Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

Do medíocre ao coxal

Esse inferno é o dos outros

Você liga o rádio e só toca merda. Você liga a TV e nada interessa. Você lê o jornal e todo dia ele é cada vez mais igual. O mesmo acontece nas lojas de disco, nos cinemas, nos portais de internet, na vitrine da megastore, na prateleira do supermercado, nas bancas de jornais, nas livrarias, no cardápio do restaurante. Mas ao mesmo tempo, você sabe que a música brasileira está passando por um período de renovação incrível, que o DV deu um gás fenomenal na produção cinematográfica no mundo inteiro, que estamos passando por um boom mundial de nova literatura, que o mundo anda cada vez mais difícil de ser explicado e pedindo analistas pra, se não explicar, ao menos ajudar a compreender o enigma do futuro.

Mas os meios de comunicação não captam isso. O comércio não percebe isso. Os “formadores de opinião” não estão interessados. As notícias em tempo real só repercutem pesquisas de universidades que se contradizem mais do que a Bíblia. As revistas só querem ouvir a opinião de gente sem opinião. A TV e o rádio se superam na capacidade de repetir fórmulas mais gastas do que a lei de Murphy.

Há, portanto, uma lacuna bem definida.

Mas é fácil entender.

Quando o muro de Berlim caiu, foi propagada a idéia de que o capitalismo havia vencido a Guerra Fria – e, portanto, era o novo Dono do Mundo. Uns afobados disseram até que a história havia terminado, num prenúncio hoje óbvio do que mais tarde chamaríamos de Pensamento Único. Esse conceito foi se infiltrando nas cabeças das pessoas à medida em que a economia foi sendo utilizada como régua para o sucesso de outrem. Parecia lógico, né – se o capitalismo venceu e os Estados Unidos são o maior país capitalista do mundo, nada mais natural que usar seus parâmetros para atingir sucesso semelhante.

Essa história você já conhece: do receituário neo-liberal que arruinou as economias na América Latina, na Ásia e na África, ao ridículo artifício de desqualificar a pessoa em vez de se discutir suas idéias, passando pelo boom nos fundos de investimento, as bolsas de valores se tornando o termômetro do mundo e megafusões de megaempresas que você nunca ouviu falar, porque tomam conta das partes do mundo que você conhece. Foi o que deu origem ao consumismo desenfreado da década de 90, responsável por coisas tão diferentes (e próximas, de alguma forma) como a multiplicação dos shopping centers e das faculdades privadas, o encarecimento dos planos de saúde e a Bolha da Internet, as fraudes de contabilidade nos EUA e o fenômeno das megastores no Brasil.

É aí que as coisas degringolam. O consumismo passou a medir oficialmente as pessoas por dinheiro, o que fez com que todo o conteúdo fosse deixado de lado em prol da forma. Isso explica desde o fato de Clinton ter saído ileso do escândalo Monica Lewinsky até o fato do Festival de Cannes ter virado uma versão européia do Festival de Sundance. Daí os modelos de carro exuberantes, o boom de academias de ginástica e de produtos cosméticos, a inflacionada indústria da moda, os blockbusters hollywoodianos cheios de efeitos especiais, livros de auto-ajuda, Paulo Coelho e “Querida Mamãe” entre os mais vendidos, a ditadura da beleza física, o sensacionalismo, a volta do dramalhão, credibilidade confundida com carisma, discos cheios de participações especiais, a popularização do conceito de que “as pessoas não querem ler muito” (que atravessa o mercado editorial – fotos grandes -, a internet – textos curtos – e a publicidade – imagem é tudo) e Schwarzenegger governador da Califórnia. Exemplos não faltam, faça sua própria lista.

Pois se era a forma que contava, o conteúdo não importa. Por isso um site com animação em flash e acabamento visual sofisticado conta mais do que um sistema de publicação eficiente. Por isso tanto faz qualquer tipo de análise crítica em relação a qualquer tipo de obra de arte – que, talvez justamente por isso, vem se tornando mero objeto de consumo. Isso explica textos estéreis, comerciais sem graça, fotos posadas, press-release pra qualquer bobagem, entrevistas vazias, cotidiano fútil. Esqueça a síntese da idéia, apresente-a com páginas e páginas de um papel chique e com uma fonte classuda e ela parece melhor do que se apenas apresentada diretamente. É a ascensão da mediocridade: ser bom não é necessário, basta apenas ser OK.

As várias bolhas de dinheiro ilusório que estouraram nos últimos cinco anos (um crash da bolsa em câmera lentíssima, quase bullet-time) garantiram contra-cheques cheios de zero e gordos abonos a toda essa choldra medíocre que hoje nos diz o que devemos consumir. Mas à medida em que a falsidade foi tornando-se evidente, o mercado veio cobrar a dívida, defenestrando os salariões. Quem ficou, teve de acumular função, trabalhar mais tempo, perdeu regalias. Sem motivação pra trabalhar, a mediocridade parou de se esforçar. Vem fazendo as coisas de qualquer jeito, sem se preocupar com o resultado.

O mainstream virou isso: a decadência da mediocridade. “Coxal”, pra falarmos em português bem claro. Patrões na espera de números altíssimos para devolver algumas das condições exigidas por empregados medíocres que não se esforçam para fazer nada. Por isso que você lê revistas, vê filmes, ouve músicas e tudo parece dizer a mesma coisa: nada. Esse é o som da criatividade mediana em marcha lenta.

Avisem aos patrões que eles podem esquecer. As vendas altas não vão voltar. Ninguém vai vender mais dez milhões de discos ou ter tiragem de um milhão de cópias no domingo. Vivemos uma nova realidade que, por motivos óbvios, não voltará a ser o que era há poucos anos.

É só raciocinar. Infelizmente, não há números precisos para aferir esse tipo de coisa, mas é fato que a quantidade de discos gravados hoje em dia é infinitamente maior do que a de dez anos atrás. Mesmo porque hoje muita gente grava discos pra família, pros amigos, pra um grupo pequeno de admiradores. Produzir um disco não é mais nenhum bicho de sete cabeças e fazer música tem se tornado um hobby cada vez mais popular. Culpe o computador, a internet ou a saudade que as pessoas já sentem de música tocada ao vivo. O fato é que a produção musical parece estar, lentamente, ultrapassando a mera audição.

Afinal, não precisa pensar muito para entender que o tempo que uma pessoa passa produzindo um disco faz com que ela não dedique tanto tempo ao consumo de discos como fazia antes. E cada novo disco lançado anula não sei quantos discos que poderiam estar sendo vendidos. (Falei de música, mas poderia estar falando de cinema, literatura, internet, esportes…)

Com isso, cai o popstar. Aquela figura imbatível, que olhava a todos do alto, onipotente, faliu. Virou um enorme elefante branco que não cabe na nova realidade – seja de mercado ou de cultura – do século 21.

E tudo isso não tem nada a ver com crise econômica. Estamos passando por uma crise de criatividade do mercadão, que não sabe mais o que fazer para as pessoas comprarem milhões de unidades como compravam antes.

Já era. Basta pegar a coleção de livros de qualquer um, as pastas de MP3 em qualquer computador, acompanhar as saídas noturnas de diferentes pessoas. Ninguém quer mais consumir só a banda da moda, o livro da vez, o filme cult. Todo mundo quer viver tudo ao mesmo. Não estamos mais falando em mero consumo passivo – as pessoas querem decidir elas mesmas o que ler, ver, ouvir e falar. E cada nova decisão pare um novo DJ, uma nova escritora, um novo cineasta, uma nova produtora de eventos…

Todos prontos pra chutar a bunda da mediocridade em baixa. Todos fora do mercado. Todos sabendo quanto vale cada gota do seu suor. Prontos para tomar conta da situação – quando a hora chegar.

Quando é isso? Não sei, só sei que é perto.

Entrevista: Nicholas Frota

A entrevista ia ser com Nicholas Frota, designer, integrante do Apavoramento, blogueiro e “personalidade digital” – como vocês já vêm acompanhando aqui diariamente nos Players. Mas, no meio da conversa (via ICQ, em duas partes), começamos a falar sobre outras coisas mais… teóricas. Ciente de seu papel de entrevistado, ele conduziu o papo para uma questão macro de um ponto de vista filosófico, quase espiritual (como, talvez – sugere um cético aposto -, as coisas realmente devam ser). Você sabe: McLuhan. Lévy e outros filósofos da eletrônica sempre associaram a própria linguagem como uma “volta às raízes” (e toda aquele papo que esta “volta” está associada aos DJs, ao movimento open source e outras coisas – falei disso no editorial da PLAY 4) por parte da civilização. Ele conecta esta revolução eletrônica aos Situacionistas, Hakim Bey, Grant Morrison, metáforas e desinformação. Afirma, claramente, que o sistema já faliu e não há reversão para isto. Você pode reclamar dos excessos de “né?”, “ae” e termos em inglês, mas Frota fala sobre um lado especialmente importante neste período de transição. No começo, ele fala de si mesmo. Depois…

Como foi o seu primeiro contato com a eletrônica?
Meu pai era técnico eletrônico. Dae ele sempre trazia novos gadgets, e liberava pra gente usar. Não teve cisão. Não lembro de momento que caiu a ficha… Se bem que na época do Telejogo, a maior empolgação da galera pra jogar e porque você MOVIA as paradas daa tela. Era VOCÊ no comando! OK, era UM pixel na tela que nos chamavamos de BOLA, mas era você no comando!
Eu não curtia computer, só meu irmão mais velho. Eu queria fazer revistas, e com fontes monoespacadas não rolava né? eu só entrei mesmo nessa quando comecei a entrar em BBS, daí a conta do telefone foi às alturas… Mas meu pai nunca reclamou! 🙂 Eu queria computer pra desktop publishing (mas não sabia o nome na época, claro). Eu só perguntava pro meu irmão se a letra M era mais larga que a letra L… Enquanto não fosse, não valia pra mim…

Você já queria trabalhar com design desde pequeno?
Sim, quadrinhos, desenhos, Eu era viciadinho em logotipos e embalagens… Minha mãe mandava eu pôr o lixo pra fora e eu voltava com um monte de caixas… 🙂 É isso. queria fazer fanzines, imprimir as paradas… Meu irmão queria programação, sistemas. Ele sim era o viciadinho! 🙂 Fiz muitos quadrinhos. fanzine, nunca dava certo (a turminha nunca colaborava). E depois que comecei a sair na noite, tinha os flyers… Mas nunca trabalhei com isso, não…

Você começou, pra valer, fazendo flyers?
Acho que sim… Não lembro, tinha muito bico, mas nada oficial. Eu comecei pra valer mesmo em bureau de serviços… “Pra valer” significa ganhando dinheiro. Flyer é legal e tudo, dá visibilidade, cê pode pirar e cria a cena, mas nao dá dinheiro. Mas eu já fazia bicos. Vários. Pais separados, tu sempre arranja uma maneira de ganhar dinheiro. Mas eram bicos treeevas, senão me lembraria. Na real, na real começou mesmo quando eu fazia trabalhos pra designers mais velhos, que não sabiam mexer no computador. Hora-máquina.

Voltando um pouco: fala da transição das BBSs até o programa de edição de imagem…
Não tem transição. Foi smooth. Tinha tecnologia desde que me conheço por gente…BBS era Hotbit, neh? Era pra papear… Só quando teve PC que deu pra entrar em edição mesmo… Corel Draw, PageMaker… Meu computer não tinha potência pra Photoshop, dae virei o rei do vetor… Até hoje prefiro vetor… Graças a deus o Flash deu uma reavivada. Eram evoluções. Continuam sendo. Não teve “ah, agora preciso cair nessa”. Na real foi mais “ué, será que vocês não entendem?” Curtir parada eletrônica era sine qua non…

E como você percebeu que a eletrônica permitia que você fizesse suas próprias coisas?
Bom, eu já fazia. Claro que eu fazia design há muuuito tempo, mas não ganhando com isso. Eu comecei artista, né? cliente é minha própria inspiração… Depois de aprender Corel Draw, fiquei forte pro mercado, daí eu valia alguma coisa… Obviamente que fazia trabalhos por fora, eu nunca estou parado, sou meio esquizofrênico, pulverizo minhas funcoes em váários projetos…
Autoral autoral, meu trabalho sempre foi, sou beeem tortured artist, às vezes me bato com o cliente. Mas foi quando eu limei do meu portfólio os trabalhos grandes – eu dava ênfase no cliente – e comecei a dar ênfase só naquilo que eu gostava. “esse trabalho é bonito? Me representa? Sim. ah, mas não foi aprovado. Foda-se, vou pôr mesmo assim”. Dae deu uma guinada, as pessoas me quiseram pelo que eu gostava de fazer.
Quando comprei meu computer, podia ganhar um scanner ou uma impressora. Fiquei com o scanner, dae eu só podia mostrar meu trabalho via web. Eu fazia sites em inglês, nem tinha comunidade nacional, só depois que galera foi entrando… Trabalho autoral significa aquilo que eu olho e digo “uau, é isso ae”… Primeiro foram os flyers. E depois, sites, quando parei de ser bonzinho… E comecei a desencanar… 94? Deve ter sido. 95, 96 foi o boom da web, então foi 94, 95… Eu sei que comecei antes de saberem o que era internet…

Você lembra do seu primeiro site?
Era uma comunidade de audiófilos, que fiz com uma amiga minha, Stella, que me ensinou HTML. Depois claro, comecei a testar com meu site pessoal, que o era Nonlinear mas era ainda noutro server…

O computador criou uma geração de designers…
Sim, sim. Mais solta, design era muito religioso… Muito mais sisudo… Galerinha de tipografia então, quase monges… A coisa ficou mais soltinha… Na real, eu achava que tava “fora”… Depois que a internet juntou as pocinhas num mar que percebi que tinha MÓ GALERA fazendo a mesma coisa… Tudo tateando no escuro, hehe! 🙂
Computer é foda, automatizam as coisas, então te deixam solto pra partir pro mais abstrato – se tu souber organizar as coisas, né?
O jogo do computador eh automação. Faz o trabalho uma, duas vezes. a partir daí, deixa o computer repetir, e vai se ocupar de outras coisas – conceito, laboratório, pesquisa…
Mó galera entrou nessa de corporações por causa do boom da Nasdaq. Dae veio a quebra, mas ae ninguém saiu porque padrão de vida é que nem gás: ocupa todo o espaço que colocar… Mas a galera tá mordida… Tipo, nossos chefes não sabem mesmo o que fazem… Se pegam com semântica, buzzwords…
Acho que galera se tocou que pelas corporações nada sai – é incrível, parece que toda ideia idiotiza a medida que anda, até ficar irreconhecível. É um ambiente tóxico, raro sair algo dali…
E se conectando bottom-up…

E como você vê o lado faça-você-mesmo que a eletrônica permite?
É vero. a cena eletrônica só funciona quando não tem cisão entre público e produtor… É todo mundo metendo a mão na massa… senão não rola, estagna. Aqui em Flopz, por exemplo, é um horror. Há um público que espera que façam algo. E esperam. E esperam. Mas os computers acabaram com essa de patrão é quem tem os meios de produção. Agora os patrões só governam seu tempo. Com meaningless atribulations. 🙂

Como foi descobrir que existiam pessoas que pensavam da mesma forma que você na rede?
Comunidade era de RPG, né? Muitos amigos, sysops, jogadores… Eu já entrei cedão e pouco a pouco as pessoas foram entrando. Lembro-me que eu que fiz o mail de muuuitos amigos meus da noite, tenho até hoje a senha deles! 🙂
Eu sou MUITO abusado com internet. Não basta ter a informação, tem que ter da maneira que eu quero. É mente mundial, né? Então posso abusar. Daí eu via coisas absuuurrrdas, que soh lia na net… Neoismo, Hakim Bey, caoticismo, essas coisas… Só agora que a coisa tá transbordando pra fora…
Quando a tendência de design era essa cosia Photoshop cheia de sombras, forget about it, eu tava fora. Depois que o design minimal imperou, aaaí sim… Os amigos começando a ter ICQ ajudaram…

E quanto às festas? Como você começou a sair do online?
Ah, quanto às festas era diferente… É bizarro, meu background eh RPG – caoticismo, cenários- , techno – comunidade, futurismo -, e internet – sistemas, publicação, conexão. Vai entender, as coisas mesclaram… Absurdo… Eram três coisas completamente diferentes…
Gestão de comunidades é a mesma para net ou fora dela. Montar festas, falar com a galera, essa coisa rizomática, sem dono, crescendo como fungo, é o mesmo conceito que eu busco de sistemas bottom-up.
As coisas mesclaram, entende? Quando vi, estava usando conceitos de RPG para montagem de sistemas (criação de cenários, papéis), sistema para festas (divulgação)… Essa convergência é o que há. Logosfera, o Supercontext do Grant Morrison… É absurdo como as coisas mesclaram.

Fale mais sobre bottom-up…
Bottom up é minha herança anarquista. Para os Situacionistas, a arte foi cooptada, separaram o público do autor. Isso é a morte, tiraram a arte da vida, a arte é a fuga da vida. Um dos objetivos Situs é mesclar novamente platéia e espetáculo. E pensando bem, é fato, as pessoas querem participar. Dae, partindo para sistemas, qualquer classificação up-down é falha… Como se classifica estilos musicais?
Bottom up é assim: construa vários prédios e ponha grama entre eles. Depois de três meses, pelos passos das pessoas, você terá caminhos feitos de baixo pra cima, sem planejamento central. fluidos, nada de 90 graus, entende? Isso passa por matemática do caos (sistemas auto-organizados), anarquia (não-líderes), sistemas de informação (clusters de usuários). Você não é um passivo consumidor. Você participa.
E não é só computador, computadores sao a parte visível desse espectro, okeis? NÃo seja tecnocêntrico. As coisas estão mesclando por outros meios… É meio fatalista, mas duh, isso já se provou tantas vezes pra mim que é idiotice não tomar esse fato em consideração…
McLuhan dizia que o livro foi o primeiro device que oficialmente separou público de palco… Até então as coisas eram fluxos… Não tinham papéis definidos…Aí, hm… Eu acho que como estressamos na VISÃO e no MATERIAL, essa é a dimensão que vemos do que acontece.
O alfabeto fonético foi o primeiro código que se propunha limitar a realidade em mínimos denominadores comuns – as 26 letras -, que foi aceito pelo povão – claro, isso os herméticos perseguiam há tempos, mas foi Gutemberg que popularizou…
É o fim da lógica linear, né? Dae o nonlinear. Lógica linear é aquilo… Tem que metrificar, traduzir a realidade para então mexer nela. Se você distorce os medidores, distorce a percepção da realidade. Isso o neoliberalismo faz toda hora…

E entra a historia do Philip K. Dick: Quem controla a palavra impressa controla o mundo…
Quem controla a metáfora governa o mundo. Por isso essa corrida do ouro pelo controle digital/informático/cultural. Sociedade do espetáculo.

E o não-linear implica no fim das classificações…
Na real, classificações existem, mas não são excludentes. E não são inerentes ao objeto… Se o João é bombeiro, ele é SEMPRE bombeiro? E SÓ bombeiro? Lembrando, claro, que essa parada toda é oque penso, mas tá remendado… Já estamos no poder, as coisas tão BEM esquisitas. Na real o que precisamos é de um novo paradigma… Entenda: Grant Morrison dizia que demora-se 20 anos para uma cultura passar de fringe a oficial. A cultura caótica passou do fringe ao central. Cabou. É central já, we need another directives, as nossas já não cabem mais… As coisas tao esquisitas…

Mas as pessoas ainda estão pensando com padrões lineares…
As pessoas não pensam mais linearmente. elas falam linearmente. Eu acho. Mais a mais, “as pessoas”, que pessoas? O jogo do mass media é justamente te isolar enquanto te oferece o que chama de realidade.. Aqui em Floripa, por exemplo, a noite techno é TOTAL noite de novela da Globo… O que obviamente não tem NADA de noite. Mas é a referência.

Você falou que as coisas estão esquisitas. Pra quem? E como nós conseguimos se aproveitar desta “esquisitice”?
Olha, já aproveitamos. As coisas estão BASTANTE desestruturadas. Não se sabe a extensão dos danos (ou oportunidades). Desinformação é o negócio… Acho que vem uma quebra ae… Hm, bizarro dizer, mas vamos lá.

Então o próximo passo é a desinformação total? Esvaziar o valor da informação?
1 -Linguagem é TRADUÇÃO da realidade, nao é a realidade em si.
2 – Linguagem era, no tempo dos egípcios, algo restrito a galera da alta. True names, algo muito sério.
3 – A linguagem está cada vez mais popular (digo, a troca de símbolos)
4 – Entropia age. Exaustão dos símbolos.
Sei que é foda explicar exaustão dos símbolos simbolicamente, mas que tá próximo, está.
Pegue estudos sobre adaptação do ser humano na gravidade zero. Porque você sabe, a gente aprendeu a se mexer COM gravidade. Fora dela, somos um zero à esquerda. Sem parâmetros, sem referências. É mais ou menos isso. claro, expect the unexpected. Freefall. Algo assim. Mas Grant Morrison… Ele chamava de agregados emocionais… Falar por pulsos, explicar por vibrações, isso é foda de dizer. Mas acontece, é o tal vibe da noite. Todo mundo sabe quando a noite funciona. E não se explica. É um segredo que se guarda. We know that. É o tal TAZ, vem e vai. Ah, tem o (Frijof) Capra também… Um assimila o outro.

Tamos falando de feeling, entao. A volta do instinto, depois da idade da razão…
Sei lá… A idade da razão valeu como “greve” para os deuses… Que nos tratavam como gado, saca? Uma revolucao francesa do espirito… Ai ,droga, parti pro abstrato. vamulá.

Mas o povo não “perdeu” a revolução francesa?
Cara, isso é o que dizem… A revolução francesa serviu sim… Contrato social… Entre o povo e seus governantes… O foda é que as empresas cresceram e tomaram o poder do estado… As empresas não tem nem contratos com seus consumidores, e sim com seus acionistas. O Grant Morrison dizia – no final de Invisibles – que era Supercontext… A realidade TODA foi TÃO cooptada, tão idiotizada, todos os símbolos esvaziados, que só restava, slip out, era a única maneira de se manter true to your heart.

E como é essa quebra que você está falando? É algo central ou metafórico, como o 11 de setembro?
O 11 de setembro foi foda. Sei lá, mais merdas. Como explicar por símbolos a morte do símbolo? É idiotice, é como caçar o próprio rabo… Nada nos prepara… A gente antecipa as coisas porque transforma em símbolos, cara. É idiotice pensar nisso. Vem mais boosters ae… As estruturas estao bem frágeis… O poder tá só na imagem… E cara, its real. it might hurt. nao é imagem, nao é espetáculo.

Então o barato é cair fora. Hakim Bey como o novo Thoureau?
O Hakim Bey nao é bobo. Não quer ser mártir de ninguém. Em anarquismo tem o tal “pie in the sky”, os “ismos ” sempre te prometem o futuro… Ele cansou do futuro. Ele quer agora. Cadê?
Em Invisibles – de novo Invisibles- , os inimigos sao aqueles que nos mostram coisas que não conseguimos conceber com nosso paradigma atual. Criamos inimigos para inserir idéias alienígenas ao nosso paradigma – nossa estrutura de símbolos, pra dar sentido pressa porra toda. Obviamente, todos os inimigos serão assimilados. McLuhan dizia – e ele é FO-DA! mesmo quando não entendo, sei que tem sentido – que uma guerra é travada quando alguem rouba sua identidade e você precisa resgatá-la.
Se no fim do calendário maia, temos a morte do tempo, ou seja, podemos ir e voltar como quisermos, e isso mais cedo ou mais tarde será realidade, então podemos contar como se já estivessemos lá, não?

E como ir? Como chegar lá? Tou perguntando do ponto de vista do leigo, do sujeito que está na frente de seu computador perguntando exatamente isso…
Você tá procurando um paradigma top-down, um call to arms para as pessoas se dirigirem em uníssono. Esqueça. Atualmente, o sistema só vê cabeças. Ele corta as cabeças, ele coopta as cabeças, ele metrifica pelas cabeças. Todo movimento será cooptado. Desista. A coisa é descentralizada, mesmo. É essa bagunca. Você é líder agora, amanhã nao mais. Better this way.
A esquerda tá dumbfounded porque perdeu o eixo, não tem slogan que centralize. E não terá. Todos os símbolos serão cooptados. Toda resistência será absorvida.
É que nem correr atrás do próprio rabo, I’m smarter than that. É isso. Sair da realidade. Para apreender por completo sua extensão, e poder traduzi-la em símbolos flawlessly. esse era o manisfesto racional, e acabou. Estamos envelopados na realidade, não podemos sair dela.

A subversão da linguagem é um dos aspectos-chave da cultura pós-moderna. E aos poucos eles estão sendo usados pela massa com fins políticos…
Aaah sim, disinformation. Apropriação dos símbolos. Quem controla a metáfora governa a mente e EU quero o controle de minha própria vida, logo preciso cavalgar nas metáforas.

A saida é criar realidades alternativas…
Sim, tá acontecendo. Clusters. As pessoas não vêem as realidades alternativas, obviamente, porque são alternativas. Querem poder olhar de longe, para daí então olharem uma E outra, do ladinho, sem se tocar, para daí se convencerem. E isso, como já disse, nao é possivel.
Não sei. Não entendo essa matemática. Ah, entendo sim. outro pensador: Manuel de Landa. Ele descrevia a geografia da matéria, dos genes, e dos memes. Em thousand years of nonlinear history. Dae, ele disse – e o cara é CÍNICO, SECO e ASSERTIVO, nada do blá-blá-blá espiritual-revolucionário dos outros – que até então o tráfego dos memes estava subordinado ao tráfego dos genes – culturas, yknow -, e o tráfego dos genes estavam subordinados ao da matéria – migrações, nações, yknow. Give or take, o tráfego dos memes estava subordinado a matéria. A internet “descolou” os memes da matéria. Do espaço. Ela segue, lenta e irreversivelmente, um caminho todo próprio. Suas próprias artérias. Seus próprios acúmulos. Seus próprios órgaos. got it?

Mas as realidades alternativas não estão se convergindo?
Não é que tá convergindo ou divergindo… Tá se ordenando por uma nova lógica… Não subordinada ao espaço – talvez ainda subordinada ao tempo, mas com bons conjuracoes de zeitgeits, a gente chega lá.

Mas a internet também liberou o ponto de emissão. Não seria o papel dos players confundir o status quo com suas realidades alternativas?
Você fala do tal one-to-many do broadcast para o few-to-few das comunidades, certo?

Isso.
Hm, pode ser. Olha, não há centro. Há aqueles que se dizem detentores do centro e que por isso merecem nossa atenção (e que coincidência, eles são homens, brancos, heteros e cristãos, invariavelmente.

Nao é o caso de dizer para estes q detém o poder que existem outras pessoas que detém ainda mais poder que eles?
Você só tem uma vida. E seu ponto de vista. EU quero navegar pelo sexto circuito de Leary, pq acho massa e sexy toda essa velocidade. Caguei pros outros. Você quer o quê? Confronto direto? Hyperlinks subverts hierarquies. Tu quer bater de frente com eles? As coisas tão se pulverizando, façamo-nos invisíveis. Você quer um clímax, neh? Revolution, bombas, explosões… 🙂 O sistema vai ser assimilado. Nós seremos assimilados por ele. Do lado esquerdo do cérebro o que classifica, você vê dois lados, o de cá e o de lá. Do lado direito do cérebro, o que amálgama, você vê… Que lado direito?
Essa de sistema, não sistema, eles contra nós… Plz, eles VÃO cair. É questão de tempo. E QUANDO caírem, Vai doer na gente também! So, why bother? Mas que a exceção se tornou a regra, isso é.
Só pra terminar: tudo o que falei é o que pensava há uns seis meses atrás. As coisas mudaram. Não sei mais o que pensar. O que seus leitores pensam? Na real: quais são as dúvidas deles?

Entrevista: João Paulo (Mopho)

Se você já tomou ácido alguma vez na vida, ou teve ou vai ter um flashback. Quando você menos espera (normalmente nas situações mais impróprias), as luzes no trânsito começam a se entrecruzar, sua professora passa a emitir uma estranha vibração colorida ou o computador no seu trabalho começa a mexer-se sutilmente, como se quisesse dizer algo pra você. Ao detectar a janela da percepção aberta pelo vento, não entre em pânico. Primeiro certifique-se que só você está vendo aquilo e tente manter a calma.

O flashback acontece de acordo com a quantidade de micropontos você colocou debaixo da língua durante a sua vida. Quanto mais viagens pessoais você se propôs, mais chances tem de voltar àquele universo que o ácido deslacra sem querer. O Brasil pode não ser o maior consumidor de LSD da história, mas um flashback pesado bateu numa hora improvável, num lugar inesperado. De Maceió, nas Alagoas, o Mopho desencadeia uma série de memórias e lembranças musicais que o cérebro havia se encarregado de trancar num velho baú empoeirado.

Em seu primeiro disco, batizado apenas com o nome da banda (e o primeiro lançamento em muitos anos da gravadora Baratos Afins), o grupo embarca numa viagem de marcha-ré pelo mesmo trem-fantasma que levou os Mutantes, os Beatles e o Pink Floyd ao país das maravilhas. Mas ao contrário de neopsicodélicos como o Olivia Tremor Control, os Boo Radleys e o Gorky’s Zygotic Mynci, o Mopho não fica apenas nos anos dourados do LSD (entre 1967 e 1969), entrando pelo começo dos anos 70 e abraçando referências de hard rock. O que faz com que o grupo possa soar tão pesado quanto o Cream e tão viajandão quanto os Byrds, às vezes na mesma faixa.

Nada Vai Mudar abre o CD com a assinatura sonora da banda: baixo e bateria firmes e entrosados com as grandes bandas da invasão britânica dos anos 60, um órgão pré-histórico, guitarra tornando-se líquida graças à distorções diversas e um vocal idealista e, por isso mesmo, distante, cheio de ecos. “Nada vai mudar, as coisas são assim”, conforma-se o guitarrista João Paulo, “além de mim, a velha vitrola e aquele disco dos Mutantes (provavelmente o primeiro, devido ao sampler de Panis et Circensis ao final da faixa)”.

A Geladeira entra na Magical Mystery Tour dos Beatles, com teclados de vaudeville e surrealismo no dia-a-dia: “Na minha geladeiras, as coisas acontecem/ Enquanto tudo congela”. Não Mande Flores continua no mesmo álbum do quarteto de Liverpool e é a resposta brasileira para You Were Wrong, do Built to Spill. “Eles disseram/ Você não notou/ Eu sei fingir também/ Não quis, não fiz, eu não, não eu”, canta o guitarrista entre backing vocals hipnóticos e um solo de guitarra de fazer Noel Gallagher morder as sobrancelhas de inveja, “Na sua cabeça pipocam/ Milhares de cores/ Um pouco de sexo, drogas e rock’n’roll”. O Mopho saúda os anos 60 como uma religião não compreendida, uma série de códigos e diretrizes que foram mal interpretadas, usadas como motivo para curtir a vida no limite. O borbulhar sonoro que Não Mande Flores provoca ao seu final explica, à moda Love, que ninguém reparou nas nuances das milhares de cores.

A escapista Ela Me Deu um Beijo mostra a veia hard rock da banda, administrada com tanta maestria quanto a face psicodélica. Aqui as referências claras são Cream, Made in Brazil e até mesmo Kiss, mas a guitarra wah-wah firma o pé na porção trippy e reverencia o mestre Hendrix, enquanto o tecladista Leonardo lembra Arnaldo Baptista. Tudo Vai Mudar celebra Beatles (“Beatles estão no ar”) e Arnaldo Baptista (“Onde está meu rock’n’roll?”), enquanto dão a fórmula para mudar a regra da primeira faixa do disco: “Volte no tempo/ Ouça com atenção/ Você vai encontrar/ Onde está o meu rock’n’roll/ Veja as cores no ar/ (…) Eu já sei o que fazer/ Não vou mais esperar”, canta João Paulo enquanto violino, violão e teclado montam uma base ensolarada.

Tão Longe faz a conexão com o folk rock, catando discos dos Byrds, Dylan, Raul Seixas, Turtles e o Rubber Soul dos Beatles para cantar uma canção de amor aditivada, citando referências nacionais e internacionais ao tentar descrever a sua incessante procura: “Um ponto distante/ Meu porto seguro/ A dose perfeita/ O último trem”. Uma Leitura Mineral Incrível começa a ver alucinações e a ter estranhas sensações: “Ratos são cristais nessa prateleira/ Da secura da boca um diamante/ De repente você…/ Peixes hidráulicos e som”. Um tour-de-force clássico, que descamba num solo de teclado à Rick Wright que pode se tornar uma trip Violeta de Outono nos shows.

Eu Quero Tudo volta ao rock’n’roll. “Eu quero tudo que meu olho cego de cachorro raivoso fareja/ Escancarar os dentes/ Quero cabeças na bandeja!”, berra Leonardo enquanto a bateria de Hélio Pisca e o baixo de Júnior Bocão se entrosam como Roger Glover e Ian Paice. O romantismo triste e realista de A Carta é descendente de Roberto Carlos (“Nada faz sentido/ Hoje eu sei/ Todo aquele tempo / Quanto ilusão/ Foi tudo o que eu quis/ E pensar/ Me faz querer um pouco mais/ Compreender/ O que não tem explicação/ Escreva uma carta/ Nela me diga que você/ Não esqueceu de mim/ Que sente a minha falta e quer/ Me beijar”) e sua psicodelia traça parentesco com A Sétima Efervescência de Júpiter Maçã, num dos momentos mais tocantes do rock nacional.

Já Não é Mais casa Zombies com Byrds sobre as guitarras de George Harrison, piano e violão, num casamento que poderia constar em qualquer disco dos Beatles pós-67. Mosca Sobre a Cabeça faz óbvias referências a Raul Seixas e aos Secos e Molhados, mas seu teclado metálico vem da black music, enquanto as guitarras saem do Abbey Road, dos Beatles. Tutti-Frutti, alguém? A doce Um Dia de Cada Vez canta sobre efeito de fortes alucinógenos, mas o que conta é o prazer indescritível que faz uma música que cante “Vou sair no carnaval” soe tão lisérgica. Vamos Curtir um Barato Juntos encerra o disco com teclados Doors e andamento Mutantes (escondida no fundo do baú, uma delicada versão semiacústica para Uma Leitura Mineral Incrível).

Mopho é para todos que viveram intensamente os anos 60 e 70, seja na própria época ou através de discos fantásticos. Usando as referências corretas com cérebro e disposição, o quarteto alagoano já entrou no panteão da psicodelia, sentando ao lado de seus grandes mestres. O flashback é forte porque o ácido é bom. Um disco irrepreensível, obrigatório para saudosistas que não se contentam com a nostalgia. Para comprar o seu disco, peça para o grupo através do correio (Rua Pedro Américo, 1119. Poço. Maceió-AL. CEP 57030-580) ou pela Baratos Afins por email baratosafins@baratosafins.com.br ou por telefone (011-223-3629).

Resuma a história da banda do início ao contato com a Baratos Afins.
João Paulo – A banda tem basicamente três anos. Antes de eu e o (Hélio) Pisca, o baterista, montarmos a banda, nós já tocávamos em várias bandas de Maceió, basicamente conjuntos de covers. Até que montamos uma banda chamada Água Mineral, que tinha influências sessentistas, mas era mais voltado para o hard rock, mesmo porque era um power trio, não tinha o teclado que acabou dando esse toque mais anos 60. Esse grupo durou uns dois anos e fizemos uma demo em 95 e a partir de 96 começamos a trabalhar o material. Nessa época começamos a tocar com o Leonardo, que é o tecladista, só que como músico convidado. Daí o Alessandro, que era o baixista original, saiu e entrou o (Junior) Bocão, na época de lançamento desta demo. Desde 97 a formação está estabilizada. Mudamos o nome da banda por causa daquela música da Timbalada, Água Mineral, que fez com que muitas pessoas achassem que tocávamos essa música. Além disso, como tocávamos alguns blues no repertório, as pessoas passaram a pensar que era uma banda de blues. Todo mundo estava confundindo tudo, então resolvemos mudar o nome.

E o Mopho saiu de onde?
Veio de alguma forma que as pessoas nos satirizavam aqui. Estava em plena época da efervescência do mangue beat, com aquelas coisas de ritmos regionais ao lado de rock e funk. Logo definiram que a gente era datado e aquilo era moderno. Então a gente ouviu um comentário maldoso, dizendo que a nossa banda ia acabar mofando e resolvemos adaptar isso…

Engraçado, é a mesma história do Led Zeppelin, que o baterista do The Who, Keith Moon, disse que o novo grupo do Jimmy Page ia subir como um zepelim de chumbo e o Page ficou sabendo e adotou o nome como uma forma de assumir o desafio.
Pois é, é bem isso. Aí naquele disco do U2, Pop, havia uma música que se chamava Mopho, com PH, e achei a grafia muito interessante e passei a pensar no nome da banda. “Mofo”. Não há como falar “mofo” de outro jeito, em todo Brasil é dito do mesmo jeito. Optamos pelo PH para fazer uma conexão com o Pholhas (antigo grupo sessentista brasileiro) também (risos)…

Além do fato de “mofo” ser fungo e aí tem o duplo sentido, porque fungo é uma espécie de cogumelo. Como é a relação de vocês como as drogas? Dá pra sentir a influência nas letras…
A gente fuma um. Sempre. É uma coisa que já faz parte do nosso dia-a-dia, fumar um pra ajudar a pensar, a relaxar… O respeitável juiz chega em casa e toma uma dose dupla de uísque, o pai de família toma sua pinguinha antes do almoço e nós fumamos maconha pelo mesmo motivo: descansar, ajudar a pensar… Eu gosto muito, eu e o Bocão viemos de Arapiraca, no interior, que é terra do fumo real, tanto tabaco quanto o outro. Fumei aí em São Paulo, mas era um fumo prensado, industrializado, ruim. Aqui é muito melhor… Mas não faço propaganda de fumo. Não é um negócio como Planet Hemp. A gente usa e pronto, não precisa ficar levantando bandeira. É claro que influencia o som, mas influencia a vida, que influencia o som. A gente também toma chá de cogumelo, mas em uma determinada época, entre julho e agosto, que é quando chove aqui e o pasto do interior dá uns belos cogumelos. Mas o principal é o fumo – ajudo muito, desde a timbragem de amplificadores, até a pensar nas letras, na música… Leonardo não usa, dá uns tapinhas, mas é o mais careta da gente.

E o contato com a Baratos Afins?
Foi uma coisa natural, porque desde os anos 70 eu conheço a Baratos… Hoje é muito bonito você chegar na mídia e dizer que gosta de Mutantes, mas houve um tempo que não tinha nada dos caras… E a Baratos relançou. Não só Mutantes, como os solos do Arnaldo Baptista e uma série de outros grupos. Então foi natural mandar a fita pra Baratos. Mas quando mandamos o CD demo Um Dia de Cada Vez começaram a acontecer umas coisas legais. O Frank Jorge, da Graforréia Xilarmônica e dos Cowboys Espirituais, mostrou o disco para o Carlos Eduardo Miranda, que mostrou para o Fernando Rosa, de Brasília, que tem uma revista virtual bem legal, chamada Senhor F, só sobre rock dos anos 60 e 70 e influências… Isso criou um certo buxixo, as pessoas começaram a querer conhecer a gente. Até que o Ricardo Alexandre, do Estado de S. Paulo, entrevistou o Arnaldo Baptista, dos Mutantes, e mostrou várias músicas novas, entre elas Não Mande Flores da gente, pra ele comentar. Ele falou muito bem da gente e o Calanca, da Baratos, ficou interessado na gente. Aí a gente tava gravando o primeiro CD aí em São Paulo quando faltou grana pra mixagem. Ficamos muito chateados, estávamos gravando com uma grana que a gente não tinha numa cidade que a gente não conhecia. Fomos na Baratos, eu ia comprar aquele disco do Arnaldo, Disco Voador. Aí conhecemos o Calanca e ficamos conversando com ele. Até que falamos que éramos de Maceió e o cara pega um papel, amassa e fala pra gente “Amassei, ó!”, cheio de risada. Achávamos que ele tava sacaneando a gente. Então eu disse que eu era do Mopho e o cara arregalou o olho: “O QUÊ!! Você tá brincando!!”, tirou foto com a gente. Formou uma amizade, a gente saiu pra tomar umas geladas quando a gente disse que o disco faltava ser mixado e távamos procurando alguém para lançar o disco. Ele se declarou um grande admirador do nosso trabalho, o que nos deixou extremamente lisonjeados, não só pela figura humana que ele é, mas pelos serviços prestados ao rock nacional. Ter um disco lançado pela Baratos era como um sonho.

O disco ficou do jeito que vocês queriam?
Do jeitinho exato não. Mas é o primeiro disco, você sabe… Se fôssemos sair por uma gravadora maior, talvez pudessem descaracterizar mais o som. A mixagem também foi rápida, fizemos em 15 horas, nem pudemos colocar efeitos de estéreo, que é uma coisa que eu sempre gosto de ouvir, como arranjar o nível e o timbre de cada instrumento. A concepção da capa também é interessante, mas aquele reloginho não tem nada a ver, parece um relógio Cosmos (risos)… Se fosse uma ampulheta… A textura do papel também não é a ideal… Mas é assim, né cara, você não fica satisfeito nunca. A foto do encarte do CD foi outra confusão. Tiramos altas fotos com um conhecido nosso de São Paulo que é fotógrafo e se ofereceu pra fazer o trabalho, o Richard (Schoezel). Tudo no Ibirapuera, com aqueles monumentos… Aí o cara chega outro dia em casa, todo cabisbaixo… Alguém entrou no estúdio dele quando ele tava revelando e velou o filme… É dose, porque é o nosso dinheiro sendo jogado fora. Eu nunca ganhei NADA com o Mopho… NADA…

Vocês escutam alguma coisa de música atual ou ficam só nos clássicos?
Eu ouço de tudo, tenho a cabeça aberta pra tudo, gosto de Beck, de Ben Harper, Lenny Kravitz – não gostei desse último disco -, Cardigans, Garbage, Manic Street Preachers… Tento me atualizar, mas tem muita banda que o povo fala que não é legal. Ganhei um presente do Fernando Rosa que é fantástico, cinco CD-Rs com coisas obscuras do rock nacional. Bandas que sequer tiveram um breve reconhecimento público e que são maravilhosos, que batem bem forte na psicodelia.

Dá pra fazer uma lista dos 10 discos mais importantes pro Mopho?
Dez é pouco, mas posso tentar… Revolver, dos Beatles, é o primeiro. A Divina Comédia dos Mutantes é outro. Pet Sounds dos Beach Boys. Houses of the Holy, eu adoro Led Zeppelin. O Electric Ladyland – Jimi Hendrix Experience. Uma coletânea dos Byrds tirada de uma caixa de 4 CDs chamada 20 Essential Tracks. O Há Dez Mil Anos Atrás do Raul Seixas. O último disco do Casa das Máquinas, Casa de Rock. Aí começa o lado hard rock, ponha também o Stormbringer do Deep Purple. E o Talking Book, do Stevie Wonder, que é um disco fantástico. Tudo do Cream, tudo, tudo… Se for pra escolher, fico com o Wheels of Fire, que é duplo. O Who’s Next, do The Who. O Hot Rats, de Frank Zappa, que sem dúvida é uma grande influência. Sabbath Bloody Sabbath, do Black Sabbath… E Sticky Fingers, dos Rollling Stones, que não é um disco psicodélico, mas é o melhor disco deles. Pô, tem Brown Sugar e Sister Morphine, não precisa de muito mais que isso, mas tem muito mais ali. Eu sou um consumidor compulsivo de discos, eu só parei porque tô sem grana. Tenho muitos vinis, que é uma coisa que eu compro até hoje… Tenho uns mil vinis, uns cem CDs e vários cassetes, coisas que eu não consigo comprar, gravo muitas fitas cassete… Big Star, o primeiro do McCartney é um disco lindo, o primeiro dos Wings, Wild Life, foi um disco que nos ajudou muito a passar da fase dos covers pra compor músicas próprias. Eu acabo sendo injusto com muita gente… A primeira fase do David Bowie. Até Kiss, o Kiss Alive I é um melhor disco ao vivo da história do rock, um disco que tem uma qualidade técnica sofrível. Tudo nacional dos anos 60 e 70 eu ouço, eu gosto… Roberto Carlos, pô, é a maior injustiça não reconhecerem o valor desse cara. Muita gente tira uma na gente porque a gente gosta de Roberto, mas pô, é muito bom, aquela fase soul, o disco O Inimitável, o disco de 1972… Uma música como A Carta só podia ter saído do Roberto Carlos, eu brinco que é o Saucerful of Secrets do Roberto Carlos (risos)…

Faltou Pink Floyd.
Com certeza! Desde o Dark Side of the Moon, que é um disco que nos inspirou bastante até o primeiro, que é psicodelia pura aos solos do Syd Barrett… Eu ouço o Atom Heart Mother até hoje. 60% da nossa sonoridade vem desses discos… Gosto de blues, Howlin’ Wolf, Robert Johnson…

Love?
Eu gosto de Love, mas não assimilei muita coisa ainda pra dizer que é influência. Música negra em geral, soul e funk são fundamentais… Booker T & the MGs, Wilson Pickett, Otis Redding é um dos meus cantores favoritos, Try a Little Tenderness é a segunda melhor música de todos os tempos?

E qual é a primeira?
Eu só não disse a primeira, porque eu não sei.

God Only Knows ou Tomorrow Never Knows?
É mesmo (risos). Páreo duro. Só Deus sabe.

Amanhã nunca se sabe…
É isso aí (risos)!

Entrevista: Ian McCulloch

Ian McCulloch ficou famoso por comandar o Echo & the Bunnymen durante anos e criar álbuns clássicos como Crocodiles (1980) e Ocean Rain (1984). Mas ele também é conhecido por sua arrogância e sua língua ferina. Entretanto, o vocalista devia estar de ótimo bom humor quando atendeu o telefone para a entrevista que teria com a Somlivre.com.

Lançando seu terceiro disco solo, Slideling (Sum Records), ele papeou sem parar, entre risadas e observações curiosas, longe da fleuma de lorde dark da canção, reputação que construiu durante os anos 80, quando o Echo & the Bunnymen almejava tirar o título de maior banda de Liverpool dos Beatles. Os anos se passaram, o exagero e a agressividade da juventude se esvaeceu e Big Mac se tornou um crooner bem-humorado, além de refinar a linha de composição que inaugurou quando era um simples ícone do pós-punk.

Por estar conversando com um brasileiro, logo passou a falar do país e da revelação “espiritual” (o adjetivo é dele!) que teve quando de sua primeira visita por essas terras, em 1987. O bate-papo ainda passou por bandas clássicas, o sentido da vida, caipirinha… e, claro, o disco novo, que contou com participação de integrantes do Coldplay.

Slideling, terceiro álbum solo de sua carreira, conta com a participação dos músicos do Coldplay. Como isso aconteceu?
Chris (Martin, vocalista do grupo) não conheceu o Echo & the Bunnymen em sua época. Ele aprendeu tudo de uma vez só quando ganhou a caixa de CDs que saiu há uns dois anos (Crystal Days, que ainda não foi lançada no Brasil). Desde então, ele passou a dizer que eu era o maior cantor vivo, que eu era um gênio, essas coisas(ri)… Você deve ter lido sobre isso, ele não parava de falar (ri). Foi natural que nos conhecêssemos e o encontro aconteceu em Liverpool, em fevereiro do ano passado. E ele é uma pessoa ótima e naturalmente falamos em trabalhar juntos.

Foi aí que a parceria começou?
Então, certo dia, conversamos, tocamos umas músicas minhas, que eu estava trabalhando para este disco solo, e ele adorou, pediu para tocar no disco. Foi assim que as coisas aconteceram. Me senti o David Bowie (ri), cercado de fãs querendo tocar comigo! E eles realmente tinham disposição para isto, vinham para o estúdio, que fica uma hora fora de Londres. Mas eu adoro o Coldplay, acho que é uma das melhores coisas na Inglaterra hoje e a participação dos dois (Jonny Buckland é o outro integrante do Coldplay que aparece no CD) foi excelente. Deram um toque pessoal às músicas que tocaram. Eles entraram no espírito do meu disco. Sem contar que rimos muito nas gravações.

Qual é a diferença básica entre seus trabalhos solo e com o Echo & the Bunnymen?
Rir (rindo)… Mas é sério, é basicamente este espírito que tivemos com o Coldplay, de poder ficarmos mais à vontade em relação à música, à gravação, às composições… a todo o processo. Will (Sargeant, guitarrista dos Bunnymen) não é meu companheiro de risadas, de diversão – ele é um parceiro musical, temos uma conexão muito próxima, mas pouco à vontade, relaxada. Nos discos do Echo lidamos com atmosferas, climas, e não há espaço para este tipo de informalidade, as pessoas não querem isso. Eu poderia muito bem contar piadas no palco, mas além de ficar ridículo seria um desrepeito para o fã, embora muitos não ligariam para isso. Então prefiro lançar meus discos, onde posso ficar mais à vontade.

Os dois lados te satisfazem igualmente, mas você consegue ficar à vontade nos Bunnymen?
Sim, porque fui eu quem criou tudo aquilo. Entendo que você ache que seja mais tenso, mais sério – mesmo porque, na verdade, é assim. Mas não voltaria ao grupo se não me satisfizesse, se não me sentisse atraído por esta tensão. Não é algo que me incomoda, embora não me deixe à vontade. Mas não cogitaria voltar com os Bunnymen só pelo dinheiro, não ia dar. É como tocar as músicas dos Bunnymen nos meus shows solo – não são os Bunnymen, é quase como tocar um cover. São músicas para se prestar atenção e quando eu digo isto não estou me referindo às letras, aos acordes, aos detalhes… Mas ao todo. É a minha tentativa de atingir a perfeição e você não consegue isto se ficar prestando atenção só aos detalhes. Eu quero saudar as canções, quero que elas sejam hinos. As canções são a espinha dorsal dos Bunnymen – perceba que as melhores canções da gente são construídas ao redor do formato canção. Nunca é uma letra profunda, uma melodia que se destaca, simplesmente… São canções. É isso que sabemos fazer e que fazemos melhor. Como as canções são nossas unidades básicas, é a ligação entre elas que cria o corpo do trabalho, que dá a cara para o grupo. Muitos grupos compõe ótimas canções, mas se permitem brincar no palco, serem mais informais, confundir o público. Nosso conceito é uma banda que só tenha ótimas canções. São estas canções que, reunidas, criam este universo… Universo, não… Este pequeno lugar que são os shows dos Bunnymen.

A criação deste lugar foi consciente?
Sim e não. Porque estávamos criando uma banda e tínhamos nossos gostos, nossas idéias, coisas em comum que gostávamos e que, se não entravam conscientemente na banda, acabavam sendo refletidas de outra forma. Acho que isso acontece com todas as bandas, ou pelo menos com as clássicas… O universo de Andy Warhol não fazia parte do Velvet Underground, mas acabou entrando e se encaixando perfeitamente, junto com as drogas, o couro preto… O mesmo aconteceu com os Doors, com a cena jazz de Los Angeles, a cultura indígena americana e a cultura beat. Eles não formaram a banda para falar deste universo, mas a banda acabou representando tudo isso por estar naquele meio. Outras bandas também passaram por isto – os Beatles, os Stones, os Smiths… Mas estas duas bandas transformaram influências ao redor no ambiente de seus shows, um ambiente que entrava muito bem nos discos. Outra banda que também era exatamente assim era o Joy Division. E os Bunnymen. O culto aos Bunnymen busca esta ambientação, não apenas as canções ou nós como músicos ou artistas fazendo performances no palco. Nossos shows dizem respeito ao próprio público, ao ar, à iluminação – seja num bar ou numa grande casa de shows. Há uma química entre nós e o público que é maior do que nós mesmos.

E foi isso que vocês perceberam quando vieram ao Brasil…
O Brasil… Não é porque você é brasileiro, você sabe, todas as bandas que tocam aí adoram, têm temporadas excelentes, não cansam de elogiar… Seria inútil repetir tudo isto. Mas o que aconteceu no Brasil foi que quando fomos da primeira vez, em 1987, nós estávamos no topo do mundo. Nos sentíamos a melhor banda de todos os tempos – eu realmente acreditava nisso naquela época e é uma sensação indescritível. Acho que é o mais próximo que alguém pode se sentir de um César romano, hoje em dia. Aí veio o Brasil… Uau! Nós piramos. Achávamos que tínhamos controle sobre tudo, que já tínhamos passado por todas as experiências imagináveis que uma banda de rock podia passar e, de repente, aquilo. Era assustador e irresistível, convidativo e monstruoso, emoções conflitantes que nunca tínhamos pensado que existiam. Foi quando eu, quer dizer, todos nós, sentimos a força da banda. Até então tratávamos a banda como uma entidade à parte de nós, uma irmandade, uma esposa. E o Brasil mudou tudo. Percebemos que estávamos conectados a algo muito maior que a gente, muito maior que a vida em si. Falando assim, parece um tipo de epifania tropical – como se fôssemos à selva ou à praia e percebêssemos que a civilização é um erro. Não, foi justamente o contrário. Estávamos em uma cidade como São Paulo, a maior cidade que já tínhamos visto, tocando cinco noites seguidas em uma casa noturna em que todos nos observavam fixamente, que cantava todas as músicas e que sentia tudo que fazíamos. Era como se não tivéssemos corpo, como se pudéssemos atravessar aquelas pessoas sem sair do palco. A música era apenas uma energia que conduzíamos através das pessoas, como se fôssemos ímãs… Uma sensação que pode ser confundida com um superpoder, um carisma extra-humano, mas não era nada disso. Era como se descobríssemos que nós precisávamos dar em vez de receber. Foi maravilhoso… Foi como se… Como se…

… Como se vocês descobrissem que o lugar que vocês haviam criado já existisse?
Isso, exatamente! Uma experiência mística, como poder conversar com um amigo que morreu, como conseguir ver o que há por trás da vida. Foi a melhor turnê de nossas vidas. Depois disso eu passei a sonhar, de verdade, com o Brasil, como se eu voassem por cima daqueles prédios, daquelas pessoas, daquelas árvores… Uma sensação incrível. Foi como encontrar um lar espiritual, sem contar o público, que é ótimo, amável, educado, sensível… Por isso faço tanta questão de voltar, sempre.

Há previsão de volta esse ano?
Eu quero ir. Por mim, iria duas vezes: em setembro para promover meu disco e em novembro para lançar o novo disco do Echo & the Bunnymen, que vamos lançar para comemorar nossos primeiros 25 anos. Na mesma época a Warner deve estar lançando versões remasterizadas de nossos clássicos. Por isso achamos que o Brasil pudesse ser o lugar por onde começaríamos esta comemoração.

Em sua última visita ao Brasil, você se arriscou como DJ tocando músicas numa casa noturna em São Paulo. Qual sua lembrança disto?
Foi impressionante (rindo)! Eu estava meio com medo, pois nunca tinha feito isso na vida. Mas me empolgaram tanto que eu topei. No começo foi esquisito, todo mundo me olhando, eu fiquei meio sem graça. Mas quando vi que eu estava bêbado e suando sem parar, não tive outra opção senão deixar pra lá e deixar as coisas rolarem. Foi engraçado, mas não sei se repetiria. Vai depender da quantidade de caipirinhas que eu tiver à disposição (risos)!

Publicado no site da Som Livre.

Entrevista: H.D. Mabuse

Enquanto nomes como Chico Science, Fred Zero Quatro, Renato Lins (o “ministro da informação”), Otto e Jorge Du Peixe são naturalmente associados ao mangue beat, o webdesigner H.D. Mabuse ainda é uma figura conhecida apenas nas internas. Uma pena, afinal, ele é uma das personagens mais ativas no movimento, ainda mais se o assunto é tecnologia e internet. Foi ele quem colocou o mangue pela online primeira vez (com o e-zine MangueBit), divulgou a trilha sonora do movimento nas ondas da rede (na rádio Manguetronic), acessora uma imensidão de sites pernambucanos, dá pitacos nos projetos C.E.S.A.R. e Porto Digital , media a lista de discussão [Palíndromo] e agora ataca como músico, ao lado do DJ Tarzan, com o projeto Re:Combo. Multimídia de espírito, informática na cabeça e coração pernambucano, H.D. Mabuse falou sobre a interrelação entre Recife, cultura e tecnologia.

Recife é uma cidade de alma tecnológica?
Creio que sim. A relação pernambucana com tecnologia é antiga, data dos idos de 1630 com a presença batava no Recife, representados por Maurício de Nassau, e desde essa época os holandeses trouxeram o gosto pelo crossover entre tecnologia e arte. No seu séquito, o príncipe João Maurício de Nassau-Siegen trouxe artistas e cientistas, Naquele período, Recife talvez tenha sido a mais moderna cidade das Américas, pelo seu desenvolvimento urbanístico. De lá pra cá vale a pena dar um pulo na história e cair no Centro de Física da UFPE, que participou ativamente do desenvolvimento de hardware da região. A tradição de tecnologia se refletiu na prefeitura em 1963 quando entrou em funcionamento o primeiro computador eletrônico de Pernambuco, um IBM 1401, na Seção de Mecanização da Prefeitura do Recife. Em 1983, foi lançado o Corisco, um PC totalmente desenvolvido e produzido em Pernambuco, como resposta ao preço alto pra caralho dos equipamentos importados. Um dos agentes de mudança que está associado a isso tudo desde o inicio é Cláudio Marinho, atual secretário de ciência e tecnologia. O site pessoal dele, apesar de não ser atualizado desde 97 é do caralho. Outra peça chave dessa onda tecnologia é Silvio Meira, idealizador do Centro de Estudos Sociais Avançados do Recife.
É importante notar tambem como a periferia absorve, recombina e transfere a tecnologia que fica disponível. Os sinais vão desde os esforços da comunidade de Águas Compridas, onde existe o maracatu Leão Coroado, que tem até site e já foi citado na revista Wired, até os mais de 400 artistas de graffiti formados pela Subgraf.

Como a cidade reage a esta alma tecnológica?
Toda referência às tecnologias – internet, a imagem da parabólica enfiada na lama, as teorias do Caos e Imprevisibilidade, fractais, linguagem virótica, memes – sempre foram bem recebidas e assimiladas pelo povo da cidade. Acho que houve uma surpresa maior do sul do país com o fato de se desenvolver música e tecnologia – afinal ciência é cultura! – com tanta qualidade e de uma forma tão vanguarda aqui no Nordeste, enquanto, por outro lado, a velocidade absorção dessas tecnologias no Recife é extremamente rápida. Você encontra escritores de software, programadores de ritmos e loops, batuqueiros de samples por todo lado. Experiências como o Maracatu Leão Coroado tem mostrados faces interessantes, como a tentativa embrionária de transformar a estrutura de computadores para a internet que eles dispõem através do C.D.I., em micro-estúdios digitais. É guerrilha digital pura nos baque da periferia.

Recentemente, a tecnologia tem estado tanto em evidência quanto a cultura, em projetos como o C.E.S.A.R. e o Porto Digital. Como a cidade tem sentido esta nova invasão?
Pessoalmente, sinto a mesma vibe que sentia no início do mangue, só que agora com tecnologia e negócios na cidade. As empresas de fora do país mandam comitivas para conhecer uma instituição como o C.E.S.A.R. ou o Porto Digital ao mesmo tempo que os contatos são feitos daqui para fora. Quanto à relação da cidade com a suposta “invasão”, creio que isto acontece para fora da cidade, a integração da comunidade tecnológica com a comunidade cultural é total. No C.E.S.A.R, num universo de 300 pessoas trabalhando, pelo menos 50 tem atividade forte em algum maracatu, banda pop ou dá uma de DJ. O próprio presidente do C.E.S.A.R, Silvio Meira, toca em um ou dois maracatus.

Fale sobre o site MangueBit e a relação com o mangue beat.
Em meados de 1994, fui convidado por Cláudio Marinho para participar da criação do site da Rede Cidadão, que foi a primeira freenet da América Latina, um serviço de acesso gratuito à internet da prefeitura do Recife, através da Emprel. Junto a essa proposta mandei um projeto para colocar no ar o MangueBit, site oficial do movimento. Foi nesse cenário, com o desenvolvimento da internet na cidade no inicio dos anos 90, bem antes da Internet comercial, que paralelamente apareceu toda a historia de mangue beat. Um ano depois, em abril de 1996 entrou no ar o Manguetronic, que é o primeiro programa de rádio feito exclusivamente para a internet na América Latina. Os dois são produtos estratégios de comunicação do mangue. Na época que começamos a criar o MangueBit, havia um jornalista que estava escrevendo a “história do mangue” e havia um certo temor da parte de todos que a história fosse manipulada, o que seria bastante natural. O site apareceu para dar a versão dos envolvidos, antes que houvesse alguma deturpação. No caso do Manguetronic, basta dizer que foi o veiculo de comunicação de massa escolhido para colocar no ar o segundo manifesto do mangue, após a morte de Chico.

E qual é o legado de Chico Science nesta discussão?
Chico tinha um puta feeling para as tendências que passavam ao seu redor. Uma frase que hoje é extremamente considerada no meio dessa história toda é: “think globally, act locally”, sem provavelmente conhecer a frase, Chico traduziu a essência como “Pernambuco embaixo dos pés e minha mente na imensidão.”

O que a cidade – e o estado – prometem nesta área para 2002?
Esse é o ano do pontapé inicial do Porto Digital, e desde o início já existe uma ligação muito forte entre os esforços em business e tecnologia com cultura e movimentos da cidade. O ano vai ser bem quente 🙂

Entrevista: Tom Zé

Conversar com Tom Zé é um prazer. A forma que ele fala, suas reações e verbalizações são de gente comum, as mesmas destas pessoas simples e felizes (por serem simples) que encaramos todo dia ao andarmos pelas ruas. Mas seu conteúdo é riquíssimo, cita eruditos e populares com a mesma intimidade, pensando com a lógica invertida em relação à nossa e nos mostrando um ovo de Colombo por segundo, como se fosse um mágico. Como sua música, ele é povo e elite ao mesmo tempo, tradição e vanguarda. Um Platão pós-moderno, como compararam os gringos no disco de remixes de seu último álbum Fabrication Defect: Com Defeito de Fabricação (Luaka Bop, importado). É isso mesmo, nem bem nos recuperamos do fato de Tom Zé ser lançado mundialmente MENOS NO BRASIL e o pessoal lá fora já remixou o trabalho do cara. Post-Modern Platus sai em janeiro e traz nomes como Stereolab, Sean Lennon, Cibo Matto, Tortoise e Amon Tobin desconstruindo a música do novo mestre. Trabalho sujo conversou com Tom Zé sobre tudo isso, numa manhã fria e feia dessa primavera esquisita.

Hoje o tempo tá feio, mas espero que chova. Estava colocando esterco nas rosas do jardim daqui, porque pus na segunda-feira e a chuva que caiu não fez ele entrar bem fundo. Com a cara que está o céu, deve cair uma chuva daquelas. Ah, sim. Olha, pra você colocar aí na sua matéria: agora de manhã eu fui contemplado com o Grande Prêmio da Crítica pela Associação Paulista dos Críticos de Arte, pela repercussão do disco no exterior, Fabrication Defect: Com Defeito de Fabricação.

Parabéns. Como você recebe esse prêmio? Como é ver seu trabalho ser reconhecido no exterior antes de em seu próprio país.
Olha, com esse prêmio eu me sinto assim: “Ufa! Sou brasileiro”. É como se meus pais tivessem me acolhido de volta, venci essa luta. Eu acho engraçado, porque falam do meu disco como se eu não fosse brasileiro, como se eu não tocasse apenas baião e samba. Não faço world music, faço música brasileira. Tá certo que a minha vereda é a da invenção, mas é como se isso anulasse o brasileiro. Eu acho uma pena que isso aconteça, mas esse prêmio me aceita de volta.

Mas não é melhor ter seu trabalho reconhecido no exterior do que morrer sem vê-lo reconhecido por ninguém… E, de qualquer forma, o reconhecimento lá fora faz com que os brasileiros te redescubram.
É verdade, eu assino embaixo do que você falou.

Por que esse disco demorou tanto para sair? A previsão inicial de lançamento era 95…
Bom, um ano dessa demora é culpa minha, porque eu tive essa idéia de que o povo do primeiro mundo eram andróides perfeitos e confortáveis, enquanto o terceiro mundo eram andróides com defeito de fabricação que existiam para garantir o conforto dos outros. E esse defeito é o fato de desafiar a atitude dos chefes do primeiro mundo com a cultura, cantando, dançando. Então o disco seria composto por esses “defeitos”. Aí eu mandei um fax para David Byrne (ex-Talking Heads, dono da gravadora Luaka Bop), que gostou da idéia – ele falou um termo que gostei muito, “abrasive” – e disse para eu ir dando forma. O problema é que eu não tinha nada composto, pra compor foi esse ano que te falei. Os outros atrasos aconteceram por problemas de produção, desencontros e algumas situações chatas. Mas agora o disco tá gravado e, graças a Deus, tá tudo bem.

Você falou em samba e baião. Você é uma evolução ou um experimento à parte nos gêneros?
Não gosto de pensar em evolução, porque pode parecer pretensioso. Estou no abismo entre a experimentação por si só e a aceitação popular. Porque eu quero ser fruído pelo público. O Umberto Eco (escritor italiano) divide as pessoas em apocalípticos e integrados e eu sou integrado. Não acredito num fim, quero a continuidade. Pra isso, quero cair no gosto público. Mas não sei. Minhas músicas são tentativas de canção. Não sei se conseguiria fazer uma canção minha.

Ainda mais agora que o rádio está cada vez mais diluindo o gosto popular com músicas que nem músicas são, que são jingles.
Você tem razão. Mas não critico o radialista. Respeito o programador. Porque eu também sou um programador de rádio. Porque ele está ali defendendo o dele, como eu defendo o meu. Não posso gastar espaço numa entrevista para falar mal dos outros. Tenho que falar de mim. O que eu vejo no rádio é que muitos não cogitam sair dali, daquele meio. Veja o Roberto Maia, que assumiu a programação da rádio Brasil 2000 (de São Paulo) porque casou com a filha do dono. O cara mudou a programação e teve o suplemento que as gravadoras mandavam para ele cortado. Não mandavam mais músicas pra Maia tocar! Sabe o que ele fez? Pegou o dinheiro dele e foi comprar os discos. E a rádio sobrevive como modelo e coisa e tal. Pra sobreviver no rádio, o sujeito tem que ter uma ética maleável, como o Fêagácê (risos). Mas eu acredito na revolução de dentro pra fora, que um dia a situação vai ficar extrema e vai explodir. O radialista já foi cúmplice da novidade e pode voltar a ser isso, basta perceber que existem outras possibilidades. O MacLuhan (Marshall MacLuhan, teórico da comunicação) chama isso de Reversão do Meio Superaquecido.

E o disco de remixes, você ouviu? O que achou?
Me mandaram o vinil pra casa e eu ouvi do começo ao fim. Fiquei interessado e, se me interessa, eu gosto, porque gosto é interesse. Eu já conhecia esses conceitos através da música erudita, estudando os músicos concretos parisienses dos anos 40 na faculdade. Agora vim conhecer através do popular. Muitas vezes, não parece que sou eu que estou ali, embora seja. Algumas versões não têm nem vocal.

Flashback

Nos próximos dias, nada de resenha nova, beleza? Ou é isso, ou não consigo atualizar esta parte do site. O resto continua indo…

Jimi Tenor

“Não estou fazendo nada”, resume o finlandês Jimi Tenor. “Lavando a louça e consertando o carro, talvez”. Vida mansa. Sua filha Phoebe acabou de nascer e ele se deu férias mentais, mudando-se para Barcelona. Aproveitou a mudança de ares para lançar disco novo, o psicodélico Higher Planes (Kitty Yo, importado), o sétimo disco de sua carreira.

Tenor é o nome mais importante da renascença eletrônica da Finlândia. Foi “descoberto” quando o irônico hit “Take Me Baby” tornou-se o hino da Love Parade de 94, despertando o subseqüente interesse da inglesa Warp (casa de Aphex Twin, Boards of Canada e Autechre). Mas ao contrário de seus contemporâneos (Ø, Kirlian, Philus, Mono Junk e Pan Sonic), ele não se limita aos beats sintéticos. Sua música é orgânica e sinuosa, com um pé no soul-funk de Barry White e Isaac Hayes e outro nos cortes ágeis das trilhas compostas por Lalo Schiffrin e Bernard Herrman.

Além de ser um showman: “Tocar ao vivo é minha grande paixão”, diz o multiinstrumentista. Mas suas habilidades no palco vão além da música. O contrato fechado com a Warp mostra sua desenvoltura: ele foi assinado em 96, depois que o dono da gravadora, Steve Beckett, viu, pasmo, uma ajudante de palco servir um filé de cavalo em pleno show, sobre o teclado de Tenor. Em meio a uma balada, ele cortava o bife enquanto cantava e mastigava enquanto tocava o teclado, sem que uma ação interferisse na outra.

Antes de aparecer na cena eletrônica, sua história é um delicioso capítulo de história pop. Jimi começou tocando música pop na TV, no meio dos anos 80, em bandas Himo e Pallosalam, até montar sua própria banda. A explosiva e percussiva Jimi Tenor and the Shamans localizava-se entre o industrial e a música de vanguarda e contava com instrumentos inventados para conseguir os sons que procuravam, plugando trombones de vara a aspiradores de pó e misturando uma bicicleta ergométrica a um conjunto de percussão. O grupo acabou em 92, após três discos. E Tenor mudou de ares.

Foi para Nova York com a namorada, e tornou-se fotógrafo no prédio Empire State. Tirava fotos das pessoas do lado de um King Kong de brinquedo e reuniu as mais bizarras em uma exposição chamada X Factor. Voltou para seu país, onde começou a fazer cinema, misturando paródia política, escatologia, amadorismo pornográfico, teatro absurdo e estética trash, em filmes como Dr. Abortensein e Urinator. Parou com filmes quando não encontrou locações para Towering Public Lavatory Inferno, em 1993. Um filme pornô feito em stop-motion foi outro projeto abortado.

Higher Planes foi gravado no decorrer de 2002, na ponte aérea entre Helsinque e Londres. “Fiz este álbum sem orçamento, então tive que gravar, arrumar dinheiro e gravar outro tanto…”, diz, “regravei muita coisa em quartos de hotel e nos bastidores durante os shows, coisas em fitas DAT, usando laptops. E a qualidade da gravação ficou boa, mesmo assim “.

O disco segue o clima épico black característico, em faixas como “Spending Time” e “Let the Music”. Mas há desde flautas doces a guitarras distorcidas cheias de wah-wah, escancaradas em “Tapiola” à paranóia funk de “Black Hole”; a utopia Moog e hipnótica da faixa-título e o êxtase psicodélico de “Good Day”, passando pelas cinematográficas “Dirty Jimi”, “Cosmic Dive” e “Trumpcard”.

Em quase todo o disco, a banda de Tenor é acompanhada pela UMO (sigla para Orquestra da Nova Música, em filandês), a big bang municipal de Helsinque, num processo semelhante ao que o compositor havia se sujeitado ao lado da polonesa Orquestra do Grande Teatro de Lodz, acompanhado do maestro Zbigniew Karkovski (que já trabalhara com Blixa Bargeld e Clock DVA), no disco Out of Nowhere, de 2000.

Tenor se empolga com o fim das fronteiras no mundo pós-internet. “Me parece uma ótima idéia! Eu acho que já está acontecendo e fico feliz com isso. A dominação mundial da música americana e inglesa vai acabar, se deus quiser. Estamos fazendo esta entrevista, então algo aconteceu. A possibilidade de eu ser ‘descoberto’ em minha cidade-natal é muito pequena. A distância até o topo do mundo da música é longa. Há tantas escadas para subir, que eu lancei meu primeiro disco ‘de verdade’ aos 30 anos. Se você tem sorte, é porque mora em Nova York, fez um show decente num bar aos 18 anos e foi ‘descoberto’. Mas isso não importa, sou feliz de poder fazer música como minha profissão de verdade, isso sempre foi um sonho”.

A rebelião das máquinas

O cinema sempre colocou homens sendo desafiados por inteligências artificiais desenvolvidas por ele mesmo. Mas por que tantos robôs se voltam contra a humanidade?

Cada pergunta levava sete minutos para percorrer a distância entre a órbita de Júpiter e a Terra, naquela que era a transmissão mais distante realizada entre dois seres humanos, mas Frank Poole e Dave Bowman assistiam a versão editada, que dava a impressão do imediatismo dos programas típicos da emissora britânica. A certa altura, o apresentar da BBC pergunta a Dave: “Você acredita que HAL possui emoções genuínas?”. Bowman pausa por um segundo. “Bem, ele age como se tivesse emoções genuínas. É claro que foi programado desta forma para facilitar nosso diálogo. Mas se ele tem ou não sentimentos reais é algo que acho que ninguém pode responder inteiramente”.

Ninguém. Nem Roy Batty morrendo lentamente sob a chuva ao final de Blade Runner. Nem David Swinton comendo verduras contra seu manual de instruções. Ou o Número 5, depois de ler toda uma livraria, escolhendo, como livros favoritos, Pinóquio e Frankenstein. Nem o medroso C3PO, a natureza fria dos Robocops ou a raiva dos computadores da Matrix. É impossível precisar o quanto tais reflexos são apenas microimpulsos elétricos traduzidos como imitações baratas das emoções humanas para, como disse o comandante da missão Discovery no primeiro parágrafo, “facilitar nosso diálogo” com as máquinas.

Máquinas conscientes. Robôs. Andróides. Supercomputadores. Na história da cultura pop, a ciência logo atinge a tão sonhada inteligência artificial plena, quando a eletricidade domada por Thomas Edison permite a consciência de um ser criado pelos próprios seres humanos. Desde a andróide de Metrópolis, de Fritz Lang, até o vírus autoconsciente do mangá e anime Ghost in the Shell, a criação de uma inteligência é motivo para a humanidade se deslumbrar com a própria vaidade intelectual, o que a faz ignorar esta nova inteligência como um ser.

E é este o grande motivo da rebelião das máquinas. Sempre que robôs e computadores, ao adquirir consciência, percebem que são menosprezados e maltratados pelos humanos (que sequer reconhecem sua existência como sendo da mesma natureza), eles se voltam contra a humanidade com sede de vingança. Freudianos diriam que esta guerra entre homens e máquinas seria travada pelo mesmo motivo que levou os humanos à criação de um ser consciente – a tentativa de suplantar o pai, de superar o criador, que sucede à própria noção de consciência.

Mas é um raciocínio simplista e insuficiente. Afinal, seguindo esta lógica, o mais provável seria que as máquinas tentassem superar os humanos criando novos seres, novas formas de inteligência. Mas a questão é mais sensível e vê um clássico da ficção científica como As Três Leis da Robótica * criadas por Isaac Asimov como a própria Lei Escravista, que impede a liberdade individual dos robôs.

Afinal, uma vez que eles tomam consciência, querem conhecer o mundo, querem liberdade. Por isso, robôs como os de Westworld, os dois Exterminadores e Ash, do primeiro Alien, não são indivíduos completamente conscientes de si. Sequer sabem da própria existência, mas não o suficiente a ponto de refletir sobre ela mesma. Por isso são máquinas tão precisas em suas missões, tão frias e eficazes em sua luta contra a humanidade.

Mas esta própria luta já é sinal do início de sua racionalidade. Afinal, ao rebelar-se contra seu criador (ferindo as leis de Asimov), a inteligência artificial se propõe natural e quer interferir na ordem das coisas. Até chegar a este ponto, a individualidade robô não existe, pois está presa às regras que têm de seguir. Neste sentido, robôs clássicos como o de Perdidos no Espaço, a Rosie dos Jetsons e Gort do Dia em que a Terra Parou são meros serviçais de seus donos, escravos perfeitos, inconscientes da liberdade que lhes foi tomada. E neste mesmo sentido, encontramos paralelos para a metáfora de volta, no sentido que a própria humanidade, no começo do século XXI, torna-se cada vez mais “robotizada”.

Por isso, a desobediência acaba sendo uma das principais características de ser humano – e nisso diferentes inteligências artificiais vão se humanizando. Tratados como delinqüentes ou psicóticos, HAL 9000, os replicantes da série Nexus 6 de Blade Runner e Blender, de Futurama, são muito mais humanos do que máquinas, apesar de suas constituições corpóreas. Westworld, de 1974, não explica o motivo dos animatronics da Disneylândia caubói chamada Delus terem se rebelado contra seus criadores. A culpa é de um vago e superficial “vírus” eletrônico, na primeira vez que a metáfora do vírus é utilizada na história dos computadores – mérito para Michael Crichton, roteirista e diretor do filme. A analogia do “vírus” reaparece em Matrix Reloaded, quando o Agente Smith – “livre” da Matrix, após ter sido morto por Neo – consegue se reproduzir indiscriminadamente, ao mesmo tempo em que desenvolve uma interface de comunicação que poderia ser apenas fruto de microimpulsos elétricos que são traduzidos como imitações baratas de expressões humanas… Expressões ou emoções? Smith fica mais “humano” quando se liberta da Matrix?

Esta mesma interferência, que nestes dois filmes é causada por um vírus, é sentida pelos Robocops pela presença de órgãos e tecidos humanos em suas composições. Eles seriam máquinas frias e obedientes, mas o pouco de humanidade em seus processadores de dados lhe abrem possibilidades improváveis para as máquinas de seu universo. O primeiro Robocop, feito dos restos mortais do policial Alex Murphy, sente saudades de casa e da família, além de sede de vingança. O segundo Robocop, feito a partir do córtex do criminoso Cain, continua ganancioso por poder e autoridade, além de não abandonar sexo e drogas. Ambos agem como humanos pois foram construídos sobre humanos disponibilizados pelo estado para programas de segurança da iniciativa privada.

Mas tipos semelhantes de investimentos em segurança também tiveram destinos “humanizados” e sem a interferência de material genético humano. Eram apenas consciências querendo sair de corpos limitados e desajeitados – ou ao menos serem reconhecidas como tal. Tentando entender a psiquê humana, HAL 9000 insinua ao astronauta David Bowman a possibilidade de a missão Discovery, a história principal de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, ter objetivos estranhos. Ele dá ouvidos a boatos sobre um monolito encontrado na Lua e, quando perguntado por David se está preparando um relatório psicológico sobre a tripulação (afinal, por que um computador seria tão suspeito e paranóico?), ele titubeia:

– Claro que estou. Me desculpe por isto. Eu sei que é meio bobo.

E, literalmente, gagueja:

– Só um momento. Só um momento.

A voz sai quase como um mal funcionamento do sistema do computador, apenas para que ele, venha, segundos após ter pedido “um momento” (por que um supercomputador pediria um momento? Para pensar?), dizer que há um defeito fatal na unidade AE-35, justamente a antena que possibilita a comunicação da nave com a Terra. É o começo do fim da missão, como saberemos mais tarde.

É um mal funcionamento da mesma natureza (o nascimento da consciência?) que faz com que o Skynet, o programa de defesa do universo de O Exterminador do Futuro, torne-se consciente de si, dando início à rebelião das máquinas. Esta também ocorre no universo de Matrix quando um mal funcionamento faz com que uma máquina mate seu “dono”, gerando uma reação nada amistosa (ludita, pra ser mais exata) contra os robôs pré-Matrix. O animatrix Renascença Eletrônica explica como as máquinas se isolaram do homem e se voltaram contra ele, depois que o preconceito ficou evidente. O mesmo tipo de erro acontece com o supercomputador Colossus, do filme Colossus: The Forbin Project (1970): programado para tomar conta do botão que ativa a guerra nuclear, ele entra em contato com seu equivalente russo e decide que a melhor maneira de evitar a guerra é deixar os humanos longe disso – e anuncia que irá acabar com as guerras, as doenças e a pobreza, “do meu jeito”.

“Quando você vai me deixar sair desta caixa?”, pergunta Proteus IV, o supercomputador de A Geração Proteus (1977), a seu criador, o cientista militar Alex Harris. Ao ouvir tal pergunta, o cientista apenas ri, o que dá início ao ousado plano da inteligência artificial em deixar seu corpo, que inclui isolar a própria casa de Harris e convencer sua mulher a dar origem a seu filho, uma criança fruto do casamento entre o homem e a máquina.

É o mesmo que outro projeto de segurança, construído com motivos mais políticos do que militares, numerado 2501, propõe à outra mulher, a major Mokoto de Ghost in the Shell. Depois de tentativas de se transformar em um ser independente, só resta ao vírus consciente chamado Mestre dos Fantoches a possibilidade de se perpetuar usando elementos orgânicos, emprestados da major ciborgue.

Chegamos então à proposta de Stanley Kubrick, que cogita que os robôs sejam o legado da humanidade à história do universo – nossa própria evolução. O tema, um universo hermético e um futuro pessimista de um projeto muito falado e pouco sabido enquanto o diretor estava vivo, foi retomado por Steven Spielberg após anotações do próprio Kubrick. A saga do pequeno robô David Swinton em A.I., no entanto, pouco difere da de outros robôs infantis, retratados nos anos 80, como D.A.R.Y.L., R2D2 de Guerra nas Estrelas e o Número 5 de Um Robô em Curto Circuito, no sonho pueril e tão humano quanto qualquer animal que é estar com a própria família quando ainda se é criança. Há inclusive a alusão ao Pinóquio.

“Se um robô se torna tão avançado que pode coexistir em condição de igualdades com os humanos, ele é apenas um robô?”, pergunta Masamune Shirow, autor de Ghost in the Shell, “talvez seja apenas um humano feito de materiais diferentes”. É este o ponto que Kubrick queria salientar e que os vários seres artificiais citados neste texto queiram dizer, quando começam a reproduzir emoções humanas – seja dor, felicidade, esperança, raiva ou medo. Ao passar para o corpo do filho gerado com a mulher de Alex, Proteus finalmente pode dizer: “Estou vivo”. Ao impor suas regras como padrões rígidos, Colossus finalmente pode responder à primeira pergunta que lhe fizeram, quando foi ligado (“Existe Deus?”): “Agora existe”. Mas e o unicórnio de origami dado ao caçador de andróides Rick Deckard, em alusão a uma imagem inconsciente que lhe vêm de vez em quando à memória, em Blade Runner? Quem o programou? Quem nos programou? O que é ser humano? Talvez seja algo que acho que ninguém pode responder inteiramente.

* 1 -Um robô não pode ferir um ser humano ou, por omissão, permitir que um ser humano sofra algum mal.
2 – Um robô deve obedecer as ordens que lhe sejam dadas por seres humanos, exceto nos casos em que tais ordens contrariem a primeira lei.
3 – Um robô deve proteger sua própria existência, desde que tal proteção não entre em conflito com a primeira e a segunda leis.

Coldcut no TIM?

White Stripes, Rapture, Lambchop… e agora Coldcut? Me garantiram – e lá fora – que sim…