com ele como se ele fosse qualquer outra pessoa. É o único jeito que ele sabe falar, é a única coisa que ele pode fazer.
“Agora/ Pra sempre/ Vou embora, mas eu nunca disse adeus”, canta a faixa-título do novo disco da banda, Eu Nunca Disse Adeus, num dos inúmeros paradoxos entre mocidade e velha guarda que são transformados em frases de efeito pelas letras do décimo segundo disco da carreira da banda de Brasília. Musicalmente, a introdução da nova canção de trabalho acena para “American Pie”, o hino de Don McLean sobre a primeira morte do rock, quando a notícia da queda do avião de Buddy Holly imortaliza o gênero na adolescência da cultura popular. Problema das bandas de rock que viveram para além de sua juventude. Uma equação particular, que cada grupo soluciona à sua maneira, mas que inevitavelmente leva para o mesmo resultado: profissão roqueiro, arte burocrática.
Encontro a banda numa ocasião formal, uma entrevista acertada para a divulgação do novo produto com a marca da banda. Emails trocados, fotos marcadas, datas ajustadas e minha vez de falar com os quatro integrantes acontece no final de uma rodada de três dias de entrevistas. Matérias lentamente começam a aparecer aqui e ali, primeiro em sites, depois em jornais e revistas, logo na TV. Há pouco menos de uma década, este encontro aconteceria em um espaçoso escritório com vista para a zona oeste paulistana, mas hoje o que sobrou da Sony e da BMG funciona no mesmo prédio da Sonopress, num quarteirão no meio do nada na Barra Funda, em São Paulo. O humor da mudança é a ironia: antes a banda era inexperiente e passeava inconseqüente pelos corredores das multinacionais que já a tiveram em seu elenco; hoje, veteranos, os integrantes do Capital reúnem-se sérios como um dos nomes que ainda ajuda esta instituição semimorta – a gravadora de discos – manter-se funcionando.
Eles terminam um papo com a equipe de um portal de internet e a assessora do grupo me chama para a sala de reuniões. Primeiro, rápidos cumprimentos e logo nos posicionamos numa longa mesa, O baterista Fê Lemos, o guitarrista Yves Passarelli e o baixista Flávio Lemos sentam-se lado a lado, e deixam a cabeceira da mesa para o vocalista Dinho Ouro-Preto. Deve ser força do hábito. Afinal, logo que o gravador é ligado, ele insiste em conduzir o papo. Ele gesticula, arregala os olhos, afeta as palavras em inglês para enfatizar sua pronúncia original – domina a conversa, e mesmo com os outros três quartos do Capital presentes em cada brecha prontos para “abrir um parêntese” ou “falar outra coisa”, ele não deixa de querer ser o centro das atenções e a voz da história. Normal: coisa de vocalista.
Seu ego, no entanto, parece domado, passadas décadas dos dias de glória como garoto-propaganda de uma banda-símbolo da safra de novas bandas que invadiu o rádio e a TV na década de 80. E o que poderia ser uma extensa digressão sobre sua própria influência na história da humanidade torna-se uma espécie de terapia em voz alta, em que ele lista mea-culpas, busca referências do passado ao fazer ressalvas sobre a lembrança ser apenas sua versão – e não a definitiva – dos fatos e sublinha, seguidas vezes, que a primeira fase da banda foi marcada por uma seqüência de erros que afundou o grupo no começo dos anos 90 e também é responsável pela estabilidade do grupo após seu retorno, de 1998 até hoje.
Por outro lado, os irmãos Flavio e Fê Lemos e o mais novo integrante da banda, o ex-Viper Yves (que assumiu as guitarras quando um dos fundadores da banda, Loro Jones, deixou o barco em 2002, após a bem-sucedida turnê do Acústico MTV do grupo), o deixam falar à vontade. Uma entrevista com o grupo é um pocket-show do Capital Inicial sem música e os três sabem que o importante é deixar o vocalista fazer o que sabe melhor – e dar entrevista é uma tarefa tão natural para Dinho quanto fazer um show, é uma parte do showbusiness tão importante para o artista. Embora o soltem, puxam o assunto de volta sempre que esbarram em temas como a identidade musical da banda, as limitações técnicas como instrumentistas e a imaturidade durante os anos 80.
“Perdi as vezes que amigos chegam pra mim e falam baixinho”, ele reclina-se como se fosse contar um segredo. “‘Seja sincero, você gosta de Caetano Veloso?'”. Pequena pausa para dramatizar o momento – tudo inconscientemente estudado, pronto para a frase de efeito: “Eu odeio Caetano Veloso!”, diz e ri, enquanto conserta uma possível controvérsia de ocasião – afinal, mesmo do lado de lá da vitrine há um quarto de século, Dinho pertence a uma geração de artista que mede as palavras como se quisesse editar o jornalista – típico de outros comunicadores dos anos 80, como Humberto Gessinger, Lobão, Paulo Ricardo e Renato Russo, compositores que inverteram o adágio e, por pouco, não sacralizam que “todo roqueiro é um crítico frustrado”. “Quer dizer, pessoalmente, ele é muito gentil, educado, de uma simpatia transbordante”, remenda. “Mas eu não gosto de MPB!”, retoma com o mesmo afinco, sem personalizar no velho baiano a sigla que é quase sinônimo de mainstream “sério” no Brasil.
“Tem gente que pergunta se fazemos um esforço pra nos comunicar com um público jovem. Não, a gente faz o que sempre fez. O Joey Ramone morreu com a minha idade – imagina se se os últimos discos dos Ramones tivessem ficado adultos, com temas adultos… O Sting fez isso e deu no que deu – não é à toa que ele voltou com o Police, porque é o único jeito que vão lembrar dele”, segue o vocalista.
Mas o rock que hoje o Capital defende não é tão distante da MPB – em dois sentidos. Primeiro, por tratar a rebeldia ou a balada como produto vendável, com um certificado de qualidade dúbio, resumido no próprio nome do artista, cujo peso varia entre o impacto deste no imaginário coletivo e no mercado da música; ou seja, em nós. Depois, se lembrarmos do que era o negócio fonográfico ao começar seu diálogo com o público adolescente, encontramos os nomes que formam o Olimpo deste novo império (Phil Spector, Brian Wilson, os Beatles, a Motown, os Stones, Burt Bacharach, Roberto e Erasmo) ralando de sol a sol, lançando canções e discos num ritmo industrial, longe do inconformismo contra “o sistema” ou de ataques de estrelismo.
Esta solução transforma a atual música pop nesta instituição lenta e sorridente, uma corporação global do bom-mocismo. O que antes era uma manifestação subversiva de adolescentes querendo se divertir a qualquer custo, agora é uma máquina de franchising de longevidade profissa. Seja Aerosmith, Red Hot Chili Peppers, Coldplay ou Skank. Ao atingir essa maturidade inofensiva e abrir mão de seus elementos de maior risco (estes hoje estão dispersos em MP3s anônimos de pseudônimos de semicelebridades em blogs indies ou em servidores de multinacionais das telecomunicações), o pop dos anos 00 chega a uma morosidade semelhante à que a sigla MPB condiciona a música brasileira à realidade pós-bossa nova – onde tudo que não é MPB não é sério, nem merece entrar para a história.
Por outro lado, a banda não é mais uma caricatura distorcida do que era uma banda pop nos anos 80. Seu renascimento no final dos anos 90, aos poucos apaga a tragicômica carreira da banda em seus primeiros dias. A maturidade atual, por outro lado, é sempre festejada e compartilhada entre os três integrantes iniciais, que sempre que falam dos motivos do sucesso do final dos anos 90, convergem para a acertada decisão em construir uma carreira de novo a partir dos elementos iniciais, em vez de adaptar-se à cena sem imaginação de nostalgia da década de 80 ou tentar reinventar-se pela quinta ou sexta vez. Mas por outro lado, é difícil imaginar que isso seja uma tática – eles acreditam mesmo que não há problema em fazer rock depois dos 40 anos.
O título do novo disco – o 12º da carreira e o sexto desde a volta – é fruto desta convicção. Eu Nunca Disse Adeus diz respeito à disposição da banda em continuar firme no território da eterna fuga do rock’n’roll. Dinho começa a explicar-se: “No começo da carreira nós nos desentendíamos muito e éramos desleixados com as coisas que produzíamos, daí a irregularidade dos primeiros discos, que é fruto de uma certa omissão, coisas que eram feitas sem nossa supervisão, e da nossa auto-indulgência, quando achávamos que tudo que fizéssemos tava bom. Isso fez com que a carreira fosse errática nos anos 80”.
Na nova fase, uma renovação considerável de público afasta o Capital do fantasma dos anos 80 e os posiciona como uma banda de rock popular – musicalmente juvenil e profissionalmente veterana. “Acho que parecemos o Aerosmith”, explica Dinho, “muito por termos cagado tudo quando fizemos sucesso da primeira vez, mas também pela forma como retomamos nossa carreira. Quando eles voltaram, estavam idênticos ao que eram. O Pump e o Get a Grip, que são os discos de volta do Aerosmith, são muito parecidos com os clássicos deles, o Toys in the Attic, Rocks…”.
O Capital Inicial é um dos pilares do rock de Brasília, quando a cidade ainda tinha vinte e poucos anos e começava a entrar no imaginário nacional como algo mais vivo que apenas a sede do poder federal. Os irmãos Fê e Flávio passaram 1977 em Londres, viram o punk nascer e mandavam fitas cassetes para os amigos da cidade que haviam descoberto o gênero pelas páginas de revistas importadas. Fê voltou com uma bateria e lançou a pedra fundamental do rock da cidade, o grupo Aborto Elétrico, que ainda contava com o baixista André Pretorius e o vocalista Renato Russo, o primeiro passo da carreira do sujeito. A banda implodiu ainda no começo dos anos 80, quando Russo saiu para fundar a Legião Urbana (depois de uma breve carreira solo) e Fê seguiu para criar o Capital Inicial. Era o início do punk de Brasília, que ainda teria bandas como Blitz 64, Metralhas, XXX e Plebe Rude entre seus primeiros protagonistas.
Dinho – que começou na minúscula cena da cidade como editor de um fanzine (chamado “Fan Zine”) – era só um fã quando Heloísa Teixeira ainda cantava na banda, mas o vocalista curitibano foi convidado para entrar no grupo e se estabeleceu como frontman e Capital firmou-se como um dos principais nomes da cidade. Isso acontece ao mesmo tempo em que o rock brasileiro se torna a trilha sonora para o fim da ditadura militar e toda uma geração encontra espaço para se estabelecer com a nova música popular brasileira. O novo rock bate de frente com a MPB e apresenta um novo público para o mercado brasileiro de discos. Fenômeno de massas, a geração 80 floresce em diferentes cidades e ergue dezenas de grupos para o topo das paradas de sucesso, devolvendo-os logo em seguida para o anonimato.
O fato de ser citado em qualquer antologia de música brasileira dos anos 80 não faz com que o Capital Inicial seja uma de suas principais bandas. Ser um dos principais coadjuvantes (ao lado da Plebe Rude) da cena que revelou a banda de rock mais popular do Brasil fez com que o grupo de Dinho e dos irmãos Lemos se tornasse referência, mas seu impacto musical é reduzido e restrito a hits esparsos numa discografia irregular, que só se estabiliza após a volta, em 1998. “A entrada do Bozzo (Barretti, tecladista efetivado como integrante do grupo a partir do segundo disco, Independência, de 1987) desequilibra tudo”, Dinho admite e abre o confessionário da entrevista. “Ele era músico de formação, trabalhou com o Arrigo Barnabé e ele pegava no pé de todo mundo. Isso intimidava a gente. Ele não tinha a nossa origem, não era de Brasília, nunca tinha ouvido punk, não conseguia ouvir Cure! Ele falava que o Robert Smith era desafinado! Ele entra em 87 e eu confesso, muito por decisão e influência minha. Eu não sabia escrever, não sabia cantar, não sabia tocar nenhum instrumento e achava que o Capital seria incapaz de dar uma seqüência à nossa carreira se não tivéssemos um músico que conhecesse música. Foi nosso maior erro… Não pelo Bozzo como pessoa, mas foi um grande erro conceitual, em relação à minha insegurança”.
“E em 87,a gente assinou com o (empresário de shows Manoel) Poladian e fez a turnê do Sting no Brasil. E o grande lance era esse, ‘o Capital ia abrir os shows do Sting!'”, lembra o baterista. “E o Sting chegou com aquele show jazzístico, sem os sucessos do Police e não agradou à platéia. E por outro lado, tinha o Capital com ‘Música Urbana’, ‘Fátima’ e ‘Independência’ e mesmo tocando na beiradinha do palco, com 30% do som, sem passagem de som e ainda dia, a gente consegue agradar a galera. A gente se sai bem da turnê. Lançamos o ‘Independência’, abrimos bem a turnê do Sting, contratados pelo maior empresário do Brasil. E o Poladian deixou a gente três longos meses sem fazer nada. Passou outubro, novembro… ‘Vamos começar a nossa?’. E eles adiavam. Virou o ano e fomos conversar sobre ‘o primeiro show da grandiosa turnê do Capital’, no dia 25 de janeiro, aniversário da cidade de São Paulo”. “Com a Fafá de Belém!”, emenda Flávio, rindo.
“Aí a gente ficou com teorias de conspiração, que o cara tinha contratado a gente para nos tirar do cenário e não atrapalhar o sucesso do RPM, que também era contratado dele. Até hoje eu não consigo entender. E aí acontecem duas coisas: no momento em que o Capital tava mais bombado, a gente parou de fazer shows, e o disco seguinte que a gente faz é um desastre absoluto”, admite o vocalista. Fê tenta botar panos quentes: “…que poderia ter sido salvo se tivéssemos trabalhado o single um pouco mais…”. “Ou se a gente estivesse na gravação, se a gente tivesse tirado aqueles metais todos, diminuído os teclados… A culpa foi toda nossa”, segue o vocalista. “O terceiro disco (Você Não Precisa Entender, de 1989) é um consenso entre nós, foi o nosso maior erro. Pra você ter idéia, enquanto o disco tava sendo feito, a gente tava cheirando cocaína em cima do piano. A gente tava pouco se fudendo, cara. Enquanto rolava a mixagem, a gente tava bêbado na piscina do hotel. Mas quando a gente foi ouvir o negócio… O Bozzo tinha enchido de metais do começo ao fim, teclados pra tudo que é lado. E já tinha sido! Já tinha ido pra loja!”.
“Não é que tudo foi ruim, mas nos anos 80 foi tudo muito irregular”, continua. “e por ter essa insegurança generalizada que nos caracterizou nos anos 80, quando surgiu o grunge, a gente desabou de uma vez. E não sabíamos mais o que fazer. Porque o grunge era mais ou menos o que nós éramos no começo dos anos 80, mas dessa vez a gente era o inimigo! Nós éramos o alvo da chacota, nós que devíamos ser aliados dos caras. Foi quando a gente viu que desandou tudo, e que era melhor parar e procurar outros rumos”.
“No começo dos anos 90, aconteceu o renascimento do metal e aparece a bateria de dois bumbos e toda banda de rock que se prezasse tinha que ter bateria com dois bumbos”, lembra Fê. “Eu não sabia tocar direito com um, mas fui lá, comprei meu pedal duplo e passei um ano com aquela geringonça que não tinha nada a ver com o som do Capital! Mas todas as bandas tinham que ter dois bumbos… Quando a gente abriu pro A-ha no Rock in Rio II, eu não conseguia tocar as músicas tradicionais do Capital porque tinha que usar os dois bumbos e eu não sabia usar um só e ficou desastre completo!”.
“Quando desanda esse negócio com o grunge, a gente passa a sentir vergonha do que tinha feito”, continua Dinho, para começar a falar sobre o renascimento da banda, com sua formação original. Na primeira metade dos anos 90, o Capital sobrevive com o vocalista Murilo Lima no lugar de Dinho, que parte para a formação de uma nova banda (Vertigo), e em seguida lança seu único disco solo, enquanto a banda lança dois discos independentes sem nenhuma repercussão. Até que Loro passa a freqüentar o estúdio do produtor iugoslavo Mitar Subotic (o Suba, 1961-1999), em São Paulo, com quem Dinho já trabalhava. O guitarrista havia saído do grupo em 97 e ao voltar a conversar com Ouro-Preto, passa a cogitar a hipótese da formação original voltar. “Foi uma merda como acabou. Muita frustração, né? A gente tinha empenhado toda nossa juventude naquilo, olhava pra trás e via onde tinha errado e via nossos companheiros seguindo carreira… Era muito frustrante e essa frustração fez com que cada um de nós culpasse um ao outro”, lembra o vocalista.
E em março de 98, depois de quatro anos e meio sem se falar, os irmãos Lemos e Dinho se reaproximam e a volta do Capital Inicial começa a ser pensada. “A gente voltou devagar e, aos trancos e barrancos, fez uns shows, totalmente pautados em nostalgia”, continua Dinho, “mas logo surge a possibilidade de gravar e é ali que a gente percebe que o único modo de continuarmos era se compuséssemos um repertório novo – já tínhamos feito uma turnê com as canções velhas e aquilo não ia longe. Não tinha opção – não dava pra fazer disco ao vivo ou remix… A única solução para voltar era compor coisas novas. E o Atrás dos Olhos, que é esse disco de 1998, tem uma repercussão surpreendente. O disco saiu no final de 98 pela gravadora Abril Music, e o ano seguinte fizemos 70 shows, em todas capitais, fizemos o Palace lotado, duas vezes no ano… Começa a aparecer garotada, de 15, 16 anos… ”
E assim renasce o Capital Inicial, que aproveita a boa repercussão do disco para emendar um Acústico MTV no ano 2000, disco que vende mais de 250 mil cópias e garante dois anos na estrada para a banda, com quase 200 shows para promovê-lo.o final desta etapa, o guitarrista Loro Jones sai de cena sem atrito, Yves assume sua vaga e a banda ainda gravaria Rosas e Vinho Tinto (2002) e Gigante (2004), além do projeto Aborto Elétrico, que resgatava o repertório da primeira banda punk de Brasília num show para a emissora do grupo Abril. “A gente tá confortável em ser o Capital. É isso o que a gente faz, é a nossa marca. A gente deu uns tropeços, mas vive essa segunda chance. Vamos mostrar que não vamos repetir os mesmos erros de novo. Hoje tem um rumo, não tem mais a confusão conceitual. A gente só toca o que a gente sabe tocar. É tudo simples: poucos acordes, letras direto ao ponto. É isso o que somos”.
Olha quem tá falando…
Essa resenha foi o abre da seção de discos da Rolling Stone de abril, que ainda tinha essa matéria aí de cima.
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O bom e velho mais do mesmo
Não é que o rock e o pop sejam opostos atraentes ou vertentes complementares de uma mesma história. Rock é teste de sobrevivência – ver quem escapa da máquina de moer carne e quem deixa o cadáver bonito;pop é carisma irremediável – convencer sempre que tudo está legal e que tudo pode mudar. Ambos podem coexistir pacificamente e é essa combinação que faz sucessos tornarem-se clássicos. O rock, no entanto, raramente se dispõe a testar seus próprios limites depois de velho. Isso vale tanto para a idade do gênero quanto para a maturidade de qualquer banda de rock.
Eis aí o Capital Inicial, com quase dez anos de carreira depois de um retorno que parecia mero caça-níqueis típico de sua geração, mas que persiste bravamente como se tivesse começado a existir no final dos anos 90. E mesmo com dois especiais pró-nostalgia veiculados na MTV, é injusto rotulá-los como “banda dos anos 80” – mesmo porque, nem soam mais como uma. Estão sim, exatamente entre o pop e o rock.
E qual é o problema disso? Aparentemente, nenhum. Como o disco de outras bandas que habitam esta zona do crepúsculo (dos Stones ao Police, do A Cor do Som ao Pato Fu), Eu Nunca Disse Adeus é limpo e imaculado – há um capricho na composição e produção que não deixa nenhuma faixa com cara de sobra, existe uma coesão temática e sonora que se desdobra por todo o disco. Se o critério fosse este, Eu Nunca Disse Adeus seria irrepreensível.
Embora o verniz plástico da produção tire qualquer fibra de credibilidade de rua (talvez essa seja justamente a intenção – mais soar rock do que ser rock), o disco começa rock sem pop e “A Vida é Minha (Eu Faço O Que Eu Quiser)” é essencialmente adolescente. Mas é o boi de piranha, aquele que lançam na linha de frente da comitiva pantaneira para saber se a água é própria para o resto da boiada ou não. E uma vez aberto o caminho, é a vez de uma série de baladas (“Aqui”, “Dormir”, “Altos e Baixos”, “Um Homem Só”) e rockinhos light à Maroon Five ou Matchbox 20 (“O Imperador”, “Boa Companhia”, a faixa-título, “Eu Adoro a Minha Televisão”), que são o corpo principal do disco. Não se duvida que eles toquem rock, mas é fácil perceber que eles não tem mais vinte (nem trinta) anos.
Composto quase inteiramente por Dinho e seu fiel escudeiro Alvin L (um Fausto Fawcett Peter Pan que, como você e eu, amava o Bowie e o T-Rex) e produzido pelo mesmo Marcelo Sussekind que acompanha a banda desde a volta, o Capital pós-98 soa tão jovem e agressivo quanto o Oasis (outra banda-fórmula) em seu auge – mas isso não é propriamente um elogio. E assim, o resto do disco (fora “18”, “Má Companhia” e uns riffs aqui e ali) acaba colocando o Capital Inicial na mesma prateleira (embora com um pouco mais de personalidade, é preciso admitir) de artistas pop/rock genéricos como Jota Quest, Danni Carlos, Kid Abelha ou Charlie Brown Jr., gente que preenche a lacuna “rock” nestes festivais de rádio que juntam Chiclete com Banana, Marcelo D2 e Cidade Negra.
O Capital em 2007 é familiar e manjado como os últimos discos do U2 ou as últimas décadas dos Ramones ou dos Stones. Não há choque, não há atrito – como a proverbial banda da propaganda de refrigerante, a juventude do ano 2000 tornou-se ainda mais vazia e sentimental. Tempos neoconservadores: tome nü metal, emocore, axé music e psy trance pra ser jovem nos dias de hoje.
Ou esse rock condensado como Leite Moça. Como os dinossauros já citados ou os parques temáticos que tanto gostamos (Dark Side of the Moon, Tommy, Mutantes, Pixies, Brian Wilson), o Capital Inicial se fantasia de si mesmo e traz o bom e velho mais do mesmo – pra quem ainda precisa de mais do mesmo. As músicas grudam, os refrões funcionam, os riffs são de rock – mas a atmosfera formulaica está presente em todo o disco. Se você só quer o Capital Inicial, vá fundo. Mas se a procura é por algo mais, siga outras pistas.