O que acontece no final de Sopranos

, por Alexandre Matias

sopranos-final-scene

Liv conversou com o criador dos Sopranos, David Chase, sobre seu novo filme (que ele considera apenas “OK”, Not Fade Away), sua primeira obra desde que encerrou a aclamada série da HBO, em 2007. Na entrevista, ela aproveitou para, inevitavelmente, cair do assunto principal da carreira do produtor e diretor, a vida e o trabalho do carismático Tony Soprano, e além de comentar a possibilidade de voltar àquele universo, mas em outra época (“Às vezes penso em fazer um preâmbulo dessa história. Algo sobre o pai do Tony Soprano e a juventude do Tio Júnior. Não descarto essa possibilidade”), Chase também foi categórico para voltar a afirmar sobre o que acontece no enigmático final de sua obra-prima:

“Eu sempre digo que, para mim, há um final fechado.”

Ele fala mais sobre isso na entrevista (neste link), contando alguns possíveis spoilers. Mas, convenhamos, a série da HBO terminou há mais de cinco anos e desde antes de seu estarrecedor último episódio, já era considerada um dos grandes feitos da televisão na história recente. É item obrigatório no cardápio de qualquer um que queira se considerar sintonizado com seu próprio tempo, aquele momento em que a produção cultural norte-americana começou a ser mais intensa na televisão do que no cinema. Por isso, não sei se dá pra falarmos em spoilers de Sopranos a essa altura do campeonato.

sopranos-credit

Dito isso, aproveito a deixa para falar sobre o final da série. Se você ainda não a assistiu, meta o rabo entre as pernas e vá fazer o seu dever de casa. Esqueça os pré-conceitos que você pode ter sobre uma “série sobre a máfia” e embarque em uma jornada emocional de um macho alfa em estado bruto, estremecido pela mudança de época que vivemos – tudo isso com direção, elenco, roteiro e trilha sonora afiadíssimos, e momentos de muita tensão emocional. É muito sintomático que, na abertura das três primeiras temporadas, o World Trade Center apareça visto do retrovisor para, depois do atentado em 2001 (que aconteceu quatro dias antes da estréia da quarta temporada da série), sumir do horizonte de Tony Soprano à medida em que ele sai de Nova York rumo à sua Nova Jersey, no início de cada episódio. Sopranos não é uma história sobre crime organizado e valentões do mal que fazem parte do funcionamento da sociedade moderna, mas sobre a crise desta sociedade, sobre como as tensões que vieram com o novo século estremeceram alguns conceitos básicos de cada um de nós, tanto individualmente quanto como civilização.

Não por acaso a série começa com a ida de Tony Sopranos à psicóloga, às escondidas, pois poderia pegar mal para sua reputação. Sim, é um preceito idêntico ao infame Máfia no Divã, mas tratado com doses excessivas de realismo, principalmente no que diz respeito às relações familiares. É uma questão mais ou menos parecida com a de Freaks and Geeks (contemporânea de Sopranos), mas o ponto de vista adulto é assumido no primeiro plano e não numa infantilização dos dramas da maturidade (Freaks and Geeks se passa em 1980 e fala da adolescência dos adultos que a produziram, na virada do século). A carga dramática ajuda a pesar para diferentes lados, seja nas relações que misturam família e trabalho ou na violência crua da rotina no crime, enquanto assistimos à ascensão de um jovem player rumo ao trono do crime organizado na costa leste dos EUA.

A partir de agora, vem os spoilers. Por isso, se você não assistiu à série, volte depois.

Passadas seis temporadas e quase noventa episódios, chegamos à última cena da série, vale rever:

O final deveria ser ainda mais tenso. Originalmente, Chase não queria nem que os créditos fossem exibidos depois da tela preta. Pelo menos 10 segundos de silêncio, de vazio, até o surgimento, ao final, do logotipo da emissora, a HBO. Para muitos, foi um exercício de metalinguagem – a tela se apaga e temos que assistir a nós mesmos, na TV, voltando para nossa vidinha sem graça e sem glamour como a do criminoso carismático. Para outros, foi um final às pressas, mal pensado, mal executado, que não explicava nada. Em uma série de entrevistas que deu a seguir, o criador dos Sopranos nunca disse com todas as palavras o que realmente aconteceu nesta última cena, mas sempre foi categórico ao dizer que a cena explica-se e que o final da série não é só uma piada sem final, e sim o fim da vida de Tony Soprano.

É isso: Tony morre no final.

Reveja a cena e perceba como isso é tecnicamente explicado apenas com movimentos e cortes de câmera. A cada vez que alguém entra na lanchonete, nesta última cena, vemos a cara de Tony Soprano e a imagem que ele vê de seu próprio ponto de vista. Primeiro Tony, depois o que Tony vê – e assim ele vai acompanhando o movimento no restaurante enquanto sua família chega: primeiro Carmella, depois AJ – este último entra, inclusive, no mesmo momento em que o assassino de Tony também chega ao local. A última a chegar é a filha de Tony, Meadow, que pena para estacionar o carro do lado de fora. Usando a sineta da porta do estabelecimento como Pavlov usou para treinar seu cachorro, somos inclusive induzidos a acreditar que a última cena que Tony vê é a entrada de sua filha Meadow no restaurante. Mas não: quando ela entra no lugar, a primeira cena que ela vê é justamente seu pai sendo baleado com um tiro na cabeça, do lado direito.

Reveja novamente a cena e perceba o quanto as câmeras mal se mexem. Em todas as cenas, a câmera está parada e filma apenas um enquadramento, sem andar para os lados, aproximar-se ou afastar-se. A única vez em que isso acontece depois da entrada de Tony no restaurante é quando, depois de entrar no restaurante após AJ, o cara com uma jaqueta escrito “Members Only” (não por acaso o nome do primeiro episódio da última temporada), deixa o balcão, onde está sentado, rumo ao banheiro. A câmera mexe-se para mostrar o caminho do assassino rumo ao banheiro a ponto de deixar bem evidente onde ele está entrando. A referência ao banheiro é mais uma das inúmeras citações que Sopranos faz ao Poderoso Chefão, pois é no banheiro de um restaurante que o personagem de Al Pacino, Michael Corleone, deve pegar uma arma e mostrar sua natureza criminosa, num dos melhores assassinatos da história do cinema.

Assim, depois que o cara com a jaqueta “Members Only” entra no banheiro, vemos a cara de Tony e, em seguida, como acontece durante toda a cena, o que Tony vê – e agora ele não vê nada pois acabou de morrer. O blackout no final do episódio nada mais é que o ponto de vista de Tony após a própria morte – sem nenhum significado espiritual, sem nenhuma mensagem póstuma. Acabou. Puf. Tony morreu – e nem sequer precisamos ver a cena em que seus miolos são espalhados em frente à mesa em que sua família está.

Eis outro indicativo que Tony realmente morreu – o fato de ter morrido em frente à família, como acontecera com Phil Leotardo um pouco antes (numa das mortes mais pesadas e idiotas de toda série):

A morte de Tony seria uma resposta à morte de Phil, um “olho por olho” após o assassinato de um dos chefões, e por isso o assassino teria esperado a hora certa para atirar, em vez de simplesmente matar Tony logo quando chega. Assim, ele morreria, como Phil, em frente à sua família.

A morte de Gerry Torciano, alguns episódios antes do último, também tem parentesco com a morte de Tony. Veja:

Ela também acontece num restaurante e, outro ponto em comum com a morte de Tony, não ouvimos o tiro. Nem mesmo Sílvio, que está jantando na frente de Gerry, parece perceber que o amigo fora atingido até que o sangue respingasse nele mesmo. A cena fica em silêncio para enfatizar algo que Bobby “Bacala” Baccalieri teria dito para Tony em outra situação, ao cogitar a própria morte por assassinato: “Você nem sequer perceberia na hora, não?”, pergunta, rindo, falando sobre que futuro esperar vivendo uma vida daquelas. Tony volta a esta cena no penúltimo episódio da série, como se Chase quisesse reforçar que nem mesmo Tony perceberia que estava prestes a morrer (aos 2:20 do vídeo abaixo):

“Don’t stop-” – a música do Journey é cortada no meio para uma tela preta pois é isso que Tony Soprano vê naquele instante. Sua vida para e assim também para a série. Acompanhamos toda a história ao redor da família Soprano do ponto de vista de Tony, conhecemos suas fraquezas e seus anseios, assistimos a seus sonhos e vimos e ouvimos suas lembranças pessoais. Nenhum personagem se revelou tanto quanto Tony, ninguém melhor personifica a série e, por isso mesmo, este é o motivo para seu fim – a própria morte de Tony. Há uma série de outras referências (ao Poderoso Chefão, a 2001 – Uma Odisséia no Espaço) e situações (Meadow tenta estacionar o carro três vezes, o mesmo número de vezes que tentaram assassinar seu pai) dissecadas no site Master of Sopranos, que mereceria ser traduzido para o português. Alguém se dispõe?

Tags: