Clássicos internacionais de 1972 – Parte 2

Dando continuidade à série que inaugurei nesta sexta-feira no site da CNN Brasil, sigo falando de discos lançados há meio século que seguem importantes até hoje. 1972 foi o ano do disco mais bem-sucedido do Neil Young, do primeiro disco da dupla alemã Neu!, da sombria obra-prima de Nick Drake, do disco mais ousado de Miles Davis, do disco solo mais memorável de Lou Reed, da volta por cima de Ornette Coleman e do momento em que o Genesis torna-se uma brincadeira séria.  

Vida Fodona #502: Esse formato deve mudar em breve

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Retomando o ritmo…

Nicolas Godin – “Orca”
Ornette Coleman – “Lonely Woman”
Luiz Melodia – “Pra Aquietar”
Criolo – “Plano de Voo”
Tulipa Ruiz – “Oldboy”
Hot Chip – “Burning Up”
Quarto Negro – “Ela”
Courtney Barnett – “Small Poppies”
Delgados – “Clarinet”
Spoon – “New York Kiss”
Frank Jorge – “Tempo pra Viver”
Curumin – “Selvage”
Of Montreal – “Gallery Piece”
Mercúrias – “Desse Jeito”
M.I.A. – “Can See Can Do”
Florence & the Machine – “What Kind of Man (Nicolas Jaar Remix)”

Vem cá.

A imensidão de Ornette Coleman

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O pessoal da Ilustrada pediu para que eu falasse um pouco mais sobre a morte de um dos maiores nomes da música do século passado, Ornette Coleman. Postei o vídeo aqui.

Em show em SP, Ornette Coleman tocou no escuro; era sobre-humano

Ornette Coleman era daqueles sobre-humanos como Picasso, James Brown, Crumb, Eduardo Coutinho, Lou Reed e Orson Welles, uma força revolucionária encarnada em uma pessoa que redefiniria forma e conteúdo de toda uma linguagem artística.

Sua musicalidade demolidora expandiu ainda mais os limites do jazz, que já haviam sido extrapolados por Miles Davis e John Coltrane –ele queria ir mais longe que os outros dois.

Em sua última apresentação no Brasil, quando tocou em 2010 no Sesc Pinheiros, ele pôde mostrar um pouco dessa força.

A luz elétrica acabou no meio de uma do disco “Dancing in Your Head” (justo qual!) e depois de alguns segundos em silêncio, ele e sua banda prosseguiram no escuro, criando um momento único para os presentes.

No fim do show, mesmo aos 80 anos, ele foi encontrar o público à beira do palco, dando autógrafos e cumprimentando todos até que o último saísse. Mais que um mestre, um guru.

Ornette Coleman (1930-2015)

ornette

Ornette Coleman era daqueles sobre-humanos como Picasso, Miles e Orson Welles, uma força da natureza encarnada em uma pessoa, que levou a música a uma esfera inimaginável até então. Pude registrar sua apresentação em 2010 no Sesc Pinheiros e, como todos que o viram ao vivo, sou uma pessoa melhor por causa disso. Abaixo, o momento mágico de sua segunda apresentação naquela vinda, quando a luz acabou no meio de “Dancing in Your Head” – e ele continuou mesmo assim:

Aqui tudo que consegui filmar naqueles dois dias:

Ave Coleman.

Vintedez: Mulatu, Ornette e Freaks & Geeks


Continuamos nosso logo papo sobre o sentido da vida, o universo e o que comer na hora do almoço com uma novidade considerável: música! Testamos uma trilha sonora neste terceiro Vintedez e funcionou melhor do que imaginávamos. Outra novidade é que abandonamos o computador para as gravações, usando o bom e velho gravador de voz para registrar nossa falta do que fazer (isso quer dizer que o Vintedez agora é móvel). E, no papo de hoje, falamos sobre o disco novo do Mulatu Astatke, do show do Ornette Coleman e da série Freaks & Geeks, entre muitos outros parênteses e hyperlinks citados no andar da carruagem.


Ronaldo Evangelista & Alexandre Matias – “Vintedez #0003 (MP3)

Dançando em sua cabeça

Ornette Coleman
27 e 28 de novembro de 2010
Sesc Pinheiros @ São Paulo

Nunca fui do jazz. Nasci entre os anos 60 e os 80, época em que o gênero degringolou para algo próximo do rótulo MPB no Brasil – aquela cerca feita para separar os adultos dos adolescentes – e, naturalmente, desandou para a chatice virtuose. Ao mesmo tempo, comecei a gostar de música numa época em que o rock havia se estabelecido comercialmente e a música pop havia atingido seu estado mais puro e perfeito, Abba, Madonna e Michael Jackson concretizando a profecia de Phil Spector. Fiquei completamente alheio ao jazz (ou “jás” como falavam os emepebistas) em meus anos de formação e só comecei a ouvi-lo com mais atenção graças ao formato digital: primeiro que permitiu o reempacotamento de discos difíceis de serem encontrados em deslumbrantes caixas de CD e depois graças à facilidade de contato com música antes inatingível, via conexões P2P online.

Foi através da rede que comecei a vasculhar os acervos das gravações de Miles Davis, John Coltrane e Charlie Parker, que já me haviam sido apresentados em box sets cheios de informações extras – faixas não utilizadas nos discos originais, fotos raras, textos e mais textos sobre os artistas em questão. E o que era apenas citado ou referido nos encartes – uma capa de disco, um artista citado quase casualmente – podia ser vasculhado online, nos anos em que o Napster ainda era legal (nos dois sentidos).

(Aliás, cabe um pequeno parêntese: quem hoje tem qualquer música de qualquer época do mundo à sua disposição com algumas poucas palavras-chave no Google não imagina como era difícil conhecer música antigamente. Era preciso estabelecer uma rede de contatos no exterior [sem email e com ligações internacionais caras pra cacete], ler míseras publicações sobre o tema [quantas eram as mais importante? Vinte?] que mal chegavam no Brasil ou viajar para o exterior para visitar lojas de discos, que, em outras eras, eram verdadeiros templos de consumo. Lembro do meu deslumbre em minha primeira viagem ao exterior ao encontrar, por exemplo, todos os discos do Velvet Underground relançados em CD, uma banda que, para mim, não passava de uma dezena de fotos, outra dezena de textos e uma fita cassete gravada pelo meu professor de história do segundo ano, o Serginho. Vocês não fazem idéia o que era ter de esperar mais de seis meses para ter alguma noção sobre como realmente soava uma banda cujo hype na Inglaterra ou em Nova York havia acabado de começar.)

E entre os inúmeros downloads que levavam horas para ser realizados (um disco durava o dobro de sua duração, em conexões boas, para ser baixado), um nome surgiu desumanamente sólido em minha frente: Ornette Coleman. Sempre deixava Miles ou Coltrane tocando no fundo de alguma situação que estava acontecendo, mas quando ouvi Something Else!!!! fui abalado fisicamente. Não era só Ornette – todos os músicos (Don Cherry no trompete, Walter Norris no piano, Don Payne no baixo e Billy Higgins na bateria) seguiam rumos particulares no meio da canção, para se reencontrar em uma determinada frase ou refrão, todos juntos, na mesma pegada. Um som tão forte e intenso quanto meus artistas favoritos por sua força e intensidade, mas ao mesmo tempo era elegante, moderno, apurado. E pesado. Não no sentido rock do adjetivo, mas no beatnik… Heavy stuff, man…

Depois que descobri que esse era o primeiro disco de Ornette como líder de uma banda, que ele trabalhava como ascensorista de uma loja de departamentos em Los Angeles e que escolheu músicos que conheceu nas redondezas, quase todos pós-adolescentes, como ele. Antes de saber de qualquer informação sobre o cara, não tive dúvidas: drenei tudo que tivesse a tag Ornette Coleman no meio e, por uns bons seis meses, passava horas e horas ouvindo-o demolir harmonia, melodia e ritmo com uma marreta cubista, liderando bandos de arruaceiros musicais que tocavam o terror em cima de melodias simples e compactas. E era uma audição freestyle: botava-o no shuffle e deixava-o correr pela madrugada, com ou sem fones de ouvido, sem distinguir, época, faixa, disco. Ornette Coleman era um colosso mitológico, cada fonograma de sua obra uma célula de um gigante fantástico, um lutador de boxe em escala bíblica.

Mas não fui com tanta sede ao pote nas duas apresentações de Coleman em São Paulo, no fim de semana. Por um simples motivo – sua idade. Em 2010, o velho Ornette crava seus 80 anos e era esperar demais que se entregasse a dezenas de minutos de demolição sonora no auge de sua vida. O clima nos dois dias era de reverência e ele não vinha apenas da platéia, entregue à grandiosidade da lenda, mas, principalmente, vinha do palco. A própria formação da banda já o colocava num novo patamar: Ornette, dois baixistas e um baterista. Tony Falanga pilotava o baixo acústico, que ganhava solenidade quando, com um arco, o transformava em um cello. Albert MacDowell, no baixo elétrico, também partia para o inesperado, fazendo seu instrumento soar como uma guitarra. Atrás, o filho de Ornette, Denardo, desenfreado, mexia-se sem parar na bateria apenas para soar minimamente em transe, num ritmo quase abstrato de tão quebrado.

À frente, Ornette, velhinho, caminhando devagar, quase sem conversar com o público e cochichando alguma programação no repertório, recostava-se numa banqueta e soprava seu sax – que, como esperado, pouca vezes atingia a intensidade dos velhos discos, levando toda apresentação para uma versão mais calma e mais compacta. Cada solo, por menor que fosse, era uma pequena viagem, um delírio zen, uma meditação palpável. Mas não estou falando em música calma e compacta, e sim destas qualidades associadas à música de Ornette Coleman, sempre imprevisível – a ponto de sacar um trompete ou um violino e continuar, em outro instrumento completamente diferente do seu, o discurso que vinha conduzindo no sax.

Cheguei atrasado no primeiro show e assisti tudo do alto do balcão, na última fila, e, apesar de ver os artistas à distância, manteve o mesmo impacto sonoro do que o show do domingo, que assisti a duas fileiras do palco. Neste, no entanto, aconteceu algo tão inusitado, que elevou a apresentação de culto religioso à pura magia. Ao fim de “Lonely Woman”, no tempo da bateria, cai a energia do teatro do Sesc Pinheiros – e acendem-se, imediatamente, as famigeradas luzes de emergência, atrás do público. Curto silêncio seguido de uma onda de murmúrios e cochichos, perguntando-se sobre a continuidade da noite, a infraestrutura da casa, um possível blecaute na cidade. Logo até as luzes de emergência se apagam e, no fundo, começamos a ouvir o tilintar do chimbau do baterista, seguido por uma linha de baixo que apresentava o sax de Ornette. Sem microfones, sem energia elétrica. A platéia entrou em êxtase por dez segundos e em seguida calou-se. “Dancing in Your Head” dançou em nossas cabeças sem que pudéssemos ver seus músicos, apenas a música solta no ar. E, no meio da música, voltam os microfones, um holofote encontra o baixista para depois achar Ornette e as luzes do palco voltarem a funcionar. Um desses momentos indescritíveis, em que a música torna-se intraduzível e a experiência ao vivo, única. Sem dizer uma palavra e com o acaso a seu favor, ele soprou sua força vital sem precisar de nada além de seu instrumento.


A energia acaba aos 4 minutos do vídeo

Ao final do segundo espetáculo, Ornette ainda se deu ao trabalho de cumprimentar o público do palco, fazendo surgir uma pequena multidão erguendo canetas e papéis para o velho boxeador autografar. E ele continuou ali, assinando papéizinhos e perguntando como se soletrava tal nome em português, por quase vinte minutos após o show.

Inacreditável.

(E se alguém quiser me ajudar dizendo quais os nomes das músicas que eu filme aí em cima, eu já agradeço de antemão)

Freek

E, pra completar, nesse finde tem dois shows do Ornette Coleman. Putalamierda… Quem vai?