Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.
Um dia alguém vai explicar esse hábito estranho de ler sobre um filme antes de assistí-lo. Vai de encontro a todas as possibilidades do cinema. É como se pudéssemos escrever o roteiro das coisas que sonhamos.
E essa história do Caetano gravar “Come As You Are”?
Bem legal esse texto. Tipo “coisas que precisam ser ditas”:
“Tradicionalmente, o mercado musical tem sido baseado em uns poucos nomes. Estes alimentavam os menores, de forma que tudo funcionava a contento. Ou seja, a gravadora investia em 10 artistas e, destes, só um dava certo, de forma a pagar pelo investimento dos outros 9. Por sinal, este número é real e coincide com a taxa normal de retorno de qualquer investidor institucional. Ou seja, nada de especial até aqui: a coisa funcionava bem. Porém, a concentração de nomes tem se intensificado muito ultimamente, e isto se originou em vários fatores.
Um destes foi a súbita descoberta das grandes cadeias de lojas em detrimento dos pequenos lojista. As gravadoras passaram a se focar quase que exclusivamente em megastores como Lojas Americanas, Carrefour, WallMart, etc, passando a ignorar o pequeno lojista. Isto devido ao fato das megastores comprarem muito mais do que uma pequena loja, dando assim menos trabalho. Isto foi um erro fatal, pois o pequeno lojista possui muito mais espaço e interesse em ter um estoque variado do que uma megastore, uma vez que ele vende exclusivamente música. Já as megastores vendem um pouco de tudo e, assim, não tem nem o interesse e muito menos o espaço para comportar muitos nomes e álbuns. Assim, o pequeno lojista acabou fechando as portas, adicionando ainda mais para a concentração de mercado nas megastores. O efeito final é que hoje é extremamente difícil se encontrar CDs que não sejam os manjados Sandy e Júnior, Padre Marcelo Rossi, e Kelly Key [urgh!], pois as megastores não se interessam em vendê-los, e as pequenas lojas que sobreviveram perderam o cash-flow necessário para se dar ao luxo de manter CDs com pouca liquidez nas prateleiras.
Outro motivo apareceu quando as rádios descobriram um excelente filão: não pagar mais royalties e, em vez disso, cobrar pela execução de músicas. O mercado, entretando, em vez de simplesmente se opor a este absurdo, concordou, e deixou que ele se estabelece-se. Isto criou uma enorme carga financeira nas gravadoras, que passaram a poder lançar somente uns poucos nomes, contribuindo ainda mais para a concentração musical.
Paralelo a esse mercado ‘oficial’, aparece um ‘paralelo’ chamado internet. Neste, o artista se vê reduzido a um mero arquivo MP3. Não importa o quanto coloque em marketing, publicidade, Relações Públicas, e blábláblá, o arquivo MP3 não vai crescer nem ficar mais bonito por isso. Não importa o quanto se fale sobre a qualidade da música contida nele, o arquivo sempre será um entre zilhões circulando no ciberespaço todos os dias. Não importa o quanto coloquemos de mídia, um zé-ninguém pode, com um investimento mínimo exatamente nesse marketing, publicidade, Relações Públicas, e blábláblá, obter o mesmo nível de exposição. Ou seja, foi introduzido no mercado a pior coisa que poderia acontecer nele: a DEMOCRATIZACÃO.
Porém, entra agora a pergunta que não quer calar: alguém proibiu o mercado de música de usar essas mesmas ferramentas para o seu bem? Obvio que ninguém. Nesse caso, porque, em vez de usá-las, tentam impedir que elas sejam usadas? Não porque elas sejam ‘piratas’, ou ‘ilegais’, ou o que for. É porque ele mesmo percebeu que invalida o seu negócio na medida em que o democratiza. É porque ele percebeu que a democratização da música faz muito mais mal do que qualquer pirataria. E isto se faz notar quando órgãos reguladores que processam pessoas acusadas de pirataria na internet afirmam estarem defendendo ‘toda a indústria’. Toda não, cavalheiro, pois há muitos músicos e selos independentes que não concordam com a maneira que a música está sendo levada, usam a internet com sucesso para divulgar os seus artistas, e nunca pediram para serem representados por ninguém. Porém, como estes não tem voz publica, acabam sendo engolidos pela retórica dos grandes players do mercado. Porém, uma vez mais, a própria internet vêm como salvação, permitindo que o público saiba realmente o que está acontecendo, como você mesmo está fazendo agora”
Quem me conhece que me compre: a capa da revista da MTV deste mês e parte da tradução do recém-lançado Zap Comix levam a mesma assinatura deste sítio. Satisfação garantida ou satisfação garantida.
É oficial: Alex Antunes traduziu o Neuromancer para a Editora Aleph (além de ter escrito o prefácio). Depois que eu ler, comento aqui, mas se der certo, os caras retomam a linha sci-fi. Cruzem os dedos!
Agora vai. Dobradinha entre a Slag e o Coquetel Molotov garantem a vinda dos escoceses mais legais do planeta ao Brasil. A notícia saiu do Diário de Pernambuco, vê lá. A data marcada é 27 de março do ano que vem e deve ter shows da PELVs e do Hurtmold, ao menos na etapa de Recife. Claro que o show deve descer pro Rio e pra São Paulo (e, talvez, além), mas não tem nada confirmado, por enquanto.
É a saída dos truculentos: brechou a criatividade, neguinho baixa o sarrafo. Não bastasse proibirem raves no Rio e em Floripa (faça a interseção e descubra o nome do partido), o Ivan da De Inverno volta a notificar outro chegapralá da polícia contra a diversão noturna curitibana. Siga o link.
Qual é a melhor banda da história do rock brasileiro? Fácil: os Mutantes. Olhando à distância, o rock nacional nunca teve grandes bandas, daquelas cujo estrago pode ser medido tanto pelas influências na geração seguinte quanto pelo apelo pop, esta qualidade enigmática que faz com que diferentes canções consiga tocar o ouvinte mais fundo que a distância entre o tímpano e o cérebro, mesmo que por pura diversão. De um lado temos bandas grandes (Legião, Paralamas, Titãs, Sepultura, Engenheiros, Secos & Molhados, RPM) cujo impacto de sua música em alguns momentos de suas carreiras balançaram o alicerce central da cultura brasileira. Do outro temos os injustiçados esquecidos pelo mercado (Tomzé, DeFalla, Walter Franco, Cascavellettes, Fellini, Arrigo, Joelho de Porco, Black Future, Picassos Falsos, Gang 90, Erasmo, Tim Maia, Premê) que ainda terão sua herança nacional reconhecidas com o tempo, finalmente premiando sua ousadia fora de época que lhes custaram as próprias carreiras. Os Mutantes equilibravam tanto experimentalismo quanto popularidade, embalando hits como Panis et Circensis e Ando Meio Desligado com álbuns que fundiam a transgressão sônica e lírica proposta pelo rock mundial da época, o desbocado humor brasileiro e uma energia que só adolescentes são capazes de liberar. E acabaram funcionando para o Brasil como o referencial mais próximo dos Beatles que nós temos.
Mas o que se sabe sobre os Mutantes? Todos conhecem a história, as histórias e os maiores sucessos do grupo (na voz deles mesmos ou em algum dos diversas canções-tributo ao trio/quinteto paulistano), mas sua música ainda é uma incógnita. E por apenas duas vezes na história tivemos a possibilidade de redescobrir o grupo através de reedições. A primeira e mais clássica delas aconteceu durante os anos 80, quando a gravadora independente Baratos Afins se dispôs a lançá-los de volta ao mercado. Ainda conseguiu relançar jóias perdidas relacionadaos ao grupo, como o primeiro disco solo do tecladista Arnaldo Baptista, o clássico Lóki?. Nesta mesma época, o jornalista e músico Thomas Pappon (então no Fellini) se dispôs a registrar pela primeira vez a história do conjunto, entrevistando os principais envolvidos e escrevendo um marco na história da história do rock brasileiro, publicado em duas edições da extinta revista Bizz. O advento do CD trouxe novo interesse pelo trabalho do grupo no começo dos anos 90, quando a gravadora PolyGram trouxe os Mutantes para o disquinho prateado. Além das “todas as letras revisadas por Arnaldo Baptista”, a remessa trouxe toda discografia do grupo, Lóki?, os dois primeiros discos solo de Rita Lee (o primeiro – Build Up – com a participação de todos os Mutantes em diferentes faixas, o segundo – Hoje é o Primeiro Dia do Resto da Sua Vida – com os Mutantes como banda de apoio da cantora, considerado por muitos o melhor disco do grupo) e o disco engavetado do conjunto, O A e o Z. Sem Rita, este álbum entregava os pontos que o quinto disco da banda (Mutantes e Seus Cometas no País dos Bauretz) e descambava para o rock progressivo do calibre do Yes. Se você tem discos brasileiros dos Mutantes em casa ou são vinis lançados na época ou nos anos 80 ou são CDs do começo dos anos 90. Nenhum disco do grupo saiu de outras senão destas três safras.
Até que o jornalista Carlos Calado resolveu estrear sua bibliografia biografando o grupo paulista. Com o óbvio título de A Divina Comédia dos Mutantes, o livro de 1996 não trazia grandes surpresas no enredo da história já contada por Thomas quase dez anos antes. Mas entre as surpresas descobertas pelo escritor, estava um disco inédito do grupo, formado apenas por faixas conhecidas, quase todas cantadas em inglês. O álbum foi gravado em Paris quando o grupo passou em uma temporada de shows no final de 1970. Escoltados pelo produtor inglês Carl Holmes (que insistia na sonoridade brasileira do grupo), os Mutantes entraram no Studios Des Dames em Paris em novembro daquele ano e registraram Tecnicolor, o disco que lançaria a banda na Inglaterra e na França. Mas por algum motivo, a Polydor inglesa não se interessou pelo álbum, como sua sucursal brasileira, a Phillips. A fita foi arquivada num estúdio londrino e desenterrada por Calado, embora trechos do disco fossem conhecidos pela rede de pirateiros especializados no grupo. O autor ensaiou um relançamento do disco à época que o livro saiu, mas problemas burocráticos empacaram o processo. Mas uma recente onda de música brasileira no exterior fez com que o interesse pelo grupo crescesse tanto ao ponto da gravadora de David Byrne lançar uma coletânea do grupo (Everything is Possible) e o selo indie Tal reeditar os três primeiros álbuns dos Mutantes. Tal mania pela música do grupo fez com que os realizadores deste projeto conseguissem agilizar o lançamento do álbum inédito com a PolyGram (que, pra complicar ainda mais as coisas, foi vendida para a Universal – a empresa, não a igreja). O resultado chega às lojas esta semana.
Historicamente, Tecnicolor se situa entre as duas fases do grupo: a careta (dos três primeiros discos, quando a ingenuidade e espontaneidade do grupo eram a força-motriz de sua criatividade) e a chapada (dos três últimos, quando a técnica passa a ser fator primordial no método de composição, até o grupo tornar-se um monstrengo progressivo). Ao gravar um disco fora do país depois de alguns anos habituados com o estúdio, os Mutantes tiveram a oportunidade de reescrever sua história a partir do zero, pescando os melhores títulos e adaptando-os para o inglês e para sua sonoridade de então. Transbordando criatividade, o disco é o ponto de mutação do grupo, o momento em que as duas fases se convergem para o mesmo lugar. Este lugar é o disco em questão e se você não consegue decidir-se qual dos dois estágios do grupo você prefere, Tecnicolor é o melhor disco dos Mutantes.
“É hora de entrar em contato com as coisas que nos importamos”, sussurra, em inglês, Rita Lee na faixa que batiza o álbum. É uma boa desculpa para adentrarmos no universo do grupo. Sabemos da importância dos Mutantes, mas poucos se dispõem a mergulhar em sua biosfera de psicodelia apaixonada e jogos de calçada. Com Tecnicolor, é impossível resistir ao convite musical que a banda nos propõe, acompanhado dos mais belos vocais já cantados pelo trio principal: Arnaldo, Rita e o guitarrista Sérgio Dias. A química entre os cinco músicos (Liminha no baixo e Dinho na bateria) é perfeita e é possível detectar claramente o que foi improvisado no estúdio e o que nasceu de observações à parte.
Tecnicolor é, antes de tudo, um registro preciso do amadurecimento técnico do instrumental dos Mutantes. Aqui eles policiam seus excessos e prolongam as faixas ao instante em que elas parecem nos fazer querer mais, reduzindo o volume até a jam continuar apenas em pensamento. Os vocais são sussurrados e sob controle (Rita geme em Batmacumba, seduz em Baby, assombra em Le Premier Bonheur du Jour; Arnaldo lamenta-se em I’m Sorry Baby e o trio hipnotiza com Tecnicolor, na reprise de Panis et Circensis e Adeus Maria Fulô) e os poucos arranjos são inéditos, emboras muitos (Virgínia, El Justiciero, Baby, Saravá) fossem aproveitados quase integralmente no álbum seguinte à gravação do disco francês, Jardim Elétrico. As mudanças mais drásticas acontecem em I Feel A Little Spaced Out (Ando Meio Desligado) com o improviso comendo solto entre o baixo condutor e o teclado e a jam session de hard blues na parte final da canção e em Adeus Minha Fulô, onde a levada caribenha ganha ares de caixinha de música acompanhada com cuíca e marimba. Fora estas, poucos detalhes ajudam a envernizar o glamour das faixas do grupo, como o pesado teclado futurista em Virgínia, a bela guitarra de Le Premier…, o final que mescla Ob-La-Di Ob-La-Da com Rain (as duas dos Beatles) em She’s My Shoo-Shoo (divertida versão para A Minha Menina, de Jorge Ben), a versão crua de Saravah, o solinho de piano jazzy ao final de Baby… A brasilidade come solta por Batmacumba (onde parte da percussão é feita por guitarra e contrabaixo) e She’s My Shoo-Shoo (com agogô e cuíca), enfatizando a intenção do produtor Holmes em lançar o grupo no mercado europeu aproveitando a nova febre de música brasileira no mercado. Duas faixas (She’s My Shoo-Shoo e Baby) citam nominalmente “samba” e “bossa nova” em suas adaptações para o inglês, embora não contem com os termos nas versões originais. A delicadeza e respeito que o grupo tem para sua musicalidade faz com que, mais uma vez durante o disco, lembremos de Plastic Soda, o disco recente de Jupiter Apple.
O disco só peca por seu acabamento. O limpeza de som proposta por Carlos Freitas é menos digital que a média, mas perde-se parte dos graves que as válvulas dos amplificadores do grupo faziam rugir (poderia ser pior se caísse nas mãos do Liminha). O design de Paulo Pelá Rosado e Gê Alves Pinto lembra os últimos discos do Legião Urbana, feitos sem cuidado e com um duvidoso senso de estética. A capa só precisava de uma faixa prateada por cima para ser assinada pelo Hans Donner. A gravura de Sean Lennon (fã de última hora do grupo) na contracapa é ineficaz: não tem nem o primitivismo rústico dos desenhos do pai John, nem a esquizofrenia trêmula do traço de Arnaldo Baptista. Dessem este serviço a Arnaldo (que atualmente mais desenha do que toca) ou ao inglês Alan Voss (que ilustrou a capa de Jardim Elétrico e No País dos Baurets), o resultado conseguiria capturar o astral dos dias de glória do grupo. Mas mesmo com toda a produção executiva de Marcelo Fróes remando contra, o conteúdo passa incólume, indiferente a tratamentos plásticos que possam arruinar sua embalagem. Nunca os Mutantes estiveram tão em forma quanto nesta gravação que, mesmo sem o brilho pueril dos primeiros álbuns, é item obrigatório no panteão da banda. Perfeito.
1. Panis et circencis
2. Batmacumba
3. Virginia
4. She’s my shoo shoo (A minha menina)
5. I feel a little spaced out (Ando meio desligado)
6. Baby
7. Tecnicolor
8. El justiciero
9. I’m sorry baby (Desculpe, babe)
10. Adeus, Maria Fulô
11. Le premier Banheur du Jour
12. Saravah
13. Panis et circensis
Os Kinks costumam ser menosprezados pela história. Sua importância iguala-se à de grupos como Who e Rolling Stones, mas seu hermetismo inglês e a dificuldade em lidar com os padrões do showbusiness (tema recorrente de algumas de suas melhores faixas), o colocaram no segundo escalão do rock britânico dos anos 60. Injustiça: a banda formada pelos irmãos Ray (guitarra e vocal) e Dave Davies (guitarra e vocal), Mick Avory (bateria) e Pete Quaife (baixista, depois substituído por John “Nobbly” Dalton) não é apenas uma das principais bandas de rock do período, como Ray Davies é um dos melhores compositores pop da segunda metade do século. Aliando os diferentes e complementares lados da moeda, os Kinks têm a melhor fase de sua carreira revista nesta ótima coletânea.
As duas primeiras faixas de Singles Collection mostram exatamente o que eram os Kinks em seus primeiros dias. Tanto a versão para “Long Tall Sally”, de Little Richard, quanto a original “You Still Want Me” revelam que o grupo dos irmãos Davies tinha mais garra e disposição do que talento propriamente dito. As coisas passam a mudar com “You Really Got Me”. Eleita pelo lendário crítico Lester Bangs como o elo perdido entre “La Bamba”, de Ritchie Havens, e “No Fun”, dos Stooges (que, por sua vez, faria a ponte com “Blitzkrieg Bop”, dos Ramones), o terceiro single dos Kinks trazia a energia de uma banda juvenil, graças ao riff primitivo e ao esfuziante solo de guitarra (que a lenda reza ser de Jimmy Page, fato negado com veemência por qualquer Kink) com o primeiro espasmo de senso melódico do líder do grupo, enunciado pelas sutis mudanças de tom no meio da canção.
As coisas começavam a dar certo para o grupo. “All Day and All of the Night” seguia a fórmula do compacto anterior: um frase de guitarra repetida por toda a canção martelando o ritmo ao lado da bateria, solo tocado a todo gás e vocais balbuciados sem compromisso. A batida primitiva da canção e seu vocal acompanhando o riff foram surrupiados mais tarde pelos Doors em “Hello I Love You”. A balada “Tired of Waiting of You” muda a equação do sucesso para manter-se no topo. “Sabia que para sobreviver, tínhamos de mudar. Não podíamos repetir a mesma fórmula”, explica Ray no encarte do disco, “este foi um fator contínuo em nossa carreira”. Ao reduzir a marcha do ímpeto adolescente, Ray Davies aos poucos retornava para os dias anteriores aos Kinks, quando se apresentava ao lado do irmão cantando canções convencionais – e a parte central da canção mostra que este rumo seria seguido. Este seria o desafio proposto pelos Kinks: juntar o vigor do rock’n’roll com a perfeição estrutural do cancioneiro do século 20. Tudo parecia dar certo, mas ainda faltava um elemento.
O grupo passou a testar diferentes possibilidades durante o ano de 1965: ritmo (“Everybody’s Gonna Be Happy”), progressões de acordes (“Set Me Free”), técnicas de gravação (“See My Friends”) e potencial radiofônico (“Till the End of the Day”). Com “Where Have All the Good Times Gone?”, involuntariamente imitando Bob Dylan (como John Lennon fazia ao mesmo tempo nos Beatles), Davies descobriu a chave para reunir as qualidades do grupo. Tornou-se um crítico social com o humor ácido que logo se tornaria tipicamente inglês com a exportação dos jovens comediantes do Monty Python.
“Dedicated Follower of Fashion” inaugura o ano de 1966 com uma pequena pérola do repertório dos Kinks. Era a primeira canção a criticar vários estereótipos da vida urbana inglesa, ganhando imediato contato com o público britânico. Ray Davies passa a descrever o dia-a-dia londrino com muita propriedade, mesclando elementos de rock’n’roll à musicalidade de carrossel da capital inglesa. Resgatando as melodias metronômicas da Inglaterra vitoriana, ele atualiza a Londres tradicional para os dias de Swinging London, se tornando uma referência até mesmo entre seus contemporâneos – vide Paul McCartney, que sempre dedicou alguma faixa em seus discos pós-1966 a jazzinhos vaudeville como “Your Mother Should Know”, “Honey Pie” e “When I’m 64”. Com “Dedicated…”, os Kinks iniciavam uma fase de crítica social e humor contemporâneo, criando os ares típicos de sua época. É impossível pensar na Londres psicodélica sem esbarrarmos nas composições sarcásticas e deliciosas do grupo.
Depois viriam “Well Respected Man”, a preguiçosa “Sunny Afternoon” (“Eu gosto de viver tão prazeirosamente/ Viver esta vida de luxo/ Espreguiçando-se numa tarde ensolarada/ No verão”), “Dead End Street” e o ápice de sua carreira de singles, a perfeita “Waterloo Sunset”. Ao mesmo tempo em que aprimorava a forma de descrever a vida diária na Inglaterra do fim dos anos 60 (reflexo de um exílio forçado nos Estados Unidos), Ray Davies revelava-se um compositor versátil e de extremo bom gosto, liderando sua banda como um maestro moderno, um Brian Wilson inglês. Enquanto todos seus contemporâneos de Invasão Britânica cantavam a expansão da consciência em referências alheias e psicodélicas, Ray olhava para seu país e seu povo, observando a classe média britânica como poucos colunistas de costumes. Sua viagem era interior e outras jóias – como “Autumn Almanac” e “David Watts” (regravada pelo Jam nos anos 70) – ajudam-nos a compreender seu ponto de vista. Ao mesmo tempo, seu irmão Dave optava por um lado mais pop, com suas próprias canções, como a bela pero enfadonha “Death of a Clown” e “Suzanah’s Still Alive”.
No final dos anos 60, o grupo passou a dedicar-se a óperas rock, como Village Green Preservation Society e Arthur, caricaturas grotescas do status quo inglês em canções que orgulhariam qualquer integrante da família real – não fossem as letras. Enfatizando os álbuns, os Kinks desandaram nos singles, deixando-os para canções menores como “Wonderboy” e “Days”. Duas exceções à fase são pontos altos do grupo: a ácida e envolvente “Victoria” (regravada nos anos 80 pelo Fall) e “Lola” (a primeira canção sobre um travesti). A coleção termina a fase da gravadora Pye (representada nos EUA pela Reprise) com a heterodoxa e divertida “Apeman”, onde dançando ao sabor de ritmos latinos, Ray Davies celebra a vida natural do homem das cavernas.
A coletânea não faz apenas jus à reputação do grupo como é uma excelente porta de entrada para o universo dos Kinks, soterrado pela história devido ao tamanho de grupos como Beatles, Stones, Led Zeppelin, Cream e Who. Influência declarada de todo o britpop e até de brasileiros como Jupiter Apple e Grenade, os Kinks têm sua primeira e melhor fase tratada com dignidade e classe. Só é de se lamentar a ausência do segundo disco da compilação, que conta com dois volumes na edição inglesa (com takes inéditos, demos e novos tratamentos de estúdio de algumas das melhores faixas do grupo).
1. Long Tall Sally
2. You Still Want Me
3. You Really Got Me
4. All Day and All of the Night
5. Tired of Waiting for You
6. Everybody’s Gonna Be Happy
7. Set Me Free
8. See my friends
9. Till the End of the Day
10. Where Have All the Good Times Gone?
11. Dedicated Follower of Fashion
12. Well Respected Man
13. Sunny Afternoon
14. Dead End Street
15. Waterloo Sunset
16. Death of a clown
17. Autumn Almanac
18. David Watts
19. Susannah’s still alive
20. Wonderboy
21. Days
22. Plastic Gun
23. Victoria
24. Lola
25. Apeman
“Nossa vida é o assassinato pelo trabalho: durante sessenta anos ficamos enforcados e estrebuchando na corda, mas não a cortamos”
Duas publicações na banca falam de um assunto que eu já venho falando há um tempo e que, pouco a pouco, vem sendo assimilado (mesmo que na marra) pela maioria das pessoas: como o trabalho (emprego, salário, benefícios, horário, patrão, essas coisas) se tornou uma coisa completamente sem sentido e que as pessoas precisam se divertir, ficar sem fazer nada, contemplar a vida e fazer o que gostam, em vez de gastarem sua energia vital sem a mínima salubridade.
A Trip traz uma matéria sobre coletivos em que lista nomes como Bijari, Formigueiro e Instituto, entre outros, como exemplos de novas formas de trabalhar. A matéria começa com a tônica de provocação típica deste assunto: “Você tem um sonho profissional e acha impossível realizá-lo? Por quê? Você não tem um monte de amigos na mesma situação?” pra continuar: “Está sem emprego e sem perspectiva? Cansou de engolir chefe mala? Não quer um trampo burocrático numa grande empresa? A revolução está nas suas mãos”.
O único porém da matéria é fechar-se em grupos tecnocêntricos (gente que faz bonito porque, entre outras coisas, investiu em equipamento) e ficar só no eixo Rio-SP. O único coletivo mais lo-fi citado é a Livros do Mal, mas há coletivos espalhados por todo o Brasil e que não tem muito mais equipamento do que o básico (computador, alguns programas, acesso à internet – às vezes menos que isso), gente trabalhando em condições muito mais próximas da realidade do que parece supor o texto. Entre os coletivos citados está a Conspiração Filmes, que, apesar de na prática funcionar como um coletivo, vive uma esfera mais próxima das agências de publicidade. Mas, no geral, a pauta é boa e é bom saber que tem gente no mercado editorial vendo esse tipo de coisa.
(Um parágrafo/parêntese para comentar uma das capas, com o Sérgio Dias: é a segunda vez que os Mutantes aparecem em uma capa de revista – e com a mesmíssima foto que foi capa da Bizz numa das edições de seu último ano de existência. Até aí vai. Foda é identificar o cara como “Sérgio Batista”, sendo que nem é preciso manjar muito de Mutantes pra saber que os irmãos Arnaldo e Sérgio dividiram seus sobrenomes irmãmente: Arnaldo ficou com o Baptista (com o P mudo) e o Sérgio ficou com o Dias – tanto é fato que a revista publica o email e o site do músico (www.sergiodias.com.br). Mas o pior é o rancor do guitarrista, que atravessa toda a entrevista, culminando com a pérola: “Drum’n’bass? Hip hop? Cadê o movimento cultural por trás disso?”. Ficar velho é uma bosta…)
A outra revista que aborda a doença que se tornou o trabalho é a edição da semana da Carta Capital. A pauta é explicada na própria capa: “Quando o trabalho destrói a vida: quem tem o privilégio de estar na ativa sofre cada vez mais de ansiedade, depressão e estresse. Pesquisadora canadense diz: ‘O brasileiro trabalha demais'”. Ainda há textos sobre e-escravidão e um manifesto-relâmpago do Robert Kurz, do grupo Krisis. Vale citar um trecho de um artigo do professor Thomas Wood Jr., o guru de administração de empresas da revista:
“Eventualmente, pergunto a gerentes e alunos de programas executivos como anda seu dia-a-dia profissional: a resposta vem em forma de desabafo, seguido por histórias de terror sobre jornadas diárias de 14 ou 16 horas, pressões imensas e prazos impraticáveis. Então, lanço uma segunda pergunta: e o que vocês têm realizado de importante e interessante, ultimamente? Segue notável, significativo silêncio”
Pelo menos algumas coisas estão sendo ditas.
“Vozes em sua cabeça dizem: ‘Pare de gastar seu tempo, nada vai acontecer. Só um tolo acreditaria que alguém irá te salvar. Os caras da fábrica estão velhos e cansados, você não tem nada a perder, por isso saia correndo. São os melhores anos da sua vida que querem roubar”
As aspas do começo do texto é a frase que encerra o Manifesto Contra o Trabalho, do grupo Krisis (você nunca leu o Manifesto? Pô, tem de graça na internet – use a impressora do seu patrão contra ele), retirada da peça A Morte de Danton, de 1835, do dramaturgo austríaco Georg Büchner. As aspas do final é a parte do meio de “Clampdown”, do Clash.