O primeiro musical de Spielberg é maravilhoso

, por Alexandre Matias

Escrevi na CNN Brasil sobre a ousada e bem-sucedida tentativa de Steven Spielberg de refilmar Amor Sublime Amor (meu musical favorito), de Robert Wise e Jerome Robbins, sessenta anos depois, mexendo pouquíssimo no texto original e com um par perfeito para viver esta versão nova-iorquina de Romeu e Julieta, o promissor Ansel Elgort e a novata arrebatadora Rachel Zegler.

Spielberg celebra um clássico do cinema restaurando sua etnia original
Em seu primeiro musical, o clássico diretor saúda a versão de 1961 e corrige erros históricos que retratavam de forma caricata a etnia latina

Desde o início do século, Steven Spielberg vem revisitando a história do cinema em filmes que mostram diferentes épocas à luz de uma certa nostalgia. Títulos tão diferentes quanto “A.I. – Inteligência Artificial” (2001), “Prenda-Me se For Capaz” (2002), “O Terminal” (2004), “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” (2008), “As Aventuras de Tintin” (2011), “Lincoln” (2012), “Ponte dos Espiões” (2015) e “The Post: A Guerra Secreta” (2017) lidam com gêneros distintos, sempre revendo o passado (e o futuro) a partir do olhar cândido de um dos maiores cineastas de todos os tempos.

Com “Amor Sublime Amor”, seu primeiro musical, que estreia nesta semana no Brasil, ele abraça a nostalgia com reverência passional, num filme dedicado a seu pai.

Ao reler o musical de 1961 sessenta anos depois, o mestre toma o cuidado de não cometer os deslizes que a versão original patinou. A versão nova-iorquina de Romeu e Julieta com músicas escritas pela dupla formada pelo maestro Leonard Bernstein e pelo então novato e genial letrista Stephen Sondheim trata sobre a disputa territorial entre duas gangues locais – os Jets e os Sharks – e um amor trágico que surge entre estes dois grupos, vivido pelo casal Tony e Maria.

Disputa de viés étnico, a briga entre os dois grupos separa-os por sua cor da pele. Os Jets são brancos e orgulhosos de sua ascendência irlandesa, enquanto os Sharks são porto-riquenhos que chegaram há poucas gerações na ilha de Manhattan.

Só que a falta de tato na produção original, dirigida em dupla pelo mesmo diretor da versão teatral do musical, Jerome Robbins, autor da ideia que deu origem ao título e pelo cineasta contratado para dar cara de cinema à peça, Robert Wise, criou situações constrangedoras que comprometem este que é um dos melhores musicais da história.

Para começar, a protagonista latina, Maria, é vivida por uma atriz branca, Natalie Wood, com a pele pintada para que pareça mais morena. O mesmo acontece com o personagem de seu irmão mais velho, Ricardo, vivido pelo grego George Chakiris.

A prática era recorrente em Hollywood durante todo o século 1920, com Boris Karloff vivendo o vilão chinês Fu Manchu em 1932, Charlton Heston vivendo um mexicano em “A Marca da Maldade” (1958), Yul Brynner vivendo o Rei do Sião em “O Rei e Eu” (1956), John Wayne vivendo o conquistador mongol Gengis Khan em “Sangue de Bárbaros” (1956) ou Elizabeth Taylor vivendo a rainha do Egito em “Cleópatra” (1963).

Infelizmente, a prática é recorrente e em vários filmes do século 21 isso também se repete, como Christian Bale e Russell Crowe vivendo os personagens bíblicos Moisés (em “Êxodo: Deuses e Reis”, de 2014) e Noé (no filme de mesmo nome, daquele mesmo ano) ou Jake Gyllenhaal assumindo o personagem título de “O Príncipe da Pérsia”, de 2010.

Com a discussão sobre raças cada vez mais quente no cenário atual, obras recentes provocam essa relação ao inverter estas leituras. É o caso da série produzida por Shonda Rhimes (a mesma de “Grey’s Anatomy” e “How to Get Away with Murder”) que a Netflix lançou no ano passado, “Bridgerton”, em que a Londres do século 19 é recriada com a possibilidade de pessoas não brancas pertencerem à nobreza.

Ou do sucesso fenomenal de “Hamilton”, escrito por Lin-Manuel Miranda, em que a fundação dos Estados Unidos é recriada com atores negros, latinos e asiáticos vivendo os papéis dos pais fundadores daquele país.

Spielberg não só convoca um elenco verdadeiramente latino como não coloca legendas quando os personagens falam em espanhol. Dá sobrenome à família da protagonista (Vasquez, que não existia nas versões anteriores) e até cria um personagem negro, Abe, para retratar melhor aquele período.

Mais do que colocar latinos vivendo latinos em sua versão para o clássico, Spielberg também corrige uma falha gigantesca no filme original: a extrema falta de carisma do casal protagonista e a ausência de química entre os dois atores.

Tony, papel que na versão dos anos 1960 havia sido oferecido para Elvis Presley mas acabou com o desconhecido Richard Beymer, agora está com Ansel Elgort, mais conhecido dos filmes adolescentes “Divergente” e “A Culpa é das Estrelas” e do ótimo “Baby Driver”, que está magnífico. Não tanto quanto a novata Rachel Zegler, em seu primeiro filme, que vive uma Maria de tirar o fôlego. Os momentos em que os dois atuam, estejam juntos ou separados, são as melhores cenas do filme.

Filme que, como o original, tem duas horas e meia que passam voando. Spielberg mantém tanto o repertório clássico quanto, com o coreógrafo Justin Peck, saúda a dança original, mas move sua câmera de formas ainda mais ousadas que na versão original.

Não custa lembrar que o casamento da visão coreógrafa do diretor da peça original com o diretor que mais tarde faria “Noviça Rebelde” e o primeiro filme de “Jornada nas Estrelas” foi responsável por colocar as câmeras em movimentos nas adaptações para o cinema de musicais da Broadway, que até então eram filmados do ponto de vista do espectador no teatro.

Após “Amor Sublime Amor”, a câmera acompanha os atores como se dançasse junto com eles, não por acaso, entre os 10 Oscars que o filme de 1961 levou, um deles foi o de direção – na primeira vez em que uma dupla de diretores levou o prêmio.

Spielberg extrapola isso com seus “travellings” que são sua marca registrada e que dão um novo fôlego à história original. Ela ainda se passa nos anos 1950 e não tenta modernizar em nada a narrativa do primeiro filme (até o personagem transgênero já existia na versão de 1961), mas compensa isso fazendo a câmera dançar ainda mais leve e solta que no filme de Wise e Robbins. Um primor para os olhos, ele é perfeito para reforçar ainda mais a beleza das canções de Bernstein e Sondheim, que brilham ainda mais que na versão original.

E o diretor ainda brinda a atriz que fazia Anita, conselheira de Maria e namorada de seu irmão, Rita Moreno, com um papel crucial. Ela surge como a esposa de Doc, farmacêutico judeu, que na versão de 1961 funcionava como ponto de equilíbrio e olhar externo em relação ao conflito racial. No novo filme, Spielberg não se intimida e dá este papel à personagem vivida por Rita (que também assina a produção do filme), com maior participação na trama.

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