Por Alexandre Matias - Jornalismo arte desde 1995.

Biscoito fino

Isso é que eu chamo de profissa: um user do blogger chamado fperacoli tá fazendo um senhor trabalho e reunindo parte da produção psicodélica brasileira num mesmo sítio, essa pérola chamada Brazilian Nuggets, com bios e arquvios zipados dos discos inteiros. Tem Manduka, Baobás, Geração Perdida, Brazões, a trilha do Deus e o Diabo na Terra do Sol, Daminhão Experiênça, Liverpool, Ronnie Von, Zé Ramalho… Coisa que nem o Gavin pode relançar em CD porque não tá em acervo de major nenhuma.

Repetindo o link, aqui: http://brnuggets.blogspot.com/

Deus lhe dê em dobro, alma caridosa.

PS – Tomate saiu do limbo da cantina escolar pra passar dois linques nesta mesma vaibe, se liguem no Vinil Velho e no Acesso Raro. Outros dois bons brasileiros, fazendo sua parte. Alguém sabe de mais algum?

Domingo-feira

Dia 23 de Abril – Domingo
Projeto 2em1 agora no
Coppola Music apresenta:
Móveis Coloniais de Acaju & Lado 2 Estéreo
Djs: Alexandre Matias e Luciano Kalatalo
Horário : 19h00
Preço:
Lista de desconto R$12,50
Inteira 25,00
Coppola Music
Rua Girassol, 323 – Vila Madalena
3034 – 5544

As megacorporações, as drogas, a internet e a mídia

McDonald’s e Maconha, Coca-Cola e cocaína.

Assim Sou Eu

200_odair.jpg

Bizz com os Paralamas na capa (Pedro Só matando a pau na matéria), número 200, entrevistão meu com o Odair José (tem até foto minha, meninas) que eu só posto, por enquanto, o mesmo tanto que a Bizz liberou. Quando a 201 hit the bancas, eu posto tudo. E falando nisso, o podcast da revista teve a minha participação nos vocais, falando justamente sobre o OJ brasileiro. Escuta aqui. Ah, a foto é do Coskoman, grande Eugênio.

Qual sua primeira memória musical?
Meu pai mexia com terra, na região de Morrinhos (interior de Goiás), perto de Caldas Novas. Chegava a época da colheita, ele fazia uma confraternização. Foi quando vi um trio com dois violeiros e um sanfoneiro. Achei legal e pedi um violão a minha mãe, de Natal. Mas meu pai me deu um cavaquinho, porque, pelo meu tamanho, era mais adequado (ri). Tinha um cidadão que tocava violão de sete cordas na banda da cidade e me ensinava todo dia um acorde. Naquela época, eu tocava boleros, modas de viola, música italiana, americana. Aos 12 anos, quando me mudei para a capital, Goiânia, apareceram os Beatles. Eu cantava todas as músicas dos Beatles, em serenatas, numa bandinha chamada Monft.

Como é que é?
Monft – eram as iniciais da gente: Marcelo, Odair, Nadir, Fayed e Tuca… Depois fui convidado para ser crooner de banda de baile, os Apaches, que era famosa em Goiânia. Cantava Beatles, Animals… Mandava qualquer inglês, mas cantava (ri). Daí, comecei a compor. Depois, fui tocar no conjunto do maestro Marquinhos, que era mais profissional. Ele tinha um programa na televisão e eu fazia a parte considerada “jovem”, que os cantores dele não gostavam. Então, conheci o Roberto Carlos. Nosso conjunto abriu o show dele em 1965, quando eu tinha 18 anos. Fui conversar com o Roberto, falei que tinha umas músicas e ele falou: “Vai pro Rio, aqui não tem condições…”. E nisso, eu fui mesmo. Saí fugido, na calada da noite, não falei pra ninguém. Fui na ilusão de encontrar o Roberto. Fiquei um ano sem dar notícias, você imagina a cabeça da minha mãe…

E a parte do deslumbre com sucesso, dinheiro, drogas, mulheres, como você lidou com isso?
Ganhei e gastei muito dinheiro à toa. Se eu tivesse guardado a metade, estaria quaquilionário. Mas não me arrependo. Às vezes faz falta, mas não virei músico pra ganhar dinheiro. Se eu tivesse trabalhado a vida inteira no barzinho da praça Mauá, seria feliz do mesmo jeito. Sobre mulheres, curti minhas namoradas, mas sempre fui homem de uma mulher só. Não sei viver sem mulher. Até me questiono: “Será que quando eu morrer vai ter mulher pra onde vou?” Porque se não tiver, vai ser uma merda. Tem umas partes da Bíblia que Jesus diz que lá em cima, ou lá embaixo, pra onde a gente vai, não tem disso. Então, tá mal. Drogas: experimentei maconha e cocaína, mas não faziam a minha cabeça. O baseado me deixava muito zen, até demais. Sou meio marcha lenta, e aquilo me deixava mais lento ainda. A cocaína me deixava três dias com o olho arregalado, também não funciona. A minha droga sempre foi a cachaça. Não a cachaça mesmo, mas um uísque, sempre gostei de uísque, e ultimamente tenho gostado de um bom vinho. E de vez em quando faz um calor danado e uma cervejinha cai bem.

Essa pecha de cafona não te incomodava?
Gosto é uma coisa de cada um. Nunca tive mágoa na minha vida. Sempre li os comentários ao meu trabalho e nunca me magoei. Agora mesmo, na Folha de S. Paulo, o Evangelista (Ronaldo Evangelista, também colaborador da BIZZ) comparou o tributo que fizeram pra mim (Vou Tirar Você desse Lugar) com o meu disco novo, dizendo que Só Pode Ser Amor não teria novidade, que é o que as pessoas esperam do Odair José. A gravadora não gostou. Mas o que ele falou é a pura verdade, o disco é o Odair José. E não era isso que eles queriam? Tenho uma música chamada “Cadê Você?”, que parece o “Parabéns a Você” de tão simples. Mas só ela, cantada por mim ou por outros artistas, já vendeu mais de 7 milhões de discos. Agora, vai fazer uma música dessas! Fazer música cheia de acordes, de coisinhas pra lá e pra cá, é mais fácil de fazer do que “Mamãe Eu Quero”. Outro dia eu estava assistindo a TV e passou uma entrevista com o Carlos Lyra e ele falou uma coisa tão fraca: “Você sabe que nós, o pessoal da bossa nova, éramos bem informados e fazíamos música pra gente mesmo. Não íamos tocar na Rádio Nacional, onde tinha o Francisco Alves, a Ângela Maria. O nosso negócio era mais intelectual, era pra Ipanema”. O cara é um babaca! Porque todos eles eram cópias do João Gilberto, que veio lá de Juazeiro da Bahia, nunca foi intelectual e não morava em Ipanema.

“Why Did You Do It”

baileruts04.jpg

E aí, sabadão, simbora? Nessa edição da feshteenha que eu faço com o Ramiro, várias novidades, como DJ convidado pela primeira vez (o pernambucano Bruno Pedrosa, do Transformer, que compilou remixes de músicas de artistas de seu estado) e banda surpresa na área. Sacolejo firme, coisa de louco, suingue maninho e Tony Manero. Vai pagar dez reau ou quer entrar na faixa? Se é o seu caso, manda o nome da sua tchurma pro meu email até o sábado mesmo, às 18 horas. Prometo que vai ser altos filé.

Mais uma sessão de sessões

Novos VF na área, já que tu não assina o RSS…

Vida Fodona 9: Supergrass na movimentação, demo do Flaming Lips, Céu, a namoradinha da crítica de MPB do Brasil, Walverdes brusco, Jesus & Mary Chain tocando Pink Floyd, Def Squad visitando Beastie Boys, Preza na íntegra, a banda de rock do Nego Moçambique, Mutantes clássico, música nova do TFC e set do Camilo Rocha com Jimi Hendrix e INXS.

– “Moving” – Supergrass
– “Body Movin’” – Def Squad vs. Beastie Boys
– “Capitão Presença” – Instituto
– “Jogo de Calçada” – Mutantes
– “It’s All in My Mind” – Teenage Fanclub
– “Assim Sou Eu” – Odair José
– “Seja Mais Certo” – Walverdes
– “Lenda” – Céu
– “Feeling Yourself Disintegrate (Eve Session)” – Flaming Lips
– “A Man is a Man” – Oz
– DJ Set do Camilo Rocha
– “Vegetable Man” – Jesus & Mary Chain

Vida Fodona 10:
Entrevista e dois sons do Bonde do Rolê, Jack Johnson, Digitaldubs inédito com o Mr. Catra, o fim do surfe dos Beach Boys, Bad Folks, Kanye West sampleando Curtis Mayfield, Stretch, Four Tet ao vivo, Asian Dub Foundation + Racionais MCs, demo do Exile on Main Street, Takara, Headhunters e a única música lançada (até agora) do projeto Maquinado, do Lucio Maia.

– “Máquina de Ricota” – Bonde do Rolê
– “Sutura” – Maquinado
– “Good People” – Jack Johnson
– “6? – M. Takara
– “Coyotte Girl Revisited” – Bad Folks
– “She Moves She” (ao vivo) – Four Tet
– “Ventilator Blues (demo)” – Rolling Stones
– “I Remember I Made You Cry” – Headhunters
– “Why Did You Do It” – Stretch
– “Touch the Sky” – Kanye West
– “Dança da Ventoinha” – Bonde do Rolê
– “19 Rebellions” – Asian Dub Foundation e Edy Rock
– “Se Liga Nelas” – Digitaldubs e Mr. Catra
– “Surf’s Up” – Beach Boys

Vida Fodona 11: Músicas novas do Edu K, Chico Correa, D2, Repolho e De Leve, sessão motorik com Can, Stereolab e Wilco, Flaming Lips tocando Radiohead, LCD Soundsystem e Pink Floyd no mesmo clima, Sérgio Mendes no hip hop, Satanique Samba Trio e Jorge Ben clássico.

– “Toda Colorida” – Jorge Ben
– “Never As Tired As When I’m Waking Up” – LCD Soundsystem
– “Burning Bridges” – Pink Floyd
– “Knives Out” – Flaming Lips
– “Mother Sky” – Can
– “Spiders (Kidsmoke)” – Wilco
– “Metronomic Underground” – Stereolab
– “Gueto” – Marcelo D2
– “Samba Da Bênção (Samba Of The Blessing)” – Sergio Mendes e Marcelo D2
– “México” – De Leve
– “Baile Muderno” – Chico Correa & the Electronic Band
– “Teletransputa” – Satanique Samba Trio
– “Gatas” – Edu K
– “Definhando Lentamente ou Emagrecimento Definitivo” – Repolho

Fear of Music – Talking Heads

Visto de fora, nossa normalidade é a coisa mais absurda possível. Matamos e fritamos bichos pra comer. Estudamos metade da vida para trabalharmos em coisas que não tiveram a ver com nada daquilo que aprendemos. Carros usados como armas, armas usadas como brinquedos, brinquedos usados como formas de provocar os outros. O comportamento humano talvez seja a verdadeira essência da humanidade. Não é a racionalidade ou a estrutura física ou a espiritualidade que nos torna quem somos: é a forma que agimos uns com os outros, como nos portamos diante das diversas situações da vida, rituais e manias que, tiradas de contexto, não fazem sentido algum. Você não vê nenhuma espécie no planeta terra – e talvez no universo – que seja, ao mesmo tempo, tão sábia e tão idiota. Isso é a base da obra davidbyrneana, a síntese do conceito das letras dos Talking Heads. Analisando a sociedade humana como se a antropologia (ou a zoologia) fosse a sociologia, David Byrne muda um pouco o foco da realidade e vê uma coisa completamente diferente. Assim, torna-se um cara à frente do nosso tempo, mesmo que por apenas uma hora. Percebendo algumas coisas antes de todo mundo, Byrne é metade do que faz o Talking Heads uma das melhores bandas detodos os tempos. A outra metade é a poderosa seção rítmica do grupo.

Fundado em pleno punk rock, os Talking Heads (como o B-52’s, o Devo, o Fall, o Gang of Four e tantos outros) transformaram a inaptidão técnica em ritmo, criando grooves – quadrados, em geral – que nos impunham ao ritmo robótico da canção. Mas aos poucos, a banda começou a criar uma forma prática de tocar que floresceu onde ninguém esperava – na cozinha. O casal Tina Weymouth e Chris Franz era mais inofensivo que qualquer outro tipo de dupla. Ela frágil e apática, ele gordo e sorridente, usando bonés daquele jeito que só os caipiras norte-americanos conseguem. Mas dali, provavelmente da química sexual dos dois, surgiu uma máquina de ritmo sinuosa e marcial. O baixo de Tina é macio e meloso, conduzindo a dança no sentido horizontal, enquanto o maridão trabalha no sentido vertical com pulso firme e preciso; um funk minimal que cresce e controla o ambiente. Acrescente aí a guitarra e os teclados de Jerry Harrison, o mesmo que, ao lado de Johnattan Richman e sob a supervisão do ex-Velvet John Cale, gravou as primeiras demos que mais tarde se tornariam o primeiro e clássico disco dos Modern Lovers. Jerry solava bem, mas reduziu sua guitarra ao suíngue apertado de Tina e Chris e passou a usar o teclado mais como uma máquina de ruídos, tocando-o como um piano quando necessário. À frente de tudo, a figura caricatural de David Byrne. Magrelo e constantemente de olhos arregalados, Byrne não tinha cabelos espetados ou jaqueta de couro. Pelo contrário, tocava usando roupas normais, calças de linho e camisas de gola, meias de algodão e tênis. Seu ar tímido contrastava com sua performance robótica que, acrescido de sua voz nem aguda nem grave e deliciosamente desafinada e da forma percussiva que tocava seu instrumento – às vezes uma guitarra, às vezes um imenso violão. Eram os Talking Heads. Sua crítica social irônica era – junto com o marxismo do Gang of Four e o pós-modernismo do Pere Ubu – o máximo que o rock poderia se aproximar do intelectualismo sem parecer pedante ou, pior, progressivo. No final dos anos 70 esta palavra era vista com os piores olhos possíveis, criando um preconceito que atravessa décadas (alguém já disse que é impossível ignorar um gênero inteiro e isso é verdade).

E os Heads eram intelectuais. E botavam o povo pra dançar. E aos poucos ganharam omundo. Mas estamos ainda em 1979, quando o grupo ainda vinha sendo assimilado. O primeiro disco, Talking Heads’77, contou com a sorte de um hit perfeito: Psycho Killer, um clássico. O segundo, More Songs About Food and Buildings, os associava pela primeira vez com Brian Eno, num casamento que se mostrava prático e promissor. Ainda não era o suficiente. Precisavam de uma prova definitiva, um disco que não deixasse dúvidas se o grupo era bom ou não. E assim nascia Fear of Music.

Centralizando sua tese sociológica no medo, David Byrne explicava com detalhes um mero capítulo de algo que as pessoas não tinham certeza que sequer existia. Era um disco conceitual sobre o medo sem sequer citar o medo. As canções encerram conceitos definitivos sobre assuntos diversos e todos eles são encarados com estranheza, com diferenciação. O medo é decorrente. Gravado no apartamento de Chris e Tina, em Long Island (Nova York), Fear of Music começa nos apresentando ao desconhecido.

I Zimbra é uma letra do poeta nonsense Hugo Ball e não quer dizer nada, pelo menos que saibamos: “Gadji Beri Bimba Clandridi/ Lauli Lonn Cadori Gadjam/ A Bim Beri Glassala Glandride/ E Glassala Tuffm I Zimbra”. O ritmo é tenso e repetitivo e o funk torna-se sombrio e mais negro que em qualquer outro disco do Talking Heads. Culpa do baixo de Tina Weymouth, que torna-se um elástico de groove da noite pro dia e da percussão afro-caribenha que aos poucos vai tomando conta do grupo. A letra é cantada em coro como um rito tribal por todos os Talking Heads e por Brian Eno, que “trata” o disco (a definição é dele mesmo – “treatments”, nos créditos) e acrescenta teclados esquizóides ao final da canção. Na base, quieto, quase escondido, Robert Fripp ajuda Jerry e David a compor o muro de som que cresce até explodir subitamente ao fim da música.

Em Mind, o baixo de Tina (o fio condutor de todo o disco) puxa as guitarras abafadas que parecem datilografar alguma palavra. Byrne, preocupado, procura algo para mudar a mente do ouvindo, já que nem as drogas, nem o tempo, nem a ciência, nem a religião, nem o dinheiro, nem ele mesmo parecem surtir efeito. “Tento falar consigo para esclarecer as coisas/ Mas você sequer me ouve”, canta desesperado, enquanto as guitarras cantam riffs preguiçosos que deslizam pelobaixo central.

Paper tenta incitar a paranóia: “Segure o papel contra a luz (alguns raios podem atravessá-lo)/ Exponha-se lá fora por um minuto (alguns raios podem atravessá-lo)”. O suíngue torna-se massivo e, paradoxalmente, minimal, e é enfeitado com guitarras que parecem extraídas de Revolver, dos Beatles.

Cities começa baixinho até explodir num groove robótico que seria explorado melhor no disco do ano seguinte, Remain in Light. Na letra, Byrne descreve cidades pelos defeitos, enquanto procura um lugar pra morar: “Pense em Londres, uma cidade pequena/ É escuro, escuro de dia/ As pessoas dormem de dia/ Se quiserem”, “Há muitos ricos em Birmingham/ Muitos fantasmas em muitas casas/ Olha lá: uma fábrica de gelo seco/ Um bom lugar pra arrumar idéias prontas”, “Esqueci de Memphis/ Casa de Elvis e dos gregos antigos/ Eu tô fedendo? Eu fedo a comida/ É só o rio, é só o rio”. Sem avisar ninguém, Byrne “rouba” uma estrofe inteira, imprimindo apenas sualetra no encarte.

Life During Wartime (que foi surrupiada por Marcelo Nova para compor Hoje, do Camisa de Vênus, e recentemente gravada pelos Paralamas do Sucesso) é o mais próximo do Talking Heads que estávamos acostumados. Como diz o título, a canção fala da vida durante a guerra, mas sem romantismo ou pavor. A faixa conta a história de um cara que, em meio a uma guerra, tenta viver uma vida normal, apesar de tudo. A letra compila alguns dos melhores momentos do letrista. “Ouvi falar numa van cheia de armas pronta pra sair. Ouvi falar de cemitérios clandestinos perto da estrada, num lugar que ninguém sabe onde é. Som de tiros à distância, estou me acostumando. Moro na periferia, moro no gueto, moro por toda cidade. Isso não é uma festa, não é uma discoteca. Não dá pra ficar de bobeira. Não dá pra dançar ou paquerar. Não tenho tempo pra isso. Transmita a mensagem ao receptor, espere respostas, algum dia. Tenho três passaportes, um par de visas, não sei nem meu nome de verdade. Perto da colina, estão abastecendo caminhões, tudo está pronto pra sair. Durmo de dia, trabalho à noite, nunca mais chego em casa. Isso não é uma festa, não é uma discoteca. Não dá pra ficar de bobeira. Não tenho tempo pro Mudd Club ou pro CBGB. Não tenho tempo pra isso. Ouviu falar de Houston? Ouviu falar de Detroit? Ouvi falar em Pittsburgh, PA? Melhor não ficar à janela, alguém pode vê-lo. Tenho umas frutas e manteiga de amendoim pra alguns dias. Não tenho caixas, não tenho fones, nem discos pra ouvir (…) Adoraria te beijar, adoraria te abraçar, não tenho tempo pra isso”.

Memories Can’t Wait fecha o lado A com a mais séria canção dos Heads. Pesada e deprê, Memories… fala em amnésia e coma, mas de forma pertubadora e sutil: “Você lembra de alguém aqui?/ Não, você não se lembra de ninguém/ Estou dormindo, deitado/ Nunca acordei, não me arrependo/ Há uma festa na minha mente/ Que nunca acaba/ Uma festa lá em cima o tempo todo/ Vão festejar até cair/ Outros podem ir pra casa/ Outros podem ir dormir/ Estou aqui o tempo todo/ Não posso ir embora”. Pela primeira vez as guitarras assumem o comando e o resultado é a música mais assustadora dodisco.

O lado B começa no extremo contrário. Air é doce e suave (com belos backing vocals) e dá ao baixo os controles do disco, mais uma vez. Agora o objeto de insegurança e aflição é o ar, que, segundo Byrne, “também pode te machucar”.

Heaven talvez seja um dos melhores momentos do disco. Rock lento e onírico, a faixa descreve o céu como um lugar que nada (ou “o nada”) acontece o tempo todo. “A banda no céu toca minha música favorita/ Toca mais uma vez, toca a noite inteira”, “Quando esse beijo acabar, recomeçará/ E não será diferente, será exatamente o mesmo”. O nada e a morte tornam-se objetos de uma apreciação lúdica e inédita na música pop. “É difícil acreditar que o nada absoluto possa ser ser tão excitante, tão divertido”.

Animals brutaliza a banda para falar da agressividade e do instinto animalesco do ser humano. “Descobri que os animais não ajudam/ Eles pensam, são bem espertos/ Cagam no chão, vêem no escuro/ Nunca estão lá quando precisamos deles/ Nunca estão lá quando os chamamos/ (…) Animais pensam, entendem/ Acreditar neles é um grande erro/ Animais querem mudar minha vida/ Eu sempre foi ignorar conselhos de animais”. Realçando o lado animal do ser humano, Byrne transforma os bichos em seres tão racionais como nós, apenas para ridicularizar nossas ansiedades e fobias.

A guitarra elétrica é posta em um tribunal em Electric Guitar. O som é um antiska que conta a história de um atropelamento (da própria guitarra), que chega a algumas conclusões: “Nunca ouça a guitarra elétrica” e “Alguém controla a guitarra elétrica”.

Drugs encerra o disco com uma atmosfera ao mesmo tempo tensa (culpa do baixo, dos teclados e da guitarra esparsa) e bucólica (culpa dos sons florestais sob o som da banda).

Fear of Music é mais uma versão contemplativa que o Talking Heads faz da raça humana, observando-a desta vez pelas coisas que lhe incomoda, que lhe assusta. E é o disco em que o funk do grupo está mais coeso e denso, antes de explodir no universo de ritmos caribenhos que seria o próximo disco do grupo, Remain in Light. Mas isso é outro papo…

Jack’s back

Eu tou selecionando umas coisas do YouTube pra linkar aqui, mas tinha que colocar isso antes

“Good People” – Jack Johnson

B E C#m F#
You win it’s your show now, So what’s it going to be?
B E C#m F#
cause people will tune in, How many train wrecks do we need to see?
B E C#m F#
Before we lose touch, And we thought this was low
B E C#m
Well it’s bad, getting worse….

F# B E C#m
Where’d all the good people go?
F# B E C#m
I’ve been changing channels and I don’t see them on the tv shows
F# B E C#m
Where’d all the good people go?
F# B E C#m F#
We’ve got heaps and heaps of what we sow

B E
They got this and that with a rattle a tat
C#m F#
Testing, one, two, man whatcha gonna do
B E
Bad news misused, got too much to lose
C#m F#
Give me some truth now, who’s side are we on
B E C#m F#
Whatever you say, Turn on the boob tube, I’m in the mood to obey
B E C#m
So lead me astray, And by the way now…

F# B E C#m
Where’d all the good people go?
F# B E C#m
I’ve been changing channels and I don’t see them on the tv shows
F# B E C#m
Where’d all the good people go?
F# B E C#m F#
We’ve got heaps and heaps of what we sow

Bridge chords
E B C C# F# F
e—0—-7—-2—-3—-4—-2—-1|
B—0—-9—-4—-5—-6—-2—-1|
G—2—-9—-4—-5—-6—-3—-2|
D—2-or-9—-4—-5—-6—-4—-3|
A—1—-7—-2—-3—-4—-4—-3|
E—0————————2—-1|

E B
Sitting around feeling far away,
C C# F# F
So far away but I can feel the debris, can you feel it?
E B
You interrupt me from a friendly conversation
C C# F#
To tell me how great it’s all going to be
F E B
You might no-tice some hesitation
C C# F#
It’s important to you, it’s not important to me
F E B
But way down by the edge of yo–ur reason
C C# E
It’s beginning to show, and all I really want to know is…

F# B E C#m
Where’d all the good people go?
F# B E C#m
I’ve been changing channels and I don’t see them on the tv shows
F# B E C#m
Where’d all the good people go?
F# B E C#m F#
We’ve got heaps and heaps of what we sow (Where’d all the good people go?)

B E
They got this and that with a rattle a tat
C#m F#
Testing, one, two, man whatcha gonna do
B E
Bad news misused, give me some truth
C#m F#
You got too much to lose, Whose side are we on
Where’d all the good people go?
B E
today anyway, Okay whatever you say
C#m F#
Wrong and resolute but in the mood to obey
B E C#m F#
Station to station, desensitizing the nation
Where’d all the good people go?
B
Going, going, gone

Já é

Aeroporto tinindo, trincando de novo, o Zumbi dos Palmares faz bater os dentes até do visitante mais anticalor que Maceió pode receber – não era o meu caso, mas o frio vinha avassalador. Novinho em Folha, o aeroporto cheira a frigorífico e um ar condicionado power me gela-me os ossos feito filme de terror. Não deixa de ser assustador: tremendo aeroporto, completamente vazio, gelado por dentro e exibindo um sol escaldante do lado de fora. Sinto como se estivesse no aeroporto de Fenda no Tempo do Stephen King ou no shopping de A Madrugada dos Mortos, de George Romero: a qualquer minuto, o desconhecido vai entrar por aquelas portas de vidro e invadir geral.

Mas estamos no Brasil e a nóia com a violência é importada – invadamos nós. Do aeroporto pro calor das Alagoas (que não desce dos trinta, no máximo à noite), atravesso Maceió rumo ao Lagoa das Antas, onde os “gringos” (convidados, imprensa, bandas) ficarão hospedados. “Gringos”, expressão dita com uma ironia atravessada na garganta, são os cariocas e paulistanos que visitam a cidade – representantes do eixo Rio-SP que podem nem serem nascidos no sudeste (Gabriel do Autoramas é de Brasília, Catatau do Cidadão é cearense) mas foram respaldados por cidades que não são as suas. “Gringos”, expressão que carrega todo o escárnio sentido pelos locais: esses sujeitos que têm mais dinheiro que a gente.

Em Maceió, o simples fato de entrar na cidade pelo aeroporto te faz gringo. O ar condicionado lembra à alma que você não é dali, ou, se é, está deixando de ser. O frio como uma zona de transferência, uma doca social entre dois ambientes, um que voa com freqüência e um que admira e inveja esses que voam. Em Alagoas, índices sociais quase no fundo do poço, essa diferença fundamental do Brasil cresce aos olhos, pobreza e miséria de diferentes nuances vêm lembrar à caravana de turistas que, belas praias, belas praias, mas isso aqui é o terceiro mundo.

Maceió é um imenso amontoado de pequenas cidades do interior, como se centenas delas migrassem do agreste para o litoral para não morrer de fome e, quis o destino, sobreviveram melhor unidas, sem fronteiras. Pelas inacreditáveis distâncias percorridas em uma cidade com menos de um milhão de habitantes, é possível ver diversas pracinhas, com casas de fachada portuguesa, árvores frondosas, carrinhos de pipoca. Não há neon nem placas com luzes fluorescentes, as lojas se anunciam pintando letreiros nas paredes, como se ainda fossem os anos 50 ou 60. Pouquíssimos carros (o “engarrafamento” anda a 20 por hora) e muita gente a pé, belíssimas praias sujas pelo descaso. Não há prédios com vinte andares, avenidas caóticas, poluição visual ou sonora nem a vocação para a metrópole. A noite é um imenso barzinho, quase sempre de terra batida ou mesa na calçada.

Cenário mais do que improvável para um festival de música independente? Analisando superficialmente, sim. Afinal, nem Alagoas nem Maceió têm tradição em revelar nomes musicais para o resto do país, como seus estados vizinhos: fora Hermeto Paschoal e Djavan, que raramente são associados a seu estado de origem, pouco se sabe da música que sai daquele estado. Ainda paira sobre Alagoas o fantasma de PC Farias e a sombra de Fernando Collor, embora que, ao mesmo tempo em que estes montavam seu império com sede em Brasília, uma geração de músicos começasse a, lentamente, colocar a cidade no mapa.

O pioneiro foi o grupo Living in the Shit, cujo nome, sintomático, denunciava a falta de perspectiva do cenário local. Era a fagulha necessária para dar ignição à cena. Depois do Living, vieram bandas como Oito, Ball e Santo Samba, cada uma acrescentando um pequeno tijolo na incipiente cena alagoana do final do século vinte. Das fileiras destas bandas saíram nomes que ajudaram a cidade se estabelecer como um pequeno celeiro musical, com atmosfera, tempero e sotaques culturais próprios, longe de estar à margem de Recife ou Salvador.

Se a cidade nada tem de metropolitana, o mesmo não pode ser dito de parte de seus habitantes. Há um pequeno mas expressivo público para cultura independente, mais interessado nas novidades da cidade do que buscando fugas para o aparente tédio local. Gente que, com piercings, dreads, tatuagens, cabelos coloridos e sem preconceitos sonoros, fura só nos anos 00 do novo milênio uma barreira pela qual as principais cidades do Brasil atravessaram entre 1969 e 1996 – do pós-tropicalismo ao pós-mangue beat. Essa chegada tardia de Maceió ao cenário pop brasileiro, no entanto, não deformou os ares locais, como aconteceu em cidades como Curitiba (coesa mas esquizofrênica, segura de si mas sem rumo), Salvador (onde a axé music transformou roqueiros em xiitas), Florianópolis (que só faz quando tá com vontade, os verdadeiros novos baianos) e Belo Horizonte (cuja síndrome de inferioridade sob Rio e SP a faz esquecer que alguns dos nomes-chave do pop Brasil dos 90 [Sepultura, Pato Fu, Skank e, sem julgamento de valor, Jota Quest] vieram de lá). Tanto que os principais nomes da cena local não parecem emular bandas “gringas” – sejam internacionais ou do dito “sul maravilha”. Há um som que é da cidade. Todos os principais nomes da cena pós-Living buscam uma sonoridade que, ao mesmo tempo desalinhe a evolução urbana atrasada de Maceió e mantenha as características de uma pequena vila de pescadores que parece persistir nas metáforas e no clima quase sempre ensolarado – se noturno, ao menos quente – dos luminares da cidade (soando igualmente alagoano, cosmopolita e universal).

Estes são três, não por acaso os melhores shows da primeira edição do Festival de Música Independente, da infame sigla FMI, que aconteceu no último fim de semana de março, na capital de Alagoas. Wado, Mopho e Sonic Jr. Consagraram-se como o tripé fundamental da música da cidade, ao redor das quais orbitam nomes como os locais Xique Baratinho e Marcelo Cabral & Trio Coisa Linda, e novatos equivalentes de estados próximos como o paraibano Jackson Envenenado, o potiguar Experiência Apyus, o pernambucano Negroove e o mestiço Pedra de Raio (das ex-comadre florzinha Telma César, de Alagoas, e Renata Mattar, de São Paulo), todos convocando sonoridades distintas (forró, MPB, rock clássico, choro, funk, samba, música regional, indie rock, reggae) que se mesclam à medida em que cada grupo puxa determinados ingredientes do parêntese acima para compor o seu guisado musical. A música de Alagoas já absorve a tendência ao amálgama musical, pulando a fase da justaposição (funk metal, forró-core, ska com rap, indie com bossa) pela qual todo grande centro pop brasileiro já ultrapassou.

Mas antes dos shows memoráveis do sábado e domingo, a abertura do FMI na sexta, sem querer, teve cara de carta de intenções. Chamou um baiano e um pernambucano contemporâneos dos movimentos musicais que sagraram suas cidades no mapa pop brasileiro – o tropicalista Tom Zé e o mangue beat do Bonsucesso Samba Clube – e dois representantes locais da música alagoana, clássicos senhores, Chau do Pife e Tororó do Rojão. O primeiro, que se fosse metido à besta se apresentaria como Charles do Pífano, é um Louis Armstrong do forró. Conduzindo standards do gênero com a sutileza e a reverência de um mestre, Chau só parava para agradecer a oportunidade de tocar para aquele público e para falar da própria feiúra. O segundo, o forrozeiro classudo Tororó do Rojão, anunciado como uma espécie de ancestral de Genival Lacerda, mas que, na prática, localiza-se entre o sambista Riachão e o pagodeiro Moreira da Silva – um malandro clássico, terno branco e tudo o mais, que aconteceu de nascer nas Alagoas em vez de na Lapa carioca. Juntos, Chau e Tororó em nada parecem remeter à nova geração do pop alagoano, mas essencialmente têm, juntos a mesma qualidade que partece unir a música de Maceió – a reverência e a irreverência simultânea, como se respeitar e rir fossem o mesmo verbo.

Entre os dois, Tom Zé tirou um atraso de toda uma carreira para com a cidade, onde só tinha se apresentado em 1962, cinco anos antes de iniciar sua carreira discográfica, quando ainda era apenas estudante de música na Federal de Salvador. E o fez em grande estilo, executando um pout-pourri não apenas de suas músicas, mas de suas apresentações. Começou passando a íntegra da opereta Segregamulher e Amor, de seu último CD, Estudando o Pagode, que funcionou maravilhosa no cenário de ópera que era o local da noite de abertura, o Teatro Deodoro. Depois reviu seus hits tropicalistas, sua fase pós-David Byrne, seus anos 70, sua faceta de bardo solitário – faltaram apenas os instrumentos de seu bestiário particular, encarnados em disco no ano 2000. Mas o público, maravilhado com a compleição do artista, deixou-se hipnotizar e, mesmo encarando esparsas caretas de esgar quando pegava em assuntos belicosos (lembre-se que seu disco mais recente fala sobre machismo, feminismo, homossexualismo e prostituição infantil – quase sempre sem rodeios), foi guiado para a Utopia de Tom Zé, este plano de palavras e sons para onde somos levados num êxtase em meio ao show do baiano – e quem nunca foi, bom sujeito não é.

Depois, do lado de fora do teatro, o grupo olindense Bonsucesso Samba Clube começou a segunda parte da sexta-feira apresentando pérolas do novo disco, Tem Arte na Barbearia, como “Derrapar”, “Não Posso Pensar em Não Ir”, “Rios, Fios” e “Meu Jornal”, ao lado de notáveis de seu disco de estréia, como “Pensei Se Há” e “O Samba Chegou”. O carisma do vocalista RogerMan é comparável ao dos sambistas de velha guarda (aquele mesmo que Seu Jorge – atração do Coachella – emula com tanto cuidado e mercê), o que sublinha a palavra do meio do nome da banda, que ainda abre espaço para “um cover”, anunciam, ironicamente, antes de tocar o clássico “Volta por Cima” (“Levanta, sacode a poeira…”) do sambista e paleontólogo Paulo Vanzolini. A banda, sutil e detalhista, segue o samba, mas bate do ar da caixa feito bossa nova, tem o grave condutor do reggae roots e a escaleta do dub, além de um backing vocal da era do rádio e um guitarrista rock não-ortodoxo, funcionando quase como tios musicais do Mombojó.

O fato do festival ter começado no Teatro Deodoro dava uma suntuosidade de brinquedo ao evento: com a mesma cara de um teatro de ópera clássico, o pequeno Deodoro é muito menor do que casas de ópera de verdade, dando um ar de miniatura ao simpático teatro. Na entrada do Teatro, uma banda mecânica nos recepcionava – “robôs” musicais como os bonecos do Kraftwerk, a banda Só Bonecos é, na verdade, um enorme sintetizador analógico com engrenagens que disparam instrumentos de verdade, que tocam diferentes ritmos nordestinos ao simples apertar de botões – frevo, forró, maracatu, baião, xote. Uma inacreditável relíquia musical, quase uma invenção do professor Pardal encarnada aos olhos dos passantes. Nos dias seguintes, mesmo com a presença surreal da banda, a coisa mudaria de figura, em termos de ambientação. Sai a ostentação pequena do Teatro, entra a superestrutura montada na Uzina, uma enorme usina transformada em casa noturna, com pé direito de mais de vinte metros de altura e dois palcos para dez shows por dia, um deles com direito a ar condicionado. Foi neste palco que aconteceram as atrações mais deslocadas do festival (o instrumental Duofel, o free jazz de Beto Batera e o trance acústico roots do Projeto Cru), que, independente de suas “propostas”, foram bem recebidos pelo público.

Outros shows-chave do evento aconteceram ali, como os locais Mopho e Sonic Jr. Enquanto a última é, na verdade, apenas o ex-baterista do Living in the Shit Juninho que, depois de diferentes formações, resumiu a própria versão ao live P.A. consigo mesmo, cantando, disparando bases e às vezes assumindo a batera sozinho no palco; o Mopho existe na cabeça do vocalista e guitarrista João Paulo do mesmo jeito que o Pink Floyd foi uma visão de Syd Barrett. Dois grandes shows, o Mopho ganhou pela paixão despertada pelo público, que já compreende este amálgama de Mutantes e Roberto Carlos como patrimônio estadual. Quase sempre frito, o vocalista é observado como um sobrevivente de uma época que não viveu, como se fosse possível resgatar Arnaldo Baptista do pé-na-bunda que Rita Lee lhe deu no fim dos Mutantes, quase uma relíquia histórica. Já Juninho vai pela cintura e conquista todos com o ritmo.

Outro momento mágico do festival foi a apresentação do grupo cearense Cidadão Instigado, o Dark Side of the Moon da rádio AM. Irrepreensível, o grupo gira o momentum musical progressivo e popularesco ao redor de seu líder, Fernando Catatau, que transforma qualquer lapso de holofote deixado pela banda num monumento a seu instrumento, a guitarra. Cada show do Cidadão é melhor do que o anterior, Catatau atingiu a autonomia de vôo em suas composições e a banda está entrosada como se tivessem uma década de existência, pelo menos. Uma apresentação imperdível, um dos grandes shows brasileiros atualmente.

Já no palco quente (e sem ar condicionado, em Maceió, isso quer dizer pelo menos 30 graus), os grandes shows foram os da banda Vibrações Rasta, dos Autoramas e de Wado. A Vibrações é o equivalente alagoano de bandas como Natiruts e Planta & Raiz – uma banda de reggae raiz, e ponto. Uma boa banda de reggae raiz, bom salientar, apesar da afetação marleyista demais do vocalista – que é um verdadeiro fenômeno popular em Maceió. Faz muitos shows, tem público fiel – principalmente na periferia, que é quase toda a cidade – e são até pirateados por camelôs, que é um parâmetro definitivo pro sucesso comercial. Foi o que fez o bom show da banda, boa resposta de público, bom vínculo com a banda, química perfeita.

O Autoramas fez a mesma coisa, mas com a pegada industrial do rock’n’roll e para um público bem menor. Uma das poucas bandas independentes brasileiras que sobrevive de seu trabalho, o trio carioca faz shows como operários do rock. “Só não tocamos em dois estados do Brasil, até agora”, comemora o guitarrista e cantor Gabriel Thomaz, pouco antes de subir no palco e se apresentar em mais um dia de trabalho. Com a mesma energia, garra e eficácia de qualquer show da banda, veneno escorrendo pelo canto da boca como tempero de rock feito pra dançar.

Mas a grande apresentação do festival foi o reencontro de Wado com seu público quase-conterrâneo (Wado, de sobrenome Schlickmann, é catarinense adotado por Maceió). Há dois anos sem se apresentar nas Alagoas, depois de uma temporada carioca que transformou-se num exílio, ele fez uma apresentação nos braços do público, que cantava todas as músicas de seus três discos, deixando o vocal de “Ontem Eu Sambei” para a massa, em transe de felicidade, como toda a banda. Uma pequena e poderosa amostra do poder da música como catalisadora de sentimentos em si mesma, canções como cápsulas de emoção. Semelhantes às do show do Living in the Shit, datado nos anos 90, que trouxeram aos sobreviventes nascido na cidade lembranças de um tempo em que um festival como o FMI não exisitiria nem em sonho na cidade.

O festival chegou ao fim com a certeza de ter entrado para a história de Maceió – nunca havia acontecido um evento desta natureza na cidade, grande ou pequeno. Mapeando a própria cena ao mesmo tempo em que se projeta timidamente, mas sem modéstia, no cenário independente brasileiro, o FMI já é.