Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.
Dica do compadre Fred, que emenda o link pra geral aprender.
…depois dessa, tcho zarpar pro Skatalites. Depois eu conto, sério.
O último ressuscitado do dia, prometo.
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Apesar de dividir sua banda com Steve Malkmus, do Pavement, Dave Berman é categórico ao afirmar que, se podemos falar de projeto paralelo nessa história, é o Pavement que é o projeto paralelo do Silver Jews. Explica-se: uma vez que formou sua banda no fim dos anos 80, convocou os colegas de faculdade Steve Malkmus e Bob Nastanovich, antes mesmo deles montarem o Pavement, para ajudarem na parte instrumental de seu projeto musical, batizado de Silver Jews. Com o estouro do Pavement em 92 (graças ao magnum opus do lo-fi, Slanted and Enchanted), os olhares sobre a banda de Berman triplicaram e todos passaram a se referir ao grupo como um brincadeira alheia de Steve Malkmus.
Mas basta passear por American Water, o segundo disco da banda, pra saber quem manda. Berman gosta de escrever sobre coisas comuns, sobre a vida real, sobre situações reais e de balbuciar sua voz preguiçosa por cima de suas letras.
Seu novo disco é fruto de sua nova filosofia de vida, inventada por ele mesmo, que a chama de “Nova Abertura” (New Openness). Interessante e prática, ela prega que você deve fazer exatamente o que tem vontade de fazer o tempo todo, seja isso uma coisa ruim ou boa. Não conter-se, deixar-se soltar o tempo todo, não guardar segredos nem sentimentos.
Sem querer esconder, ele já abre American Water explicando seu novo estilo de vida em “Random Rules”. Explica que “em 1984 fui hospitalizado por aproximar-me da perfeição” e passa a reconhecer a naturalidade do erro como parte da vida (e, mais, a perfeição é encarada como doença, anormalidade). “Não existe guia quando quem manda é o acaso”, esclarece no refrão, “ninguém deve ter duas vidas/ E agora que você já sabe que meu nome do meio é certo e errado/ Temos duas vidas pra nos darmos hoje à noite”.
Continua contando as vantagens de sua vida aberta em “People”: “Momentos podem ser monumentos pra você/ Se sua vida é interessante e verdadeira”. E fala de aproveitar a beleza real de momentos simples: “Eu adoro ver arco-íris na mangueira de jardim/ Gosto da cidade e da chuva na cidade/ Garotos suburbanos com nomes bíblicos”. Conclui esticando as pernas que “faz sol e calor e é ótimo estar vivo”.
O que ele prega é que em vez querermos passarmos uns por cima dos outros, pra subir na vida, vamos continuar do jeito que estamos e aproveitar as coisas boas que a vida nos proporciona em cada momento. Esquecer-se da própria individualidade em prol de um futuro incerto é sinônimo de infelicidade e ele continua a falar sobre isso. “Fomos educados com réplicas de estradas tortuosas e falsas/ E dia após dia tocamos pandeiro em troca de salário mínimo neste belo cenário” (em “We Are Real”), “você acredita em finais MGM?” (“Like like the the the Death”).
E sem papas na vida, ele cria belíssimas imagens de situações rotineiras, pelo simples ato infantil de observar e deixar-se comparar sem pensar se vai soar ridículo ou não. “Minha roupa de esquiar tem botões que parecem espelhos de loja de conveniência/ E eles me ajudam a ver, que todo o quarto agora é parte de mim”, “os becos são as notas de rodapé das avenidas”, “Quando algo quebra faz um som bonito”, “Deixe o espelho expressar o quarto”. Uma bela surpresa é o country de coração partido de “Honk If You’re Lonely Tonight”, em que o autor diz que seu sorriso parece esconder sua dor, mas que o adesivo no pára-choque do seu carro (o título da música – “buzine se estiver solitária hoje à noite”) entrega tudo.
Musicalmente o grupo soa tímido, bêbado e aliviado ao mesmo tempo, como se Nick Cave nascesse na Califórnia. A base musical tem elementos de rock, folk e country, mas tudo tocado de forma despretensiosa e sem firulas, em especial a bela guitarra de Malkmus, em algum lugar entre Tom Verlaine e Robbie Robbertson. Para os fãs do Pavement, American Water soa como um apêndice a Brighten the Corners, com Malkmus mais do que à vontade com o pop formal. Mas é impossível pensar em Pavement depois de três ou quatro audições – Berman convence-lhe fácil que ele é o assunto aqui.
Entrevista revisitada, atachada com a resenha acima…
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Com quem Dave Berman resolver fazer música, ele é o Silver Jews. O rock desleixado e descompromissado coberto de letras francas e simples – a tal filosofia Nova Abertura – é tudo culpa de Dave, cujo vocal grave lidera os livros de contos que são seus discos. O problema é que entre os colaboradores de Dave estão Stephen Malkmus e Bob Nastanovitch, ambos do Pavement, o que faz muita gente pensar que o grupo é um projeto paralelo dos autores de Crooked Rain Crooked Rain. Segue um papo sobre isso e outras coisas com o cético Berman.
O que é a Nova Abertura?
É um nome de mentira para uma iniciativa real: a rejeição da ironia como uma estratégia artística. No Estados Unidos, a ironia se tornou um gás sufocante que sai da boca de qualquer figura público. A idéia é simples: diga o que você quer, queira o que você diz.
E isso não te torna bastante público? Não é como se despir em público?
É justamente o contrário. Expressar seus sentimentos é uma necessidade que todos têm. Nossa cultura definharia e morreria sem isso. Todos viveriam melhor se pudessem andar sem as roupas na rua.
Você tem algo contra a ficção ou a fantasia?
Precisamos de música e de arte que cubra toda uma área. Fantasia é tão valiosa quanto a dura realidade. O conflito entre as duas é o impulso que nos faz progredir.
E como esta idéia lírica se encaixa com a música? Como você encara a música dos Silver Jews?
Eu gosto de acordes leves e machucados. Sons orgânicos feridos. Resoluções pacíficas. Paz que parece morte, mas que não é morte.
E sua relação com o Pavement? Você sente-se mal ao ficar na sombra do grupo?
Eu gosto, porque as pessoas descobrem a música. Não importa como eles cheguem, pra mim está bom. Se a associação com o Pavement persiste depois que as pessoas me conhecem é um tanto desolador, mas é minha culpa se a música não se destingue como própria o suficiente para ser percebida como própria.
O nome Silver Jews vem de onde?
É inventado. Ninguém se lembra direito. Apareceu num dia e parecia ser o ideal. São apenas duas palavras legais de serem ditas em voz alta.
E o nome do disco, American Water, como surgiu?
Tem uma raça de cachorros que se chama American Water Spaniel. Eu estava levando meu cachorro ao veterinário quando eu vi este nome num pôster sobre raças de cães. Aquela noite eu sonhei com este nome e ele ficou.
E qual sua relação com a crítica? Você lê suas resenhas?
Eu leio as resenhas. Eu não acho que a imprensa musical aqui consegue fazer seu trabalho. Aqui nos Estados unidos não existem críticos com suas próprias vozes. Eles são apenas cafetões do status quo. A escrita é muito semelhante à da publicidade. Eles são uma droga e é uma situação chata.
Por que você não faz shows?
São muitos motivos para serem listados. Não é digno, pra mim. Eu acho que os discos bastam. Turnês interromperiam o ritmo da minha vida. É como uma infância suspensa. Estou tentando viver como um adulto. Não nasci para estar sob os holofotes, num palco. Eu sou o observador, não o observado. É que parece errado para a minha natureza.
O que você está ouvindo hoje em dia?
Blue Öyster Cult, Jerry Jeff Walker, Jackson C. Frank, U.S. Maple e O Clube da Esquina, do Milton Nascimento.
Entrevista feita em abril de 1999
Mais um…
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Amor comum
O Yo La Tengo canta a paixão sem adjetivos em seu belo novo álbum, ‘And Then Nothing Turned Itself Inside-Out’
É difícil estar apaixonado quando não se tem nada a oferecer. Ou pelo menos aquilo que os outros querem. Veja a TV, as revistas, os outdoors: eles vendem uma beleza magra e saudável, um humor inteligente e direto, uma cultura vasta e plural, uma eloqüência carismática espontânea. Você sabe que a vida real não é assim, todo mundo sabe, mas ninguém se importa. Todos compram o que se vende nestas malditas imagens que o capitalismo usou para funcionar como vitrine do senso comum, manipulando-o. Tenha uma destas características a menos e mais difícil será ser aceito no convívio social.
Por isso apaixonar-se é um problema. Com beleza, humor, cultura e papo, tudo fica mais fácil ou menos difícil. Mas quando não se tem nada a oferecer, a timidez torna-se uma parede que esconde o lado realmente bom das pessoas, desprezado pelo marketing. Sua cara-metade pode ser uma pessoa sem qualidades sociais, mero espectador dos “artistas” que a vida – em todas as esferas – destaca. Uma pessoa que nunca vai chamar sua atenção e que se fizer algo neste sentido vai com a certeza que estragará tudo quando abrir a boca ou pousar o olhar. O cortejo social que conhecemos por paquera torna-se um momento de suplício, um fim inatingível.
Ira Kaplan e Georgia Hubley eram assim. São pessoas comuns até demais, não se destacam em qualquer multidão, seja numa sala de aula ou num ônibus lotado. Figurantes no mundo das estrelas, os dois se encontraram sem querer e depois de conversar um pouco sobre música, estavam apaixonados. Músicos na intimidade, começaram a tocar juntos ao mesmo tempo que se descobriam, ele guitarra, ela bateria, revezando-se nos vocais como todo casal apaixonado. Os dois em Hoboken, o mesmo subúrbio de Nova York que viu nascer Frank Sinatra e os Feelies, ele ainda trabalhava mixando bandas num estúdio de fundo de quintal, enquanto ela fazia curtas de animação com a irmã. À procura de um baixista, atravessaram a segunda metade dos anos 80 moldando apaixonadamente seu som.
Graças a um amor quase inconfesso no início, a banda atravessou toda a década de plástico e entrou nos anos 90 com uma moral de respeito, ainda que pequena. Fiéis à reputação, foram aprimorando sua sonoridade tímida e ruidosa à medida que gravavam discos, encontrando finalmente no gordo James McNew o ponto de equilíbrio entre o casal.
Que voltou a se apaixonar. Desde que descobriu sua fórmula no álbum Painful, o Yo La Tengo vem lançando um disco melhor que o outro e é difícil separar esta fluência musical da ótima relação entre os três integrantes. Mas a força magnética que mantém o grupo unido é claramente o amor entre Ira e Georgia, joão e maria ninguém do universo pop, que despreza qualquer tipo de padrão exterior de beleza e aceitação, numa busca quase zen da bondade interior.
Este personagem é recorrente. O nerd que recolhe-se do mundo social em seu quarto, com livros, discos e filmes e canta sua dor e beleza é um dos principais arquétipos na história do rock. De Buddy Holly a Kurt Cobain, passando pelo Pavement, Joy Division, Chemical Brothers, Weezer, Radiohead, Cure, Devo, Smiths, Belle & Sebastian e milhares de outros nomes. Uns se consideram loucos, outros são a escória assumida do mundo, outros ainda uma elite sofisticada e todos se unem pelo simples fato de usarem este exílio do mundo real um meio para expor sua própria individualidade.
O que o Yo La Tengo propõe é o amor e a paixão dentro deste personagem. Mas não de um ponto de vista platônico, inatingível. Ao formar um casal, a dupla central do grupo expõe-se como a concretização deste amor, uma prova que isto é possível. Poucos casais na história do rock agem desta forma, quietos e cabisbaixos, trocando confidências entre acordes e ritmo. A grande maioria dos casais são rockers até o último fio de cabelo – Thurston e Kim, Patti e Fred Sonic, Mick e Marianne, Exene e John, Sid e Nancy. Poucos casos colocam casais tímidos dentro de projetos musicais, entre eles o Talking Heads e o New Order. Fora dos Heads (e da sombra de David Byrne), Chris e Tina exploraram toda a sensualidade rítmica de sua química com o nome de Tom Tom Club (autores da jóia “Genius of Love”). Fora do NO (e da sombra de Sumner e Hook), Stephen e Gillian deslizavam carícias sintéticas como The Other Two.
Como os dois casais, Ira e Kaplan também namoram na música. Enquanto Tina Weymouth e Chris Franz embarcam com o ritmo e Gillian Gilbert e Stephen Morris se atém às texturas eletrônicas, o casal do Yo La Tengo fica com a guitarra e os outros instrumentos (teclados, caixas de som, baixo, pedais de distorção) que possam soar tão valvulados e intensos como a sonoridade de quem são herdeiros, do Velvet Underground. Mas se tanto o Tom Tom Club quanto o Other Two apenas insinua o amor entre os músicos através do som, o Yo La Tengo sempre cantou o amor. E, apaixonados como estão, fizeram um disco inteiro sobre o assunto. And Then Nothing Turned Itself Inside-Out canta a paixão de gente comum, sem o glamour do cinema ou os maneirismos da TV.
“Eu me lembro um dia de verão/ Eu me lembro ir em sua direção/ Eu me lembro ter corado/ E eu me lembro olhando meus pés/ Eu me lembro antes de nos encontrarmos/ Eu me lembro sentar ao lado de você/ E eu me lembro fingir não estar olhando”, Ira confessa à medida que encolhe sua voz para dentro na bela “Our Way to Fall”. É um amor palpável, de olhares cruzados em filas de espera e calçadas, longe do romantismo ideal idealizados pela mídia. “Se você quer meu amor/ Pegue baby”, entrega-se Georgia no hit potencial “You Can Have it All”, “Se você quer meu coração/ Pegue baby/ Pode pegar tudo”. De repente o casal está em plena crise existencial e Ira se vê confessando-se às paredes: “O que eu perdi aqui? O que você não consegue mais agüentar? Espero um suspiro, ouço a porta bater/ Você diz que tudo que fazemos é brigar/ Ih, eu não sei se isso é verdade/ E penso se estou certo ou se isso é parte do problema/ Talvez esteja fora de mim, bloqueando a realidade/ Mas parece apenas uma coisa: você não quer ouvir, eu não consigo me calar”. Em “Last Days of Disco”, o clima é de filme dos anos 50 (só que nos anos 70): “Te vi numa festa/ Você me tirou pra dançar/ Eu disse que a música não era boa pra dançar/ Eu não danço muito/ Mas dancei/ E fiquei feliz por dançar/ E a canção disse “Vamos ser felizes”/ Eu fiquei feliz/ Nunca havia ficado feliz antes/ E a canção disse “Não fique só”/ Me senti só/ Ouvi e fiquei cada vez mais assim”.
A sonoridade tem aquele astral de paisagem que só a paixão consegue trazer e qualquer silêncio é música, olhos fechados soam como a melhor canção. Depois de exorcizar o instinto primitivo no disco com Jad Fair, o grupo voltou ao lirismo e à doçura com delicadeza e sentimento. Colocando à frente o casamento entre o som da guitarra base distorcida e de velhos teclados elétricos, o ritmo do grupo é quase metronômico e a voz de Georgia consegue ter mais doçura (e ser menos infantil) que a de Moe Tucker, do Velvet. Compenetrado entre os teclados, a guitarra e a coleção de discos, Ira é um Johnattan Richman (dos Modern Lovers) em câmera lenta. McNew, fiel escudeiro do casal, assume a função necessária sempre que preciso, seja no baixo, na percussão, na guitarra ou nos teclados. O disco passa como nuvens no céu, sem se preocupar com quaisquer outros ritmos. À exceção de “You Can Have it All”, da bossa lounge “Tired Hippo” e “Cherry Chapstick” (uma versão para uma velha canção de KC & the Sunshine Band em que o grupo encarna o Sonic Youth), todo o disco lembra aquelas conversas a dois no escuro do quarto, que o resto do mundo sai com a luz e ninguém mais existe.
“Apesar de você não acreditar em mim, você é forte/ Escuridão sempre transforma-se em aurora/ E você não vai lembrar disso/ Quando acabar”, consola Georgia em “Tears Are in Your Eyes”. “Algumas vezes em alguns dias/ Eu não estava cego, mas agi desta forma/ Te causando dor, agora tenho de explicar/ Quando o sentimento de vazio passa do escuro à tristeza/ Eu não acredito que isso nunca aconteceu contigo/ Eu vi na TV e ri muito/ Mas é como me sinto agora”, Ira confessa baixinho. “Vamos dormir uma noite pacificamente”, convida Georgia, passando a mão entre os cabelos do marido, em “Night Falls on Hoboken”. Boa noite.
Outro texto velho.
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Perfeição palpável
A estréia de Badly Drawn Boy – ‘The Hour of Bewilderbeast’ – é um disco que reúne duas qualidades difíceis de se encontrar no pop atual – verdade e beleza
Utopia é um lugar longe. É feito pra ser longe, pra nunca se chegar lá. Lá tudo é perfeito, as coisas organizam-se da forma mais simples e funcional possível, ninguém faz mal a ninguém, todo mundo é feliz. Mas não existe por concepção, é utópico, inatingível. A arte faz nossa conexão com a utopia, criando universos paralelos em que a perfeição é palpável, verdadeira.
Mas até na arte a utopia pode se tornar distante. Ao propor um mundo diferente do nosso, o artista se distancia da realidade o suficiente para entrar na ficção e sabermos que é tudo um sonho. Para a perfeição artística chegar próxima, o artista precisa se despir da individualidade e fazer-se entender numa linguagem universal. Por isso a música é o meio mais popular e o amor é um tema tão cantado – de todos, são os mais fáceis de entender. Essa combinação é praticamente o oxigênio da música pop.
Mas não é fácil tirar sua personalidade de cena e deixar a obra ganhar vida própria. É um processo de generosidade muito intenso, o artista precisa ter um desprendimento quase beatífico em relação a seu trabalho para considerá-lo maior que ele mesmo. Mas quando os ponteiros se acertam e o fruto do trabalho passa a ser o alicerce deste, surgem jóias. Estamos falando de preciosidades do quilate de Revolver (dos Beatles) e Pet Sounds (dos Beach Boys). Nestes dois discos (e em outros e de outros artistas, mas estes exemplificam melhor a situação), os grupos sabiam que o mais importante era ter uma resposta imediata do ouvinte, que ele se identificasse imediatamente com aquela música. E todos sabiam que o ouvinte é qualquer um – por isso, quanto mais abrangente for o tema (e por isso, o amor), mais fácil as pessoas irão se identificar com a música.
Mais do que isso: por mais ousado que se tentasse ser musicalmente, é preciso deixar que o ouvinte descubra a ousadia vindo do pop. Aqueles que percebem a audácia musical não são o público-alvo porque estes se importam com a assinatura do artista. O ouvido público quer descobrir um segredo dentro de uma música pop, por conta própria. Esta mágica proporcionada pela música popular faz com que qualquer um possa vir com um refrão irresistível e se tornar uma mania, só pela qualidade da canção composta. Coisa que é mais comum que podemos imaginar, devido à quantidade de artistas que desaparecem após um único sucesso.
Damon Gough sabe disso e preferiu se preservar. Ou melhor: preservar sua música. Adotou um nome sem o menor apelo comercial (Badly Drawn Boy – Garoto Mal Desenhado) e passou a costurar sua reputação com zelo e paciência. Trabalhando belas canções com produção de baixa qualidade (filiando-se a este gênero sem forma chamado lo-fi), ele passou o ano passado inteiro lançando EPs que não davam pistas sobre o caminho que parecia seguir. Em sessões particulares, aos poucos ia convencendo artistas e jornalistas ingleses (e depois um pequeno culto sempre crescente de fãs) de seu potencial – usando apenas suas canções.
Mas em disco, nada era esclarecido pelo cantor inglês. Pra piorar a situação, ele ainda foi convidado a participar com uma música ao megaprojeto U.N.K.L.E., do dono da gravadora Mo’Wax James Lavelle e do mestre DJ Shadow. Juntos, os dois cozinharam um álbum por três anos e convidaram algumas figurinhas mais importantes do pop alternativo (Mike D, dos Beastie Boys; Thom Yorke, do Radiohead; Ian Brown, ex-Stone Roses; Richard Ashcroft; ainda no Verve) para dar sua palhinha. No meio dos figurões que estrelaram Psyence Fiction, lá estava Badly Drawn Boy com sua “Nursery Rhyme”. Guitarras pesadas e vocal reto, confundia ainda mais aqueles que tentavam o decifrar. Seria ele o Beck inglês? O Elliot Smith inglês? Um John Lennon campestre? Um novo Nick Drake? As dúvidas eram tão pertinentes quanto o consenso de que aquele novo músico ainda iria dar o que falar.
Com seu primeiro álbum, The Hour of Bewilderbeast, ele não apenas confirma as expectativas como torna-se ainda mais promissor. Como? É o segredo lá do começo do texto: as músicas falam de amor, mas de uma forma táctil, reconhecível. Sem nenhum requinte técnico na produção (o que dá um charme rústico ao disco), as canções surgem docemente sólidas, jóias de música pop que tornam a perfeição palpável. Invertendo a lógica pop imortalizada pelos Rolling Stones, é a canção, não o cantor, que importa.
O violoncelo abre o disco seguido pela trompa dão um ar de melancolia renascentista que abrem o disco exigindo um mínimo de solenidade. O baixo aos poucos vai desenhando a cadência da melodia central de “The Shining”, que o violão inicia assim que os três instrumentos se silenciam. Num típico folk inglês, Damon Gough pede para pormos “um pouco de sol em nossa vida”, como se quisesse só arrancar um sorriso num momento de tristeza.
Esse é o tom do disco. Entre a melancolia e o alívio, as canções alternam felicidade e tristeza quase sempre, criando uma atmosfera casual e idílica ao mesmo tempo. A perfeição não é pra sempre: “Sua beleza durará por um instante”, canta em “Once Around the Block”. “O amor é contagiante”, canta mais à frente, em “Magic in the Air”, “quando tudo está bem”. De um lado, a beleza. Do outro, a realidade. É essa dualidade entre sonho e realidade que faz a utopia descrita por Gough tão próxima e natural.
Ele desfila referências à medida que transcorre o álbum. Passa pelo folk urbano de Harry Nilsson (“Everybody’s Stalking”), por momentos que são puro John Lennon solo (“Fall in the River”, “Camping Next to Water” e “Pissing in the Wind” – todas com temática aquática), Dylan (“Magic in the Air”), folk britânico anos 70 (“Stone on the Water”), powerpop (“Another Pearl”), pop sofisticado com toques de jazz e alguma influência latina (“Once Around the Block” e “Disillusion”), Simon & Garfunkel (“This Song”), rap (“Body Rap”), Prince e Guided By Voices (na mesma “Cause a Rockslide”), psicodelia britpop (“Say it Again”, juntando Blur e Oasis na mesma faixa) e terminando com a caseira “Epitaph”.
Esta última, fecha o álbum com clima de varanda ensolarada (assobios, passarinhos, violões), enquanto Gough divaga sobre a perfeição passageira que as pessoas não percebem: “Por favor não me deixe aqui/ Querendo mais/ Espero que você nunca morra/ Não preciso dizer porquê/ Apenas prometa que vai tentar/ Me dar tudo que você pode/ Eu nunca mais te pedirei/ Há vida nova além da porta/ Um berço balança e cai/ Enquanto novas frutas enchem a árvore/ Cimentam a melodia/ Nossos problemas”. Pissing in the Wind resume a generosidade artística do autor, ao abrir mão do que ele poderia querer. “Me dê algo/ Eu fico com nada”. Como se tudo isso fosse nada.
Vazou o disco do Justice – † -, dando início propriamente dito a 2007. Pra uns, o ano começou com o Arctic Monkeys, outros foram de Arcade Fire, alguns só agora estão digerindo o Kassin ou o Supercordas e ainda há os entusiastas da new rave (já já falo mais disso) ou da rixa entre Amy Winehouse e Lily Allen (ou era Paris Hilton e Lindsay Lohan?). Já eu aproveito a deixa pra lançar seção nova – Vida Fodona Soundsystem, baixe enquanto é tempo. E eu começo ela com um petisco tirado desse disco, mas refeito pelos bambas do MSTRKRFT, os mesmos que foram deixados de fora na última hora do mico que foi o Skol Beats desse ano.
Vida Fodona Soundsystem 001 – “D.A.N.C.E. (MSTRKRFT Remix)” – Justice
…e como eu disse:
– “We Dance” – Cat Power
– “Sujeito de Sorte” – Belchior
– “Twisterella” – Ride
– “See No Evil” – Television
– “Eat at Home” – Paul & Linda McCartney
– “I’m a Wheel” – Wilco
– “Everybody Wants the Same Thing” – Scissor Sisters
– “Harlem Shuffle” – Rolling Stones
– “He’s the Greatest Dancer” – Sister Sledge
– “Em Qual Mentira Vou Acreditar” – Racionais MCs
– “Common People” – Pulp
– “Hideaway” – Playgroup
– “Brain Leech (Bugged Mind Mix)” – Alex Gopher
– “Popcorn! Bitch!” – Alex C
– “Doze com Dezoito” – Planet Hemp
– “Hello I Love You” – Cure
– “Ruradélica” – Supercordas
– “Venha Dormir em Casa” – Tim Maia
– “Movie Theme” – Beck
– “All My Friends” – Franz Ferdinand